Lançada nas redes sociais, a campanha conseguiu meio milhão de visualizações em menos de dois meses. E à caixa de correio da UNESCO já chegaram mais de 22 mil cartas a apelar para a paragem imediata das obras de construção da barragem, o que a EDP rejeita.
As últimas betonagens da obra de aproveitamento hidroeléctrico do Tua, a barragem que está a ser construída pela EDP na foz daquele rio, a um quilómetro da confluência com o Douro, estão praticamente concluídas. Numa corrida contra o tempo, o consórcio construtor, liderado pela Mota-Engil, faz avançar a obra nas frentes da central eléctrica e no que vai ser o circuito hidráulico de restituição. E é também uma corrida contra o próprio Tua, um rio que, por estes dias de chuva, tem teimado em mostrar a sua face de rio de cheias, com um caudal intenso, a ameaçar entrar pelas cavidades de rejeição. Mas a EDP mantém que o início do enchimento da albufeira ocorrerá ainda durante este mês de Maio, “após visita das autoridades”. A intenção é a utilizar a potência de 270 megawatts que está a ser instalada e começar a produzir energia até ao final do primeiro semestre de 2017.
Nas redes sociais, e em paralelo, a Plataforma Salvar o Tua, fundada em 2013 por um conjunto de organizações locais e organizações ambientalistas às quais se juntou uma empresa vinícola, procura aumentar outro caudal: aquele que ameaça inundar as instalações da UNESCO de cartas com pedidos para que a obra pare.
“Peço à UNESCO que cumpra a sua missão: proteger da destruição locais como o Alto Douro Vinhateiro e assegurar que as futuras gerações possam deles desfrutar. E peço à UNESCO para agir: fazendo uma visita à área, reunindo com todos os afectados pela construção da barragem e colocando o Alto Douro Vinhateiro na Lista do Património Mundial em perigo”, lê-se no texto enviado ao organismo das Nações Unidas.
A campanha assenta em quatro histórias-documentário, realizados por Jorge Pelicano, autor do premiado documentário Páre, Escute e Olhe sobre a linha ferroviária do Tua, suspensa desde 2008, depois de muitos anos de desinvestimento e a pretexto de um acidente mortal. Jorge Pelicano escolheu quatro personagens reais para documentar a última caminhada, a última vindima, a última colheita, a última descida de rio.
Não está a dramatizar. Este é mesmo o último ano do Tua, pelo menos como toda a gente que ali aparece retratada o conheceu. Já não é possível fazer caminhadas ao longo da linha (os túneis já estão emparedados, o património ferroviário há muito foi levantado), a desmatação já levou área de cultivo (mesmo que a cota máxima de enchimento (NPA) tenha descido, durante o processo de avaliação de impacte ambiental, para os 170 metros. E, a confirmarem-se os planos de arrancar com o enchimento da albufeira ainda neste mês de Maio, para que se começar a produzir energia no primeiro semestre de 2017, as alterações tornar-se-ão, então, definitivas. Serão 420 hectares de vale inundado, 19 quilómetros de linha submersos, e um novo plano de mobilidade cuja operação, da primeira vez que foi lançado o concurso, ficou deserto.
A campanha também está a decorrer em inglês. Há marcas, como a Patagónia, que comercializa roupa e equipamento de aventura nos Estados Unidos da América, que na passada sexta-feira incluiu a campanha “salvem as barragens portuguesas” na newsletter que enviou para as suas dezenas de milhares de clientes em todo o mundo.
E o vídeo da campanha já teve mais de meio milhão de visualizações. “Estamos muito satisfeitos, e até surpreendidos com a adesão que esta campanha está a ter”, disse ao PÚBLICO João Roquette, administrador do Esporão, a única empresa que integra a plataforma Salvar o Tua, e que é também o financiador assumido desta campanha.
O Esporão investiu 60 mil euros do seu orçamento de marketing para custear esta acção de sensibilização, referindo fazê-lo não apenas porque está preocupado com a qualidade do azeite e do vinho que quer continuar a produzir com origem no Douro, mas por uma questão de consciência ambiental e de participação cívica. “Se não chegarmos a ganhar esta batalha, e a barragem for construída, sei que não perderei tanto como aquelas quatro pessoas que Jorge Pelicano nos revela nos seus filmes. Eu vivo em Lisboa, não sofrerei tanto o impacto directo. Mas acredito que será todo o país que perde”, afirma o empresário.
O sabor amargo do Sabor
Faz sentido fazer estes apelos, a escassos dias de a barragem começar a encher? Os activistas acreditam que sim. Já perderam uma batalha: não conseguiram travar o Sabor, cuja barragem que submergiu “o último rio selvagem da Europa” está em operação plena desde Janeiro deste ano. Mas lembram-se de Foz Côa, e de as obras terem parado quando a construção do paredão já ia a meio. Desta vez, argumentam, está em causa o último rio de montanha, uma barragem cara que vai acrescentar quase nada ao sistema eléctrico nacional e que vai custar muito aos contribuintes e aos consumidores portugueses. “Parar agora a construção da barragem de Foz Tua é, pelo menos, vinte vezes mais barato do que deixá-la avançar e pagar, a posteriori, os custos de uma electricidade cara e de uma obra inútil e lesiva do interesse público”, argumenta a Plataforma Salvar o Tua.
Enquanto engenheiro do ambiente, João Joanaz de Melo, do GEOTA - Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e do Ambiente – a associação que tem a presidência da Plataforma Salvar o Tua –, faz muitas avaliações de impactos ambientais e tem dedicado a carreira académica ao estudo da eficiência energética e da sustentabilidade. Joanaz de Melo refere que os indicadores económicos destas novas barragens são “patéticos”, e que os resultados operacionais da exploração de Foz Tua vão estar próximos do zero – “se não forem mesmo negativos”, diz, ao PÚBLICO.
Não faz sentido nenhum, responde fonte oficial da EDP, mesmo quando confrontada com o decréscimo do consumo que a levou a aplaudir a decisão do governo de adiar a construção da barragem do Fridão, no Tâmega. Qual é o racional económico que continua a apontar o início da operação da central Foz Tua como essencial para o plano eléctrico nacional? “A obra de Foz Tua está numa fase de conclusão. A barragem está construída. Não faz sentido pensar em outro cenário que não seja o de conclusão das frentes em curso, fundamentalmente trabalhos de escavação a jusante da barragem”, limita-se a responder a mesma fonte da empresa.
De acordo com a EDP, a empresa já realizou cerca de 80% do investimento total previsto no projecto - só a construção implicou mais de 300 milhões de euros. Um dos intervenientes no projecto foi Souto Moura, que se estreou em projectos de barragem assinando o edifício do Aproveitamento Hidroeléctrico. O arquitecto desenvolveu o projecto com o objectivo de eliminar todo o carácter de “edifício” da construção para que esta passasse a ser uma máquina “inserida na paisagem”, enterrando a central, inserindo-a num bunker. A ideia foi reduzir o impacto da barragem na paisagem do Douro Vinhateiro, depois de técnicos da UNESCO terem ameaçado com uma desclassificação - mas se a obra da central hidroeléctrica fica praticamente enterrada, o paredão da barragem continua a exibir a sua altura de 108 metros.
Joanaz de Melo mostra-se inconformado, insistindo que valorizar a região do Tua e do Douro, fomentar o emprego e o crescimento económico não se faz com a construção de barragens, como argumenta a EDP, ou como tem defendido a Agência para o Desenvolvimento da Região do Vale do Tua (ADRVT). “Faz-se com a valorização dos recursos naturais, como tem feito o Geoparque de Arouca e o movimento turístico à volta do rio Paiva”, refere o presidente do GEOTA.
A ADRVT é composta pelos cinco municípios que foram afectados pela construção da barragem (Alijó, Carrazeda de Ansiães, Mirandela, Murça e Vila Flor) e é uma espécie de fiel depositária das contrapartidas financeiras pagas pela EDP para minimizar impactos e promover o desenvolvimento económico, social e ambiental da região. A criação de um Parque Natural foi uma das primeiras medidas anunciadas pela agência - mas não se conhecem muitas mais. O PÚBLICO tentou fazer um balanço da actividade com os dirigentes da estrutura, mas não obteve respostas em tempo útil.
De acordo com a EDP, presidida por António Mexia, o valor anual entregue ao Instituto da Conservação da Natureza durante a fase de construção, e que posteriormente remete à ADRVT a parte que lhe é devida, é de 470 mil euros. “Na fase de exploração da barragem será entregue 3% da receita líquida de produção”, refere a EDP, escusando-se a antecipar valores.
São exactamente os mesmos 3% de receitas geradas que a EDP entrega para o Fundo do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor, e que é gerido pela associação de municípios local. A EDP diz que, até ao momento e desde o arranque do projecto, entregou a este fundo 2,8 milhões de euros. Vítor Bebiano, proprietário da empresa de animação turística MapAventura, que se ocupava com a realização de descidas de cano-rafting do Sabor, refere ao PÚBLICO que, em termos turísticos, “tudo ficou morto” na região. A albufeira continua sem plano de ordenamento, nem sequer estão construídos os dois cais de embarque previstos. “Não tínhamos noção do que para aí vinha. Eu, que até defendia a barragem, não tinha percebido que o Sabor se ia transformar num Douro. Só que agora não serve para nada. Nem para o regadio nem para o turismo”, constata o empresário.
É para evitar situações idênticas que a Plataforma Salvar o Tua promete continuar empenhada, nas redes sociais, a conquistar mais adesões para a causa. “O Tua é um preso inocente que está no corredor da morte, a aguardar a injecção letal. Enquanto ela não acontecer, há esperança”, termina João Roquette.
Luísa Pinto
Correio da Manhã
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