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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Relembrando Bragança - DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MON­TES

Chrys Chrystello
Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cul­tura portu­guesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga. Outros haveria que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnó­grafo, arqueó­logo, autor das Memó­rias Arqueológico-Histó­ricas do Dis­trito de Bra­gança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Dis­trito de Bragança… E João Araújo Cor­reia, médico João Semana, no genuíno sentido da expressão, na cidade da Régua, e um dos grandes Mestres da Língua Por­tu­guesa, que mere­ceu de Aquilino, outro seu ilustre cul­tor, estas expressivas e legítimas pala­vras: «Mestre de nós todos há cin­quenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos velhos, glo­riosos ou inglorio­sos, pouco importa; mestre dos que vieram no inter­mezzo da arte literária com três dimensões para a arte lite­rá­ria sem gramática, sem sin­taxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insusten­tá­vel e quei­ram construir obra séria e dura­doura».

João de Araújo Correia, duriense de raiz enxerida no coração, escreveu estas sábias palavras acerca do povo de que fazia parte: «O Holandês subtraiu ao mar a terra que o sustenta; o duriense arrancou-a palmo a palmo a uma natureza tão brava como o mar.» Assim o fez também o escritor de Folhas de Xisto, que sobre o próprio livro escreveu: «Parece-me que foi sobre folhas de xisto, lâminas de alvenaria da minha região, que escrevi estes contos.»

Isto só para mencionar os que já se foram, porque outros há ainda, vivos, e com obra de vulto ainda construção, que mere­ciam alguma justiça que a macroce­falia lisboeta lhes nega, sem­pre negou a todos quantos estão longe do seu bafo literário quantas vezes podrido…

Sem desprimor para estes dois vultos transmontanos e que de per si mereciam uma confe­rên­cia inteira ou mais, só irei debru­çar-me, e espero não me despe­nhar da altura a que ambos se guindaram, sobre a obra e personali­dade de outras duas indivi­dualida­des graníticas, mais che­ga­das à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi gran­des lições de vida, cultura, humanidade e humanidades: Paulo Quin­tela, filho desta cidade, onde nas­ceu em 1905, e Miguel Torga, natu­ral de São Marti­nho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tan­tas vezes escre­veu nos seus livros…

Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melho­res tra­dutores das línguas germânicas para a Língua Por­tuguesa. Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que naciona­lizou esses poetas e escrito­res estrangeiros, prin­ci­palmente ale­mães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nietzche, Haupt­mann, Nelly Sachs, Georg Trakl, Nietzche, incluindo alguns poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico ale­mão, lusita­nista, estu­dioso e tra­dutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobre­tudo Rilke, que influenciaram alguns poe­tas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga. Como se isto não bas­tasse, Paulo Quintela, um apaixo­nado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de res­sus­citar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos com­pêndios. Excetuavam-se algu­mas tími­das, fugazes e nem sempre logra­das ten­tati­vas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espetáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, repre­sentado por essa compa­nhia, em uma noite de verão, no Pátio da Uni­versi­dade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em cima do palco. Escre­veu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro por­tuguês, e deu a conhecer aos leitores portugueses as Líricas Castelha­nas, de Gil Vicente, publi­cadas em livro, em mea­dos dos anos ses­senta, no Cancio­neiro Vér­tice. Porém, Quintela não se que­dou por Gil Vicente: encenou outros gran­des drama­turgos; os trá­gicos gregos: a Medeia, de Eurípedes; a Antí­gona, de Sófo­cles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cris­tó­bal e A Sapa­teira Prodigiosa, de Frederico Gar­cía Lorca. Nesta última peça, foi o próprio Quin­tela quem represen­tou o papel de sapa­teiro, o principal, porque o ator que o devia interpre­tar ter comu­ni­cado, na véspera da estreia, que não podia com­pare­cer – valia Quin­tela saber de cor todos os papéis das peças que encenava; O Tar­tufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâ­neos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Bran­dão… Graças ao TEUC (Tea­tro dos Estudantes da Uni­versi­dade de Coim­bra), fundado em 1938, e que se estreou com a Farsa de Inês Pereira, foi possí­vel a Paulo Quintela, seu diretor artís­tico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os drama­turgos atrás referi­dos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde pas­saram gerações e gerações de estudantes, que, após a forma­tura, conti­nuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.

Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em dezem­bro de 1905, Paulo Manuel Pires, mais tarde Quintela, oitavo rebento de uma prole de dez, descendente de um pedreiro e de uma padeira. Aqui se criou, iniciou e con­cluiu os estudos elemen­tares e liceais, que o haviam de guindar à Facul­dade de Letras da Universi­dade de Coimbra, na qual se matri­culou no ano letivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos. Aluno bri­lhante, con­cluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensi­nar, em Berlim, durante seis anos. Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de qua­renta anos, o magis­té­rio nas Literatu­ras e Cul­turas Ger­mâ­nicas. Aqui jaz, no cemitério do «Alto do Sapato», desde o dia 10 de março de 1987.

Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Lite­ratura Portu­guesa e, durante grande parte do per­curso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventu­ras literárias. Procu­rarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois o que os separou para sempre, tentando o mila­gre, sempre pos­sível, de um rea­tamento de relações post mortem…

Entre ambos existia uma ami­zade enrai­zada num ace­rado amor que con­sagravam a Trás-os-Montes, o «Reino Maravi­lhoso», de onde ambos eram oriundos. «Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fra­terno abraço a afir­mar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a ilumi­nar a paisa­gem de paz onde esse abraço se deu, forte e repou­sado. Que belo e natu­ral é ter um amigo!» ─ escre­veu Torga, no dia 4 de feve­reiro de 1935, no pri­meiro volume do Diá­rio, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hos­pital em Coimbra.

No Segundo Con­gresso Trans­mon­tano, reali­zado nas Pedras Salgadas, em setem­bro de 1941, ambos parti­ci­param com duas confe­rências. A de Miguel Torga intitulava-se »Um Reino Mara­vilhoso (Trás-os-Montes)»; a de Paulo Quin­tela, «Um Poeta de Trás-os-Montes», Miguel Torga. E era o Poeta: «Vê-se pri­meiro um mar de pedras. Vagas e vagas sidera­das, hir­tas e hos­tis, conti­das na sua força des­me­dida pela mão inexorá­vel dum Deus cria­dor e dominador. Tudo parado e mudo. Ape­nas se move e se faz ouvir o cora­ção no peito, inquieto, a anun­ciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desem­ba­inhada: ‘─ Para cá do Marão, man­dam o que cá estão!’ Sente-se um cala­frio. A vista alarga-se de ânsia e de assom­bro. Que penedo falou? Que terror res­peitoso se apo­dera de nós? Mas de nada vale interro­gar o grande oceano megalí­tico, porque o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Mara­vilhoso.»  

Por seu turno, Paulo Quintela: «Mas não se nasce impune­mente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisa­gem, se não é o único fator determi­nante, é con­tudo primor­dial ele­mento de forma­ção e informação. Se a poe­sia é no fundo expres­são ─ expres­são mágica ─ das coi­sas e dos seres, da Vida, é evi­dente que essa expres­são há de ser em certa medida condi­cio­nada pela maneira como esses seres e coi­sas se nos reve­lam e nos soli­ci­tam, pela luz que os banha, pelo hori­zonte em que estão implanta­dos, pelo ângulo por que se con­tem­plam. O homem da planí­cie terá uma vivência das coi­sas e dos homens muito diversa da do monta­nhês. Horizontes vas­tos e planos, monó­tonos, em que as figuras se per­dem ou ficam reduzi­das a con­tor­nos impreci­sos, convi­dam a erguer os olhos e a contemplar o céu. Daqui ─ falo, evi­dente­mente, em termos amplos que admi­tem toda a sorte de exceção que não aba­lará aliás a fir­meza do prin­cípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes pare­cer exceção...) ─ daqui, digo, a pro­pen­são contem­plativa e a necessi­dade de fuga e liberta­ção mís­tica do homem nado e criado em ambiente des­tes. Daqui o caráter mís­tico da grande litera­tura da estepe russa, por exem­plo. Mas suba­mos agora uma monta­nha. As coisas na encosta que vamos esca­lando são-nos mais chega­das, mais íntimas, mais nos­sas, pelo esforço que puse­mos em alcançá-las; a luz quebra e reflete de outra maneira nas lom­bas que nos rodeiam e nos limi­tam o hori­zonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arca­boiço arfa, bate o cora­ção encos­tado à fraga ou à árvore, e o arque­jar do peito e a pan­cada do cora­ção do homem da mon­tanha faz-se hálito e pul­sar da pró­pria terra-mãe. Chega-se ao cimo. Mas não foi para con­tem­plar o céu que nos apro­ximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos con­vida. Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tenta­ção: ‘De novo o subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mos­trou todos os Rei­nos do Mundo, e a gló­ria deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se pros­trado me adora­res...’ Deus em Cristo resis­tiu à tenta­ção. Os homens sucumbem à vee­mên­cia do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poe­tas portu­gueses moder­nos, o que está mais in­ti­ma­mente ligado à sua paisagem, que é a pai­sa­gem de Trás-os-Montes.»

Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poé­tica, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, inti­tu­lada «Abe­cedá­rio de Coimbra», o poeta de abril, grande amigo e admi­rador de ambos, em­preende uma apolí­nea pere­gri­nação afetiva através de individua­lidades que, em dado mo­mento histó­rico-cultu­ral, cunharam o caráter da cidade mítica. Nesse «Abecedário», figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de «Miguel Torga No Largo da Porta­gem»; o outro intitulado «Paulo Quin­tela». O dedicado ao autor de A Criação do Mundo reza assim:

Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consul­tório e embarca para / dentro. / Diante da folha branca vai de via­gem / navega sobre o tempo e nunca para. / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.

Sobre Quintela escreve:

Nada sabía­mos da lín­gua por­tuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensi­nou-nos / a música secreta das vogais / a cor das con­soan­tes a ondula­ção o ritmo / o maru­lhar das frases e o seu / sabor a sal. / E tam­bém como pisar um palco / como falar como calar e sobre­tudo/ como sair de cena e entrar / no grande tea­tro deste / mundo. / Por­que tudo era proi­bido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colo­car a voz e a não per­der / a alma.

Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão lumi­nosa fun­dura a que só os príncipes da poesia têm o con­dão de des­cer ou de subir, encon­tra-se deli­neado um ver­dadeiro, muito completo e com­plexo pro­grama de vida esté­tica, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quin­tela como Miguel Torga foram cum­prindo enquanto por cá andaram. Nas face­tas que no poema se real­çam, tornou-se Quintela grande mes­tre e a sua obra de inte­lec­tual e o seu exem­plo de cida­dão empenhado deram disso tes­temu­nho. A poe­sia e a prosa de auto­res de «franças e aragan­ças», que, através de tradu­ções exemplares e re­cria­do­ras, natu­rali­zou sem qualquer sotaque para portu­guês e que fica­ram desde logo per­tença da Literatura Portu­guesa; se tives­sem os seus auto­res cá nas­cido, seria decerto como ele as traduziu que escre­ve­riam na nossa lín­gua; o tea­tro vicentino que estu­dou e amou como nin­guém desde os ban­cos do Liceu de Bra­gança, difun­diu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cida­dão livre que sem­pre ousou ser, numa pátria contami­nada por gran­des medos miudinhos por tan­tas outras toxinas que lhe cons­purca­ram a atmos­fera, não raro tor­nando-se, armada ou arma­di­lhada de um pesa­dume propenso e pro­pí­cio a que certas criatu­ras se ban­deas­sem, fra­quejas­sem e se per­des­sem, alma incluída, no céu da sua con­ver­são…

No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certei­ras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosa­mente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde. Era do seu consultó­rio, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado tra­balho poético, em sua casa, zar­pava todos os dias para viagens que só ele sabia deslindar. Transcrevo o poema de abertura do 1.º Diário, de 3 de janeiro de 1932, (Torga ini­ciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflete esse tra­balho noturno, noctí­vago, a que se entregava com a devoção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:

Deixem passar quem vai na sua estrada. /Deixem passar / Quem vai cheio de luar. /Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açu­cenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no pois passar, agora // Que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.   

Vale também a pena transcre­ver um texto do Diário XII, de fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:

Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremu­nhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começa­ram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho. Depois, a razão clarificadora acu­diu à inspira­ção tumultuosa, britou, peneirou, lavou, orde­nou, e as pepitas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmo­nioso e autó­nomo. Um texto na sua plenitude existencial, inex­pug­nável como um dia de sol. Excitado pela evidência do mila­gre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono. Pus-me a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segu­rança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens. Por fim, confiado, a abaná-las rija­mente, e a con­cluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exal­tação secreta, estra­nhamente otimista, menos vulnerável aos empur­rões da multidão, feliz sem o dar a entender. É um regozijo íntimo, fundo, como se me encon­trasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diá­rio XII)

Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro portu­guês que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC represen­tava Terra Firme no ve­lho Teatro Ave­nida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressa­mente Quintela para ence­nar uma peça de Miguel Torga, repre­sentava o poema dramá­tico O Mar, inte­grado no seu I Ciclo de Teatro. A partir daí os desti­nos des­tes dois homens alti­vos, como duas ver­ten­tes de um Marão de carne e osso, sepa­ram-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslin­dar as razões por que se deu tal rutura, nem tal­vez as hou­vesse bem defini­das. Seriam for­tes razões do cora­ção, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutua­mente, e outra coisa não seria de espe­rar de homens de tama­nha en­ver­gadura. Eu próprio posso disso dar testemu­nho. Paulo Quin­tela conti­nua no seu labor de tra­du­zir auto­res alemães, ingle­ses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Haupt­mann, Nietzs­che, Goe­the, Kant, Ben John­son, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, ence­nando Gil Vi­cente, Molière, auto­res gre­gos, como Eurípedes e Sófo­cles, e modernos como Gar­cia Lorca e José Régio. Mi­guel Torga havia ainda de publi­car dois livros de poe­sia, Câmara Ardente e Poemas Ibéri­cos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diá­rio.

Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena. No dia 9 de março de 1987. Na véspera, domingo à noite, esti­vera a ver um pro­grama tele­vi­sivo in­ti­tulado Eu, Miguel Torga, docu­men­tário sobre o autor da Cria­ção do Mundo. Aca­bado o pro­grama, foi-se dei­tar e não mais acordou. Pre­mo­nitó­rio, não acham? Eu tinha estado com ele na sexta-feira ante­rior, e havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diá­rio XIV, aca­bado de sair e do qual lhe falara com entu­siasmo durante a nossa última con­versa de sexta-feira, 6 de março. À despe­dida, no alto da escada, ainda me recomendou: «Não te esque­ças de me trazer o diário do Torga...»

Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de janeiro de 1995, e sepultado no dia seguinte, em capa rasa, na sua aldeia natal, já transmudada em lugar para onde! No ano seguinte, o Negrilho, árvore centenária que dominava o Largo do Eirô, a quem Torga, num poema de 1954, dizia: Na terra onde nasci há um só poeta. / Os meus versos são folhas dos seus ramos. […], deu em esmorecer e expirou semanas mais tarde. Talvez de desgosto, talvez de saudade do compa­nheiro que: Quando chego conversamos, /E é ele que me revela o mundo visitado [...]. Agora, no Largo do Eirô, transformou-se o mestre da inquietação serena num fantasma enlaçado de hera… 

No seu penúl­timo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de março de 1987, dia da morte de Paulo Quin­tela: «A morte é uma grande re­conciliadora. Não há desa­vença que lhe resista. O seu grande manto de equanimi­dade cobre todas as pai­xões da mesma vani­dade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediá­vel.» (No dia de sua morte foi enviada uma coroa de flores provinda da casa de Miguel Torga, a dois passos da de Quintela).

Depois de tudo quanto aqui ficou lavrado, fico com a sensação de vazio abso­luto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer. Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para se acolherem nas pági­nas de um qual­quer escrito, e eu demasiado pequeno para os fa­zer caber numa sim­ples e des­pre­ten­siosa comunica­ção como esta com que vos tenho vindo a martelar o bicho do ouvido e da paciência. Re­pare-se, porém, no milagre da poesia, capaz de sínte­ses fulgurantes: ambos ficaram retra­ta­dos, em corpo e alma inteiros, nos dois poemas de Manuel Ale­gre. São assim os Poetas, os grandes Vates da Humanidade.

Cristóvão de Aguiar
Bragança, 1 de outubro de 2009
in:diariodetrasosmontes.com

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