Café Portugal - Juntamente com outros investigadores propõe-se inscrever os sons dos sinos na Matriz Nacional do Património Cultural Imaterial. Sendo elementos tão arreigados ao nosso património é estranho ainda não constarem deste inventário. Porquê?
Maria Adelaide Furtado (M.A.F.) - A sua pergunta permite-me começar por esclarecer que não estamos a falar dos sinos enquanto património material, efectivamente eles representam um ancestral património, mas o que trazemos de inédito é a necessidade de serem olhados na perspectiva do património cultural imaterial. Os sinos têm essa singularidade ou dupla vertente, a material e a imaterial. A «Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial», adoptada pela UNESCO em 2003, ratificada nesse ano pelo Estado Português, mas só em vigor com a sua publicação em Agosto de 2008, vem introduzir em território nacional a faculdade de identificação de uma diversidade de valores culturais e o papel de novos actores, as próprias comunidades.
A Convenção é o reconhecimento de um papel activo das comunidades na salvaguarda deste tipo de património. Importa referir que, o objectivo da «inscrição da linguagem dos sinos» na matriz nacional do património cultural imaterial será o reconhecimento da função dos sinos e está implícito outro novo conceito «a paisagem sonora» que as comunidades considerem como parte da sua história e identidade colectiva.
Em síntese, estamos perante o objectivo do reconhecimento da função dos sinos, desde sempre presentes na paisagem sonora, numa ancestral função de comunicadores, isto é, numa comunicação simbiótica ou linguagem especial, quer marcando as horas, convocando ao culto, anunciando as más notícias, ou deixando no ar o anúncio de festa e alegria. Ainda na definição do que é passível de reconhecimento como património cultural imaterial (PCI) podem integrar-se tradições, saberes e técnicas tradicionais, práticas e expressões de determinada comunidade, desde que identificadas como parte integrante da sua cultura, transmitidas por gerações, mas ainda com manifestação na actualidade, em suma, que representem elementos da história, património e identidade de um lugar. Respondendo agora à sua pergunta, a imaterialidade dos sinos integrados neste conceito de património cultural imaterial são um património muito jovem.
C.P. - Trata-se de proteger uma expressão das comunidades locais antes do desaparecimento desse traço cultural?
M.A.F. - Exacto e encontramos essa preocupação na própria Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial no plano das suas recomendações ou Medidas de Salvaguarda. Efectivamente o património cultural imaterial é intangível, é um tipo de património associado a pessoas, a grupos. São as pessoas que garantem a sua existência, vivenciando a imaterialidade e transmitindo-a às gerações futuras. É um património frágil, em constante mutação, acompanha as mudanças sociais e históricas. É portanto um património susceptível de desaparecer ou desaparecerem as condições que lhe dão sentido. E qualquer trabalho de investigação social sobre património cultural imaterial, seja pesquisa, inventariação, digitalização de documentação, seja registo fotográfico, fonográfico, etc., tem uma enorme importância no plano da salvaguarda desse património. Pelo que, qualquer actividade de sinalização e recolha conduz à preservação, promoção e valorização dos nossos valores culturais, regionais ou nacionais. Podemos ainda observar que está implícito nestas Medidas de Salvaguarda a faculdade de revitalização do património cultural imaterial, com o objectivo de impedir o seu desaparecimento enquanto expressão de identidade duma comunidade. Pretende-se identificar e salvaguardar a linguagem dos sinos, na sua expressão ou forma de comunicação, o que nos foi transmitido por gerações mas num recorte de actualidade, o tal traço cultural que mencionou.
C.P. - Pode aprofundar essa noção de revitalização do património que acaba de mencionar como constando na Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial ?
M.A.F. - Como Jurista não posso deixar de chamar a atenção para esse conceito, a revitalização de um património imaterial. Segundo o quadro legal, nos pressupostos estabelecidos nesta Convenção, é exigível que as comunidades ainda se identifiquem com esse passado e portanto é condição necessária que o património imaterial expresse uma identidade ainda actual, património vivo. Este rigor está implícito nos pressupostos da candidatura e é perfeitamente justificável, pois tem por objectivo impedir «recriações» fantasiosas ou abusivas. Significa que, só pode ter reconhecimento como património cultural imaterial, o património que além de ter carácter intangível, represente um sentimento de pertença, que exista uma expressão de continuidade no presente, e o seu reconhecimento como património cultural imaterial tem em vista a preservação desse valor e identidade da comunidade.
C.P. - Pode dar-nos um exemplo?
M.A.F. - Vou dar um exemplo «ao contrário» no âmbito dos sinos. O processo de fundição dos sinos, que também representa uma arte do fogo, foi desde sempre rodeado de mitos e superstições, talvez pela razão de uma procura mítica do som perfeito. Acresce referir que a actividade das fundições dos sinos era circunscrita a algumas famílias de sineiros, que perpetuavam o saber dentro do círculo familiar ou na união com outras famílias sineiras. E com este secretismo e superstições no processo de fabrico, levavam os sinos a um plano entre o sagrado e o profano.
Os sinos passavam a «res sacra» isto é, «coisas sagradas» após a bênção numa cerimónia que antecedia a colocação nas torres sineiras. Para as populações, durante séculos, os sinos representavam o «poder» de afastar os perigos das intempéries, granizos e trovoadas ou afastar os parasitas das colheitas, com um toque sineiro que designavam por «toque aos frutos da terra e do mar». Ora, este plano da cultura imaterial não tem actualidade, não expressa um sentimento de identificação com o saber actual, não permaneceu como identidade dos grupos, e não faria qualquer sentido trazer-se esta tradição para o plano imaterial, nem salvaguarda, por ser matéria que se circunscreve a uma época passada.
C.P. - Estamos a falar de um património que acompanha as comunidades desde o nascimento dos seus membros até à morte…
M.A.F. - É frequente ouvir-se essa expressão, vale o que vale. Mas na minha óptica, a importância dessa expressão corrente, é que contem a tal valoração, o tal conceito agora desperto «a paisagem sonora». Mas, os sinos e a sua sonoridade têm estado esquecidos, apesar de cumprirem a útil missão de comunicar com a comunidade. Frequentemente chamo a atenção para as torres sineiras que são um museu vivo. Subir a uma torre sineira é encontrar obras de arte, o bronze dos sinos são peças de arte, são «quadros vivos» identificadores de tendências artísticas de mestres sineiros ao longo dos tempos. A nossa Associação de Defesa do Património - Al Baiaz tem vindo a dar o seu contributo para a valoração deste potencial, alertando para a defesa deste valioso património material e imaterial. Só a título de curiosidade, julgo interessante referir que, nos anos sessenta do século XX, o sino foi excluído do projecto de investigação dos «Estudos dos instrumentos musicais populares» embrionário do Museu Nacional de Etnologia, um importante trabalho de investigação de Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira (1960-63) com a justificação que o fabrico dos sinos é da esfera da indústria metalúrgica, posição que então não foi absolutamente consensual. Recordo esta questão, como indicador que o som dos sinos e a sua função representam hoje um novo exemplo de património, mas desde sempre estiveram associados a festas populares e tradições.
C.P. - Pode dar-nos alguns exemplos das funções dos sinos em diferentes zonas do país?
M.A.F. - Num sentido lato duas funções principais, uma a de marcador do tempo, isto é, a informação das horas, outra função a de acompanhar a ritualidade das celebrações eclesiásticas e ainda uma terceira função, mas esta só com carácter residual o chamado toque a rebate, ou sinal de alarme, que representam formas de alerta de perigos para acção das comunidades na sua defesa. De forma muito breve, refiro que importa distinguir os sinais e os toques sineiros. Ainda é frequente encontrar pessoas que se referem à sonoridade dos sinos, como cantar, chorar, repicar, badalar, bater, etc. Há toques com o sino parado (repiques), outros com o sino em movimento (os dobles). Mas é provável que possamos ser levados a concluir que estamos perante um quadro em que existe uma grande uniformização de sonoridade, isto é, um catálogo de toques que foi imposto no passado como regra e assimilado e retransmitido com rigor. A confirmar-se esta minha perspectiva só encontro como causa do fenómeno, a rigidez de normas impostas no século XVII pela hierarquia de Roma face à época, numa multiplicidade e desorganização no acompanhamento da liturgia e outras celebrações, e numa necessidade de pôr termo a uma certa indisciplina generalizada no topo das torres sineiras. Dando resposta a recomendações da Santa Sé, para que os toques sineiros tivessem regras em todo o território nacional e na busca de reconhecimento para obtenção da elevação da Capela Real a Patriarcado, D. João V procurou que prontamente fossem estabelecidos procedimentos protocolares nesse sentido. Graças à obra do Padre António Rodrigues Lages, num manuscrito de 1760 que ofereceu ao Mestre de Cerimónias da Igreja Patriarcal de Lisboa, é possível conhecer-se a paisagem sonora setecentista. A obra contém informação sobre a regulação das horas, e aponta a necessidade do estabelecimento de regras nas cerimónias litúrgicas e os momentos de intervenção da sonoridade dos sinos. Tudo indica que terminado o período de falta de uniformização dos toques sineiros, e estabelecido o «catálogo procedimental», foram séculos com grande fidelidade à uniformização nos templos e lugares.
C.P. - Hoje a profissão de sineiro está em vias de extinção. Não conseguem competir com os mecanismos de toque automáticos. Pode aprofundar?
M.A.F. - Tocar o sino nunca foi actividade profissional e essa função era em regra desempenhada por homens, provavelmente porque o peso dos sinos exige, além de mestria do toque, esforço físico. Mais uma vez sou levada a mencionar outra curiosidade, sobre as ditas superstições tão associadas à história dos sinos. Tocar o sino era actividade essencialmente masculina, e no passado era corrente esta afirmação «mulher que toca sino não casa» esta e outras superstições ainda estão presentes na tradição oral. Mas, os toques automáticos também expressam uma alteração na forma como se organizam as comunidades, designadamente a comunidade católica, na necessidade das pessoas coordenarem as suas actividades laicas e espirituais. A mecanização entrou para facilitar o papel do homem, todos aceitamos esse facto como uma resposta, é mais um sinal dos tempos. Mas, se a arte de tocar o sino for transmitida e valorada junto dos mais jovens, poderemos observar um fenómeno inverso.
C.P. - Foquemo-nos na indústria da fundição dos sinos? Pode abordar brevemente esta realidade?
M.A.F. - É fascinante esta arte e tem sido muito esquecida. Tenho a maior admiração pelo trabalho desenvolvido nas duas únicas fundições em actividade no nosso país, a fundição de sinos de Braga e a de Rio Tinto. Há a coincidência da fundição de Rio Tinto ter iniciado actividade em 1899, precisamente no mesmo ano que iniciou laboração a Fundição de sinos da Boca da Mata-Alvaiázere, fundada pelo Mestre António Alves Ferreira. Neste lugar, apesar da extinção da fundição já ter ocorrido «os sinos ainda falam». Inúmeras obras do Mestre fundidor e de seus netos, que prosseguiram actividade até 1962, atestam o reconhecimento devido, bastará referir dois sinos na célebre Torre de Dornes que datam de 1910, um sino com cerca de oitocentos quilogramas na Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia no Castelo, em Ourém, ou a beleza do sino da Igreja da Freixianda, isto a título de exemplo. Apontada como a última fundição de sinos artesanal do século XX, foi premiada em 1927 com a medalha de prata na exposição industrial de Caldas da Rainha.
C.P. - Este é um trabalho da Associação Al Baiaz, onde é vice-presidente. Pode falar-nos desta associação e das suas actividades?
M.A.F. - A nossa Associação de Defesa do Património foi constituída em 1998 e está sedeada em Alvaiázere. Prossegue como objectivos fundamentais e inscritos nos estatutos, o estudo e inventariação, defesa, valorização e promoção do património natural, arqueológico, histórico e património cultural deste concelho e concelhos limítrofes. Precisamente na tipificação das actividades a prosseguir, os seus estatutos contemplam como actividades - a promoção junto das instituições e organismos competentes, no respeitante à classificação de património natural e cultural. A Al-Baiaz tem procurado divulgar o património da região, através de jornadas, colóquios, palestras, visitas e outros meios. A título exemplificativo deixo as seguintes notas, no plano do património cultural em 1999, a associação Al-Baiaz apresentou às entidades competentes a proposta de classificação do Castro da Serra de Alvaiázere. Outro exemplo de actuação, mas agora no âmbito do património natural, segundo orientação do Professor Dr. Mário Lousã, nosso distinto associado e dirigente, foi realizado um exaustivo trabalho no plano da inventariação e classificação de espécies típicas dos terrenos calcários – as chamadas orquídeas selvagens, características deste maciço calcário de Sicó, a serra de Alvaiázere É nestes terrenos calcários que se encontra o maior número de orquídeas selvagens, o que deu origem ao seu reconhecimento e hoje integram o que se designa por Sítio Sicó-Alvaiázere (PTCON 0045). Este trabalho e a publicação de uma pequena obra, roteiro para orientação no terreno, representarão para sempre, um importante contributo da nossa associação na inventariação e identificação deste património natural. Da sua importância bastará referir que os habitats que possuem estas espécies devem ser rigorosamente protegidos por constituírem um dos Habitats Prioritários segundo Directiva 92/43 da União Europeia.
C.P. - Quando está previsto terminar o trabalho de recolha de informação e o reconhecimento dos sinos como Património cultural Imaterial?
M.A.F. - Ainda não se desenha no horizonte a conclusão do trabalho, pelo que ainda não se pode avançar com um calendário de formalização. Mas ainda no ano em curso, iremos realizar as Jornadas anuais da associação e esta temática, a linguagem dos sinos e o seu reconhecimento como património cultural imaterial será a temática deste ano.
Sara Pelicano
in:cafeportugal.net
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