terça-feira, 6 de outubro de 2015

Uma viagem no tempo

Douro com cheiro a carvão

Em pleno século XXI, quando a construção da linha ferroviária de alta velocidade encabeça as agendas política e económica, vale a pena relembrar como eram as míticas viagens pelos caminhos-de-ferro de antigamente. Convidamo-lo para uma experiência irrepetível: (re)descobrir o Douro a bordo do último comboio a vapor de Portugal.


Já pensou o que seria demorar quatro dias, mesmo usando o transporte mais rápido do país, para fazer o percurso entre Lisboa e o Porto? Pois era mais ou menos essa a duração da viagem em mea­dos do século XIX. Naquela altura, as estradas (talvez fosse mais adequado chamar-lhes “carreiros”) eram escassas (resumiam-se a uns parcos duzentos quilómetros de pavimento macadamizado, em 1852) e de má qualidade. Como se não bastasse, os meios de transporte, por tracção animal, eram lentos e pouco confortáveis. A circulação de passageiros e correio fazia-se nesse tempo essencialmente em diligências e na mala-posta, que despendiam cerca de dois dias para chegar da capital a Coimbra e outros tantos para vencer a distância entre a cidade dos estudantes e o Porto. Enfim, um verdadeiro suplício para o corpo e para a paciência dos temerários viajantes, que não seriam assim tantos, está bom de ver.


Enquanto as estradas tardavam em aparecer e se modernizar, as viagens passaram a fazer-se por via marítima. As mudanças tecnológicas oferecidas pela Revolução Industrial, com destaque para a máquina a vapor, não tardaram a chegar aos meios de transporte marítimos. E, rapidamente, os barcos a vapor surgiram como alternativa ao moroso e cansativo transporte terrestre.


As ligações por mar permitiam estreitar as distâncias e melhorar o conforto dos passageiros. Contudo, essa opção só era válida para viagens entre cidades costeiras, e apenas quando a meteorologia e o oceano estavam de bom humor, o que, para desespero dos viandantes, nem sempre acontecia. Por conseguinte, desde Julho de 1821, quando o paquete Conde Palmela passou a assegurar a carreira regular entre Lisboa e o Porto, muitos foram os naufrágios que mancharam com vítimas mortais as ligações marítimas nacionais. Os infortúnios com os paquetes Lusitano (1823) e Porto (1852) são apenas alguns dos exemplos que figuram na lista trágico-marítima das embarcações a vapor.


Nascem as estradas de ferro


Por volta de 1852, apesar das dificuldades económicas que o país atravessava, houve quem visse no caminho-de-ferro a solução para tirar Portugal do seu atraso ancestral. Um atraso que se explicava, entre outras razões, pela geografia montanhosa da maior parte do território, pelas arriscadas viagens marítimas que apenas permitiam ligação entre as principais urbes litorais e pelos perigosos e exíguos acessos terrestres, que condenavam a maior parte das localidades portuguesas a um isolamento quase total. Por tudo isto, e certamente por muitas outras razões que não cabe aqui enumerar, foi sem grande espanto, embora com muita curiosidade, que o povo de Lisboa assistiu, com pompa e circunstância, ao lançamento da primeira pedra do primeiro troço ferroviário português. Em bom rigor, não terá sido bem uma pedra, mas, segundo reza a história, uma pazada de terra que foi lançada por D. Fernando, em 7 de Maio de 1853.


Corria o ano de 1856 quando, na manhã soalheira de 28 de Outubro, os lisboetas voltaram a ser chamados a Santa Apolónia (que na altura ainda não se designava assim, sendo o local conhecido como “Cais dos Soldados”), para a cerimónia de abertura do caminho-de-ferro. Sob os auspícios do rei D. Pedro V, fervoroso defensor da via férrea, realizou-se aquela que ficaria registada nos anais como a primeira viagem de um comboio em terras lusitanas. Apesar de terem sido percorridos apenas parcos quilómetros (trinta e sete, mais precisamente) entre Lisboa e o Carregado, e das várias vicissitudes acontecidas no passeio inaugural, aquele foi considerado um grande acontecimento nacional. Não era para menos. Afinal, estava dado o passo inicial para a aventura ferroviária portuguesa.


O comboio, sendo um meio de transporte muito mais confortável e veloz do que a tracção animal e o navio, trouxe maior mobilidade à circulação de pessoas e bens. Assim, desde cedo, foi elevado à condição de desígnio nacional, tendo começado a contrariar a geografia acidentada do território e levado a que no país se semeassem trilhos, túneis, pontes, estações e apeadeiros.


Nessa senda de desenvolvimento, em que o caminho-de-ferro era o veículo privilegiado, até os lugarejos mais ermos da nação, onde nunca haviam chegado estradas de jeito, passaram a ser visitados por carruagens apinhadas de gente e mercadorias. Lugares recônditos, de cuja existência apenas se sabia porque constavam dos mapas, passaram a estar unidos ao resto do mundo. Com o apito do comboio a fazer-se ouvir nos mais longínquos recantos da “pequena casa lusitana”, Portugal nunca mais voltaria a ser o mesmo.



Expansão do caminho-de-ferro

Apenas sete anos volvidos após a inauguração da primeira estrada de ferro, o comboio já chegava à fronteira luso-espanhola (Badajoz) e a Vila Nova de Gaia. E, em 1877, o luxuoso Sud Express já nos ligava à Europa. Por essa altura, também a via férrea já havia atravessado o rio Douro pela ponte de D. Maria Pia, arquitectada por Gustave Eiffel, concluindo assim a ligação Lisboa-Porto. A viagem entre as duas maiores cidades portuguesas, que poucos anos antes demorava quatro dias de coche, fazia-se agora em apenas catorze horas de comboio.


Contudo, mesmo antes de os cavalos-de-ferro atravessarem as águas do Douro ligando a capital à cidade invicta, já se estendiam quilómetros de carris do lado norte. Estava-se em 1872 quando as linhas do Minho e do Douro começavam a despontar. Embora apresentassem um traçado comum entre Campanhã e Ermesinde, a partir daí separavam-se e seguiam direcções distintas. A do Minho ia para Norte até à fronteira de Valença-Tui, ramificando-se para Guimarães e Braga. A do Douro dirigia-se para Leste à procura do rio que lhe deu o nome, acabando por se subdividir em diversos ramais que também se desenvolveram aproveitando os vales dos seus afluentes: Tâmega, Corgo, Tua e Sabor. 


Curiosamente, a implantação da rede ferroviária privilegiando os vales dos principais rios e dos seus afluentes, sobretudo nas regiões montanhosas do Norte e do Centro, não foi um mero acaso, mas a opção mais fácil e barata. Ao seguir os caminhos já abertos pelos cursos de água, contrariava-se mais facilmente o relevo montanhoso e poupava-se em túneis e viadutos. Mas não se pense que mesmo assim eram favas contadas: no caso da Linha do Douro, por exemplo, ainda foi necessário construir trinta e cinco pontes e vinte e três túneis para a levar até à fronteira luso-espanhola. Estes números dão bem a ideia dos trabalhos ciclópicos que foram necessários, mesmo recorrendo às aparentes “facilidades” concedidas pelos traçados junto aos rios.


Anos mais tarde, percebeu-se que essa poupança na fase de construção acabaria por condenar muitas dessas linhas ao abandono, visto que, para acompanhar os rios, se alongaram desnecessariamente muitos itinerários, afastando-os dos aglomerados populacionais e dos pólos económicos onde verdadeiramente faziam falta.


Linha do “Douro”


Como muitas outras linhas férreas, também a do Douro herdou o nome do rio que a acompanha. No entanto, quis o seu projecto de construção que as águas durienses somente lhe aparecessem ao caminho volvidos mais de 50 quilómetros de viagem, o que apenas acontece pouco depois do apeadeiro de Pala.


Todavia, o encontro com o rio é de tal modo marcante que poucos viajantes ficam indiferentes diante de tal visão. Uma das mais famosas e vivas descrições dessa experiência foi-nos deixada por Carlos Santos, professor e jornalista portuense: “Quem não estiver prevenido e for artista, viajando à direita da marcha, tem uma surpresa violenta que poderíamos chamar choque estético. Aos horizontes curtos, de mediano contraste, sucede a largueza das vistas.” Se, até aqui, a linha era “uma simples novela pastoril”, de ora em diante “começa a ser um poema épico”, conclui.


Dali em diante, o Douro, que totaliza 927 quilómetros de extensão (330 em Portugal e 597 em solo espanhol), acompanhará a ferrovia até à raia luso-espanhola. Após ter sido consumada tão maravilhosa união, quase matrimonial, entre linha e rio, estes nunca mais se separarão, o que torna este trajecto ferroviário especial e uma das mais bonitas viagens de comboio que ainda se podem realizar em território nacional.


Nas imediações da fronteira, e após 212 quilómetros de carris, localizava-se o fim da linha e a sua última estação: Barca d’Alva. Fora por lá que entrara Jacinto, a caminho de Tormes, sua terra natal, conforme descreveu Eça de Queiroz em A Cidade e as Serras. No entanto, agora tudo está bem diferente. Aquele que foi outrora um importante entreposto fronteiriço, com ligação à rede ferroviária espanhola que seguia até Salamanca, é actualmente um complexo fantasma e carcomido pelo tempo.


Com o encerramento do troço de 28 quilómetros entre o Pocinho e Barca d’ Alva, ocorrido em 19 de Outubro de 1988, idêntico destino tiveram todas as outras estações e apeadeiros que pontuavam a beira-rio. Com a partida do derradeiro comboio, desapareceu também a presença humana, que, na actualidade, se resume a pescadores solitários ou a turistas curiosos em busca da frescura das águas do Douro ou do que resta do património ferro­viá­rio abandonado. Hoje, o comboio da linha do Douro não vai além do Pocinho, o ponto final da sua viagem.



Regresso ao passado

Por mais que nos seduza a história dos caminhos-de-ferro durienses, não há nada como sentir o cheiro a carvão e ouvir o suspiro cansado, repleto de cabelos brancos, de uma vetusta locomotiva a vapor. Na Linha do Douro, mais precisamente no troço entre a Régua e o Tua, ainda é possível reviver essa experiên­cia que nos remete para os primórdios das viagens ferroviárias, quando, há mais de cento e cinquenta anos, os apitos das máquinas a vapor começaram a ecoar por todo o país. Mesmo para quem já visitou as terras vinhateiras do Douro, classificadas como Património Mundial da Humanidade, a viagem num comboio a vapor promete novas sensações e momentos inesquecíveis.


Horas antes de os turistas pisarem a estação da Régua e a plataforma que dá acesso às carruagens, já a antiga locomotiva Henshel & ­Sohn, construída em 1923, começa a ser aperaltada, num ritual que se repete todos os sábados (este ano, de 23 de Julho a 1 de Outubro). Zelosos ferroviários encarregam-se de a carregar de água e de carvão (a viagem consome cerca de oito mil litros de água e duas toneladas de carvão), de lhe lubrificar as partes móveis e de acender a fornalha. Freios, torneiras e manómetros, tudo é inspeccionado ao pormenor. Apesar da idade avançada (oitenta e oito anos, para sermos mais precisos), não são permitidas artroses ou quaisquer outras maleitas que ponham em causa o passeio e a segurança dos passageiros.


Atrás da paciente e fumegante locomotiva, alinham-se cinco carruagens históricas, construídas entre 1908 e 1934. Submetidas a cuidadoso restauro, recuperaram a beleza ancestral e mantêm as suas características originais, como plataformas abertas, interiores em madeira e janelas de guilhotina. É nos seus bancos de ripinhas envernizadas que se vão acomodando os viajantes que, entretanto, começam a ser atraídos pelo som de música e cantares regionais ao vivo, animação cultural que os acompanhará durante toda a viagem.


Entretanto, os maquinistas, completamente alheados da festa, afadigam-se a encher a fornalha com pazadas de carvão. No pequeno cubículo repleto de manivelas e ponteiros, as temperaturas tornam-se praticamente insuportáveis.


Quando o relógio marca 14 horas e 45 minutos, e as caldeiras da locomotiva estão já completamente em brasa (por fora chegam a atingir temperaturas superiores a 60 ºC, pelo que as poucas zonas onde se pode tocar encontram-se assinaladas a vermelho), três apitos agudos ecoam na estação, anunciando a partida. Os espíritos mais sonhadores poderiam imaginar-se a caminho da Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts.


A pesada máquina a vapor começa finalmente a mover-se. Soltando suspiros de esforço, arrasta-se com notória dificuldade pela estrada de ferro. Ao rolar sobre os carris numa trepidação estridente, vai espalhando no ar um intenso fumo e cheiro a carvão. O sonho de uma viagem ao passado começa lentamente a tornar-se realidade.


Douro a vapor


O comboio histórico segue alegremente a passo de caracol, sem ultrapassar nunca os 50 km/h. Encantados, os passageiros debruçam-se nas janelas com câmaras de filmar, máquinas fotográficas e telemóveis. As mais requisitadas são as do lado direito, aquelas que têm vista privilegiada para o vale onde corre o rio, mas do lado oposto não faltam motivos de interesse, com destaque para as quintas vinícolas que se vão sucedendo uma após outra com os seus socalcos carregados de vinhedo. Seja qual for a janela escolhida, todas garantem o desfilar cinematográfico de uma paisagem sublime que deixa miúdos e graúdos em êxtase, sobretudo os estrangeiros, que são passageiros habituais destas viagens no tempo.


Enquanto o comboio avança, uma espessa nuvem de fuligem negra invade as carruagens e acaba por atingir os rostos suados e as roupas desalinhadas, principalmente daqueles que não resistem em passar a maior parte do tempo com a cabeça de fora. Por isso, no final, ninguém se livra de regressar a casa com marcas de carvão e com um insuportável cheiro a fumo, comparável ao desfecho dos viajantes de antigamente.


Algum tempo depois de atravessar a ponte metálica sobre o rio Corgo, a composição perde-se nas trevas do túnel de Bagaúste, com mais de quatrocentos metros de comprimento. Na mais completa escuridão, a que se junta o fumo espesso, o calor sufocante e o barulho ensurdecedor da medonha máquina a vapor, vive-se uma experiência verdadeiramente arrepiante. Até as luzes tremeluzentes das velhinhas carruagens emprestam algum dramatismo à cena, que mais parece uma viagem num comboio-fantasma, daqueles saídos dos parques de diversões ou dos pesadelos dos mais assustadiços.


Para alívio de todos, quase tão rapidamente como se entra na escuridão, assim se encontra a luz ao fundo do túnel. Do outro lado, já a céu aberto, nada melhor do que um magnífico espelho de água para ir recompondo os olhos e os corações alvoraçados.


À medida que a viagem prossegue, as águas pachorrentas do Douro vão espelhando as quintas e alguns palacetes e casas senhoriais, assinaladas por renques de ciprestes e sempre rodeadas pelas omnipresentes vinhas, que claramente dominam os cenários. Perante a mansidão das águas do rio, é difícil imaginar o tempo do Douro revoltoso e violento que os barqueiros dos antigos rabelos enfrentavam com destemor e valentia. Tal como é também difícil de acreditar que houve tempos em que estas encostas eram preenchidas apenas por mato bravio. No entanto, isso foi antes do século XVII, quando se começaram a levantar os infindáveis socalcos, que mais parecem escadarias em direcção ao céu, destinados a suster a terra e a cultivar o néctar dos deuses: o afamado vinho do Porto.


O Douro Vinhateiro (“a mais vasta e imponente obra humana do território português”, como escreveu Orlando Ribeiro, o nosso maior geógrafo) é uma visão a que ninguém consegue ficar indiferente. A paisagem, com os seus encantos convidativos, é belíssima, bem como a história das suas quintas, vilas e aldeias.


O comboio faz lembrar uma enorme centopeia a arrastar-se vagarosamente à beira-rio. As estações e apeadeiros que servem as povoa­ções e as quintas agrícolas vão-se sucedendo. Sem os telemóveis e toda a alta tecnologia audiovisual trazida pelos visitantes, facilmente se pensaria que aquela é mesmo uma máquina do tempo. É verdade que não se ouve a algaraviada de magotes de gente com os seus sacos, malas, garrafões, cestas de fruta e hortaliça que enchiam as carruagens de outrora, mas existe o fumo e o cheiro a carvão, o som da música e dos cantares regionais ao vivo, as vendedeiras e camareiras envergando trajes regionais da época, para criar toda a ilusão. Com tanta diversão, nem se dá pelo passar do tempo.


São 15.20. A composição atravessa mais uma ponte metálica e vai abrandando o ritmo até parar no Pinhão. Assim que o comboio se detém, muitos passageiros deixam as suas carruagens, num abrir e fechar de olhos, para apreciar os belíssimos azulejos que revestem as paredes da estação. Datam de 1937 e ilustram, sobretudo, a vida duriense. A vinha e o vinho, mas também o Douro e os rabelos surgem como temáticas incontornáveis.


Os vinte e quatro painéis são considerados os mais notáveis de todas as estações portuguesas. De entre todos, dois destacam-se por ilustrarem paisagens desaparecidas pela submersão nas águas da albufeira da Valeira:  a ponte metálica da Ferradosa e o Cachão da Valeira. Este último mostra o local onde tantos barqueiros dos rabelos e alguns dos seus passageiros perderam a vida. O naufrágio mais famoso aí ocorrido foi sem dúvida o que vitimou o barão de Forrester. Segundo reza a história, ter-se-á afogado devido ao peso do dinheiro que transportava consigo (há quem veja aqui uma crítica à ganância desmesurada típica de relatos de naufrágios), algo que até hoje não foi possível comprovar, uma vez que o seu corpo nunca foi encontrado. D. Antónia Adelaide Ferreira, mais conhecida pela “Ferreirinha”, destacada empresária do século XIX e responsável por relevantes inovações no cultivo do Vinho do Porto, que o acompanhava, só terá sobrevivido porque as saias de balão que envergava a fizeram flutuar e chegar à margem em segurança. Enfim, relatos que se situam algures entre a história e a lenda e que ajudaram a perpetuar a memória de um lugar maldito e de um rio que já foi rebelde e abrutalhado. O Douro actual mantém ainda uma grande imponência, mas deixou-se domesticar e não passa hoje de um enorme animal enjaulado.



Água para o cavalo-de-ferro

Os vinte minutos de paragem, todavia, não servem apenas para apreciar a azulejaria e o património ferroviário, são também tempo precioso para dar algum descanso à locomotiva. Os maquinistas, verdadeiros heróis destas viagens, não têm, porém, a mesma sorte. Para eles, não há um minuto de descanso, nem mesmo quando as suas vestimentas encharcadas já não conseguem absorver nem mais uma gota de suor. Enquanto uns inspeccionam e lubrificam a locomotiva e as carruagens, outros aproveitam para dar de beber ao grande cavalo-de-ferro. É que sem água não há vapor e sem vapor a alta pressão não há energia mecânica e, então, o comboio histórico deixa de se movimentar. Parado num qualquer museu ferroviário, seria apenas um animal morto e empalhado, nada que se compare a vê-lo vivinho e a resfolegar pela linha do Douro.


O reabastecimento de água à moda antiga, usando uma estrutura primitiva que antigamente matava a sede a todas as máquinas a vapor que ali paravam, é sempre um acontecimento especial e um momento de grande entusiasmo para todos aqueles que assistem.


De novo em marcha, percorrem-se os últimos quilómetros até ao Tua. A linha continua a seguir os meandros do rio entre admiráveis penhascos. Este derradeiro pedaço da viagem é bastante mais selvagem, feito de fraguedos atrás de fraguedos, sem que se consiga lobrigar presença humana. Chegados à estação do Tua, repete-se o cerimonial da inspecção, lubrificação e reabastecimento de água. A maior novidade, a que assistem sempre inúmeros curiosos, costuma ser, no entanto, a inversão de sentido da locomotiva, uma manobra que ainda é feita à moda de antigamente.


Enquanto se aguarda pela viagem de regresso, os mais aventureiros aproveitam para ir dar uma espreitadela aos primeiros quilómetros da mítica linha do Tua (encerrada em virtude da construção de uma barragem), aquela que foi considerada, pelos mais conceituados guias de viagens internacionais, como a mais espectacular dos caminhos-de-ferro portugueses. A grande maioria dos passageiros, no entanto, opta por se refrescar e petiscar no restaurante Calça Curta, situado junto à estação e com uma magnífica vista panorâmica sobre o Douro.


Por volta das 17 horas, anuncia-se o regresso. Atrás da carismática locomotiva a vapor, seguem sem pressas as cinco carruagens. Pouca terra, pouca terra, pouca terra… Como no início do século passado, o céu volta a encher-se de fumo, denso e negro, à medida que o comboio se afasta em direcção à Régua.


Desengane-se quem pensa que a viagem de volta oferece poucas novidades, uma vez que o percurso será exactamente o mesmo. Apesar do cansaço, a que o calor duriense não é alheio, há sempre novos aspectos que prendem a atenção de quem viaja. Por isso, exige-se redobrada atenção para descobrir pormenores que poderão ter escapado à excitação dos primeiros olhares. Além disso, quem consegue ficar indiferente à luminosidade mágica do entardecer que vai pincelando todo o vale de tons dourados?


As máquinas fotográficas não têm descanso, bem como os artistas que escrevem com a luz. Mesmo quem não é artista ou poeta não consegue resistir ao apelo dos magníficos cenários e torna-se facilmente contemplativo. São viagens encantadas como esta que enchem de encantamento o espírito nostálgico dos viajantes. Afinal, este é “um passeio sem pressa de voltar”, como afirmam muitos dos que vivem a experiência de descobrir o Douro a bordo do último comboio a vapor de Portugal.


J.N.


Trilhos abandonados, trilhos renascidos

No dia 9 de Dezembro de 1887, era aberto à exploração o troço entre o Pocinho e Barca d’Alva, ficando então definitivamente concluído o caminho-de-ferro do Douro. A linha, com ligação a Espanha, tornava-se assim uma passagem internacional e uma importante via de acesso ao Alto Douro e a Trás-os-Montes. Então, como seria de esperar, a partir dela prontamente nasceram ramais que foram vencendo a geo­grafia acidentada do território seguindo o curso dos rios mais importantes.


Volvidos pouco mais de cem anos, porém, o entusiasmo pela aventura do caminho-de-ferro duriense começou a desvanecer-se e a racionalização da exploração ferroviária impôs o encerramento de quase todas as estradas de ferro: linha do Tâmega, entre Livração e Arco de Baúlhe (52 km), linha do Corgo, entre Régua e Chaves (97 km), linha do Tua, entre Tua e Bragança (126 km), linha do Sabor, entre Pocinho e Duas Igrejas (105 km) e linha do Douro, entre Pocinho e Barca d’Alva (28 km). Feitas as contas, rapidamente se converteram mais de quatrocentos quilómetros de trilhos ao abandono.


Embora as gentes desses lugares ainda acalentem a esperança de voltar a ouvir o apito dos seus comboios, isso dificilmente acontecerá. Em muitos casos, os trilhos foram já removidos e em quase todos a vegetação tem vindo a crescer sem qualquer controlo, começando a dissimular na paisagem os caminhos-de-ferro que entretanto se vão perdendo na geografia. Para grande pena de todos, residentes e turistas, o transporte ferroviário parece ser uma memória cada vez mais distante.


Não obstante, segundo a REFER, nem tudo são más notícias. Com a elaboração do Plano Nacional de Ecopistas, criado em 2001, algumas das vias ferroviárias desactivadas podem constituir um suporte privilegiado para o desenvolvimento de “vias verdes”. Estas são caminhos pedonais onde os comboios estão a ser substituídos por veículos não-motorizados (como as bicicletas, os patins e os skates), garantindo acessibilidade e segurança a todos os utilizadores, independentemente da sua idade e condições físicas. No caso concreto da linha do Douro e dos seus ramais, a situação oficial é a seguinte: Ecopista do Tâmega – inaugurada a 30 de Abril de 2011, tem dez quilómetros de extensão, entre as estações de Amarante e de Chapa; Ecopista do Corgo – estão utilizáveis 9 km nos arredores de Vila Pouca de Aguiar; Ecopista do Sabor – inaugurada em Julho de 2006, tem doze quilómetros de extensão, entre as estações de Torre de Moncorvo e de Larinho.


Lobrigar Portugal da janela de um comboio é sempre uma experiência fascinante. No entanto, quando tal já não é mais possível, as ecopistas podem ser uma boa alternativa para desbravar alguns territórios selvagens e descobrir recantos encantados que escondem curiosidades que vão muito além das meras memórias ferroviárias.


SUPER 160 - Agosto 2011

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