Um grupo de amigos vai jantar fora e na hora de escolher o vinho, alguns pedem a Carta de Vinhos e escolhem o vinho que entendem. Os restantes aceitam a proposta de vinho da casa, substancialmente mais em conta que o vinho de marca escolhido pelos primeiros. No final, na hora de pagar, os de gosto mais requintado, sugerem que se divida a conta em partes iguais.
Serve a situação corriqueira para introduzir o tema quente das últimas semanas: as alterações ao financiamento das escolas privadas com contratos de associação celebrados com o Ministério da Educação.
A questão é sensível e facilmente caímos na demagogia barata ou na doutrina ideológica e por isso hesitei bastante em escrever sobre o assunto. Na verdade, 23 anos de escola pública, praticamente metade dos quais no exercício de funções de gestão e administração escolar, acarretam um conjunto de certezas que podem prejudicar um olhar mais assertivo. Não obstante, a vida ensinou-me que a verdade e a razão, seja qual for a matéria, nunca estão somente num dos lados. Vejamos, quando um conjunto de pais, aparentemente extremoso, se manifesta publicamente, exigindo a liberdade de escolha para escola dos seus filhos, envergando slogans com frases feitas, não inocentes, tipo - “ eu acredito, eu confio, eu escolho, eu matriculo o meu filho na escola com contrato de associação” – desconfio que a questão maior não seja uma preocupação sincera com futuro das crianças. Não se coloca sequer a hipótese de matricular os filhos em escolas privadas sem contrato de associação. Estranho. Para estes pais, a escola só é boa porque é privada e porque é financiada pelo Estado – “com os nossos impostos” como gostam de dizer. Sim, mas também, com os dos outros contribuintes. Não parecem equacionar a qualidade das restantes escolas, públicas ou privadas, não estão interessados em conhecer outros projetos educativos e exigem, porque sim.
Não chega. Não chega porque parece haver uma atuação orquestrada na metodologia usada nas manifestações sincronizadas e metodicamente organizadas, naquilo que, lamentavelmente, se designou por quartas-feiras amarelas. Para ajudar à desconfiança, olha-se de soslaio para a isenção dos órgãos de comunicação social, nomeadamente das televisões, no tratamento dado a questão, havendo mesmo quem verificasse que os pivôs dos jornais televisivos, ultimamente, vestissem muito de amarelo. Na mesma lógica, ex detentores de cargos públicos, vieram em defesa da importância da manutenção dos contratos de associação. Parece aqui haver uma lógica que vai muito além da preocupação daqueles pais que pretendem o melhor para os seus filhos.
Neste espaço, não cabem reflexões aprofundadas sobre as diferenças entre Escola Pública e Escola Privada, pretendo levantar um pouco o véu, ventilar algumas ideias e deixar as certezas para os decisores políticos, sempre tão certos e seguros das suas opções. Como ponto de partida, assumir que em qualquer civilização desenvolvida, plural e democrática, há espaço para as duas esferas: público e privado. A Educação, como trave mestra de qualquer sociedade, pode e deve fazer-se na perspetiva do Estado mas também com lógicas empresariais e liberais. A diversidade de abordagens, só pode enriquecer as sociedades. Falamos de complementaridade e não de exclusividade de nenhum dos setores. Esta visão globalizante da questão não faz de nós inocentes e obriga-nos a ter “ um olho no burro e outro no cigano”.
Nem muitos dos colégios que agora viram o seu financiamento reduzido, podem clamar por mais justiça, nem os decisores políticos dos últimos 30 anos, - hoje em dia acolitados pelos diretores das unidades organizacionais, comprometidos, pendurados, subjugados e manietados por lógicas político-partidárias nacionais e locais – podem vitimizar-se, carpindo lágrimas de ataques externos, não fazendo a auto critica necessária. Especificando: os contratos de associação foram criados para dar resposta à massificação do acesso à escolarização que ocorreu a partir da década de 70.
Durante décadas, o Estado foi incapaz de dar resposta à procura de escola na área da sua conveniência, a milhares de crianças e jovens. Socorreu-se do investimento privado, partilhando uma responsabilidade que, ao contrário do que se diz por aí, não é um exclusivo do Estado. Foi uma solução benéfica para todos os intervenientes, nomeadamente em zonas de grande densidade populacional mas também em territórios distantes da centralidade onde o Estado, ainda hoje, tarda em chegar. Nestas situações, analisando com objectividade caso a caso, o Estado deve manter-se como “pessoa” de bem e prolongar os contratos de associação. O mesmo já não deve acontecer nas situações de puro oportunismo que proliferaram a partir dos anos 80, com o beneplácito de alguns municípios e dos serviços centrais e regionais do Ministério da Educação.
Seria importante que alguém averiguasse como foi possível autorizar a criação de novas turmas, financiadas pelo Estado, em colégios recém-criados, enquanto se colocavam entraves às escolas públicas com disponibilidade de instalações e recursos humanos. (Estes caminhos ímpios, foram bem explorados pelo jornalismo de investigação protagonizado pela jornalista Sandra Felgueiras no programa Sexta às 9, RTP 1, do passado dia 20 de maio, um jornalismo incolor e pouco dado a doutrinas.)
Nestas situações, o Estado tem total legitimidade para cessar o financiamento a novas turmas. A questão é séria pois falamos de muitos postos de trabalho e da instabilidade gerada nas famílias, mas não há espaço para retrocessos. Nos últimos anos pediu-se aos cidadãos mais racionalidade no dispêndio de recursos públicos, como tal não pode o Governo intimidar-se com lógicas de poder, venham elas de onde vierem. Falamos de grupos financeiros, lógicas locais, corporativismo de classe e, não esquecer, a própria Igreja Católica.
Aos pais que exigem liberdade de escolha na escola dos seus filhos, dizer que os seus impostos não são suficientes para manter um esquema de financiamento aos contratos de associação e acrescentar que só alguns, poucos, têm acesso a tais condições.
Terminando: só alguns provam do tal vinho de marca, o que pode não ser um problema já que há muito vinho da casa de grande qualidade, muitas vezes superior ao outro mais cheiroso e bem rotulado. Pobre do vinho da casa, com o qual ninguém parece verdadeiramente preocupar-se. Já passaram muitas quartas-feiras, de várias cores vestidas mas mantém-se que só uma cor é que é boa. E assim não vamos lá.
Rui Machado
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