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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

A Festa de São Gonçalo de Outeiro

Cumprida anualmente no primeiro sábado que imediatamente se sucede ao dia de Ano Novo, a Festa de São Gonçalo de Outeiro congrega o labor e o empenho coletivo de dez mordomos que são os responsáveis por toda a logística relativa à manutenção desta ancestral tradição, cujas origens ainda não estão historicamente fixadas, mas que se pensa remontarem ao século XVIII.
Outeiro é uma pequena povoação que fica à margem imediata da estrada que liga Bragança a Miranda do Douro, bem próximo e em antecedência da vila de Argozelo, uma outra localidade cuja história está marcada pela influência dos Judeus. 

Em Outeiro não há referências a qualquer comunidade judaica, mas no morro que se desenvolve sobranceiramente na direção nascente dos dois principais núcleos do atual povoamento ergueu-se, pelo menos até meados do séc. XVIII, um importante castelo cujas origens se fixam no período medieval. 

O interesse e a importância histórica de Outeiro não reside apenas no seu castelo, outrora designado como o Castelo de Outeiro de Miranda. Quem passar na antiga estrada de ligação 218-2, vai deparar-se com um majestoso templo, a Basílica de Santo Cristo, a única basílica portuguesa situada em espaço rural. 

Mas a aldeia de Outeiro tem muito mais para mostrar e oferecer ao caminheiro ou viajante que se disponha a descobrir estas terras recônditas e belas que se desenvolvem numa faixa territorial fronteiriça do interior transmontano. 

Uma das tradições deste povo com maior interesse é a Festa de São Gonçalo, uma manifestação do solísticio que na região se designa como o “Ciclo das Festas de Inverno”. Cumprida anualmente no primeiro sábado que imediatamente se sucede ao dia de Ano Novo, o acontecimento congrega o labor e o empenho coletivo de dez mordomos que são os responsáveis por toda a logística relativa à manutenção desta ancestral tradição, cujas origens ainda não estão historicamente fixadas, mas que se pensa remontarem ao século XVIII.
O culto a São Gonçalo começa por ser a primeira curiosidade neste período de comemorações regionais onde prevalece, sobretudo, a figura de Santo Estevão e as festas relacionadas com o Reis e com o Carnaval. Esta será, portanto, uma primeira mas desafiadora incógnita em qualquer proposta de investigação que pretenda obter algum esclarecimento sobre as origens desta tradição que, à semelhança de tantas outras que ocorrem no concelho de Bragança e por todo o território do Nordeste Transmontano, mistura, de forma extraordinariamente humana, o sagrado e o profano. 

São Gonçalo (1187-1262), foi um santo que viveu em território português e sobre o qual existe o consenso geral de ser um excelente pregador dominicano que acabou por se instalar junto às margens do rio Tâmega, onde atualmente se ergue a Igreja e o Convento de São Gonçalo, em Amarante, para a partir daí pregar o evangelho. 

Ao que parece, a sua missão pregadora obteve um sucesso à escala permitida pela época e o seu posterior culto, após a beatificação, paulatinamente se espalhou por todo o Norte de Portugal e mesmo pelos domínios ultramarinos detidos por Portugal, de que foram exemplos a índia e o Brasil. Além do epíteto de “Santo Casamenteiro”, as orações a São Gonçalo revelam, sobretudo, a procura da cura, o controlo das calamidades naturais, a proteção dos condenados, a proteção da miséria, a recuperação de bens perdidos e a interferência divina para afastar os perigos e dar saúde aos anciãos. 

Como chegou o culto de São Gonçalo até Outeiro não se sabe muito bem, apenas se constata que a evocação deste santo é feita num período de festa revigoradora, de uma festa ritual que enfatiza o renascimento cíclico dos elementos congregadores e protetores das comunidades rurais do Nordeste Transmontano, onde os símbolos cristãos e profanos, assim como a música tradicional, tocada por gaita-de-foles, flauta pastoril, tamboril ou bombo, se misturam ordenadamente num processo gradual de comemoração em que quase sempre o pão emerge como o elemento centralizador e de destaque. Esse mesmo pão que no caso de Outeiro surge em forma de rosca ou mesmo de santo, em declarada evocação dos símbolos solares e divinos. 
Ramiro Romão
Conta-se, conta-nos o Sr. Ramiro Romão, um dos mordomos da Festa de São Gonçalo de Outeiro, que o culto deste santo e a construção da pequena capela que o acolhe e que se ergue timidamente mesmo em frente à majestosa basílica, começou devido a uma peste que quase dizimou toda a “criação” da aldeia. 

A LENDA FUNDADORA
Ramiro Romão, mordomo da festa, fala-nos sobre a lenda relativa ao culto de São Gonçalo. 
“Reza a lenda”, recorda-nos Ramiro Romão, que a devoção da população de Outeiro a São Gonçalo remonta aos inícios do Século XVIII. “Por essa altura terá havido aqui um surto de peste, muito usual nesses tempos, e uma vez que não havia tratamentos como há hoje, o povo da altura resolveu, em honra de S. Gonçalo, construir uma capela para que a peste fosse extinta. E, como de facto, isso aconteceu. Foi o milagre de São Gonçalo e passado pouco tempo os animais ficaram todos a salvo, ou seja, a peste desapareceu completamente e a partir de então a festa começou-se a realizar sempre no dia 10 de janeiro que é o dia de São Gonçalo”. 

Desta forma, explicada pela lenda, a população de Outeiro começou a celebrar a festa anual em honra de São Gonçalo, tendo posteriormente associado a essa celebração a tradição do "Charolo", num quadro festivo em que se percebe patente os diferentes momentos da festa tradicional transmontana, estando totalmente incorporados os momentos sagrados, como a liturgia cristã ou a procissão, e os momentos mais profanos, como a confeção das roscas e do charolo, o peditório, o leilão, a “Dança da Rosca” ou a “Pondorcada”.
O CULTO DO PÃO
Tudo começa nos dois dias anteriores ao sábado da festa com a confeção das roscas e a organização dos ramos e do “charolo”. Num salão da junta de freguesia local, equipado propositadamente para esse efeito com forno e amassadeira, os mordomos deitam mãos à cansativa tarefa. Mais de duzentas roscas vão ser amassadas, levedadas e cozidas. Depois de douradas e apetitosas ao olhar são colocadas em acolchoado adorno numa estrutura em forma de andor a que chamam “charolo”. 
Ana Quintas
ROSCAS FEITAS COM AMOR
Ana Quintas, mordoma da festa, explica-nos como são feitas as roscas 
Ana Quintas, mordoma da festa, explica-nos como são feitas as roscas. “ Logo de manhã os mordomos dirigem-se para o forno da aldeia e cada um faz a sua tarefa. É necessário sumo de laranja, peneirar a farinha, bater os ovos, fermento, manteiga, água e muito amor. Mistura-se tudo e amassa-se. Depois de misturados todos os ingredientes, a massa fica a repousar durante duas horas e meia. Posteriormente cortam-se pedaços de massa à medida pretendida e no entretanto vai-se acendendo o fogo". 

Simultaneamente vai-se batendo mais ovos para pincelar as roscas depois de serem moldadas em forma de sol ou em forma de um boneco que pretende a representação do São Gonçalo. Não raro, alguns dos pães de configuração antropomórfica representam também pares de namorados acompanhados de placas com iniciais de nomes para que a bênção do santo recaísse sobre eles. 

Noutros tempos, que é o mesmo que dizer há cerca de cinco ou seis décadas atrás, essas representações, e também as placas em pão com a primeira letra do nome das raparigas, eram as mais “mandadas” nas arrematações do leilão de sábado à tarde. 
Maria Helena Geraldes
AS LETRAS DOS NAMORADOS
“O charolo era a mocidade solteira que o fazia". Maria Helena Geraldes explica a festa do antigamente 
Maria Helena Geraldes, mulher já idosa e uma profunda conhecedora da tradição, conta-nos que “quando era nova” o “charolo” era feito só por jovens solteiros, quatro rapazes e quatro raparigas, mas a onda de emigração que se fez sentir sobre região “levou-nos a mocidade toda e tivemos que nos adaptar”. Naquele tempo, retoma a conversa a Srª Maria, “o charolo era a mocidade solteira que o fazia, porque são os rapazes solteiros que levam o charolo. Fazíamos também muito boneco em pão e a rosca tal e qual como é agora. E fazíamos umas placas com as nossas letras iniciais do nome. Aquelas que tinham namorado, os namorados queriam comprar essas placas, os outros rapazes que o sabiam puxavam, porque isto é leiloado, um mandava e outro mandava, que era para fazer pagar muito ao namorado pelo nome da namorada”. 

Agora são os mordomos, quase todos de idade avançada, que preparam os ramos e enfeitam o “charolo”. Logo que cozidas, as roscas são disposta num longo corrimão de mesas, “para descansar”. Em toda esta azáfama, que roda integralmente à volta do pão - de um pão que aqui surge como símbolo de ligação ao trabalho e à terra e com um manifesto significado religioso -, não há tempo para descansar. Tudo tem que ser feito de modo a que o pão que resulta de um intenso esforço e labor, o pão que se partilha entre os homens e se oferece ao “Senhor”, seja a dignificação de quem o preparou. Por isso coloca-se toda a entrega na composição daquele andor piramidal que deverá sair para a rua recheado de roscas e encimado por cinco ramos coroadores, onde prolifera a doçaria caseira, guloseimas, frutos secos e também algum fumeiro.

A tarde de sexta chegou ao fim. E enquanto se dá aqui e ali um ou outro retoque no "charolo" e se ultimam os ramos, o brilho nos olhos dos mordomos da Festa de São Gonçalo de Outeiro alumia já a noite espessa que num instante se instalou.
O SÁBADO DA FESTA
Logo bem cedo, pelo romper da manhã de sábado, um grupo de rapazes e mordomos acompanhados de gaita-de-foles, tamboril e bombo percorrem as ruas da aldeia num peditório para a festa. No outro bairro, um grupo de homens transporta o “charolo” da casa da Junta de Freguesia para a basílica de Santo Cristo , onde é colocado como um autêntico andor para fazer parte da Eucaristia em honra de São Gonçalo, celebrada por volta das 10:30 horas. Um pouco antes começam a chegar os filhos de Outeiro que por razões profissionais ou quaisquer outras habitam na cidade de Bragança. O grande templo da aldeia, húmido e frio, já guarda lá dentro o “charolo” e dentro em pouco vai acolher o calor e a fé da gente que neste sábado de janeiro vai venerar São Gonçalo. 
Zulmira da Purificação
A FESTA EM VERSO
Zulmira da Purificação Rodrigues construiu em verso todos as fases da Festa de São Gonçalo 
Após a celebração da missa, segue-se a cerimónia da procissão religiosa que é também acompanhada por música tradicional adequada à situação, onde se faz notar, mais uma vez, o som de gaita-de-foles, da caixa e do bombo. Nesta procissão, que sai da basílica para contornar a pequena capela, o “charolo” segue à frente, logo seguido do andor de são Gonçalo. O percurso é curto, fazendo-se quase sempre em território adjacente ao largo da basílica, mas tendo como ponto referencial a capelinha do santo cultuado. Depois do retorno feito ao interior do templo maior, o andor das roscas seguirá para o largo fronteiro ao edifício da Junta de freguesia, onde a festa haverá de ser retomada logo que todos os comensais repastem o almoço típico do dia de São Gonçalo. 
Sendo assim, e porque está a chegar a 1 hora da tarde, coloquemos a atenção na mesa da D. Maria do Céu para onde fomos convidados pelo seu filho António Carlos Bernardo. O Sr. Manuel Bernardo, que é o chefe de família, apressa-se a informar-nos que tudo ali é “caseiro”, até o bagaço que provámos em forma de aperitivo para comprovar a sua qualidade. Entretanto, e num ambiente de agradável conviviabilidade, foi chegando o butelo, as "cascas" de feijão, os chouriços, a orelheira, os chispes, as batatas e os restantes legumes. Degustámos com gosto este almoço típico de evocação do dia, que regámos regaladamente com um saboroso vinho de uns "pés de vinha" cultivados na encosta do castelo; um tinto produzido sem quaisquer aditivos e com uma graduação superior a doze graus. Informam-nos durante a conversa que esta é a refeição que está presente em todas as casas de Outeiro, por ser a gastronomia típica e da tradição do dia de São Gonçalo. 
Ao entrar da tarde já a gaita-de-foles e a batida do bombos se ouvem junto ao edifício da junta de freguesia, onde vão decorrer todas as “celebrações” profanas. Crianças, jovens e adultos de todas as idades e condições começam agora a juntar-se no largo fronteiro ao edifício público, bebem café no bar da junta e confraternizam entre si. Não tarda, homens e mulheres vão alinhar-se em duas filas, eles com uma rosca erguida ao céu e elas com os braços no ar. A “dança das roscas” é uma das mais interessantes manifestações rituais de exposição do pão que existem na região. Poder-se-á dizer que é mesmo única na aparente expressividade lúdica, embora pareça envolver um conjunto de gestos e formalidades imbuídas de um valor simbólico com significação própria de ritual. 

A “dança das roscas” tem como som de fundo a melodia tradicional da gaita-de-foles. Os homens e as mulheres organizam-se em duas filas tão compridas quanto o número de atores que nelas queiram participar. De um lado os homens, do outro as mulheres. O bailado arranca em movimento e cadência, os homens expõem as roscas ao sol e as mulheres dançam de braços erguidos a abanar. Cada fila avança no sentido da outra. Os rostos e os corpos aproximam-se. Depois, num movimento rápido, viram-se de costas, tocam-se rabo com rabo, e troca-se a posição da fila dos homens e da fila das mulheres. A dança repete-se com os mesmos gestos, uma, duas, três, quatro, tantas vezes quanto a duração da música o permitir, até terminar em contagiosa alegria. 

Após duas ou três danças, cumpre-se a tradição. Agora são as roscas dançadas pela mão dos homens que vão ser partilhadas entre os presentes. Cortam-se grossas fatias e distribuem-se por todos os que aí se encontram. Essa é a altura de partilhar; a altura da comunhão profana do pão entre homens, mulheres e crianças. 

O resto da tarde está reservada ao leilão. As roscas, uma a uma, vão ser vendidas pela maior licitação. O “charolo” encontra-se encostado à parede da junta de freguesia e de lá começa a ser retirado, pouco a pouco, todo o pão. Cinco euros, dez euros, quinze euros e por aí a adiante até a rosca ser entregue à melhor oferta. Este ano não há placas com as iniciais do nome das raparigas e não há rapazes a “mandarem” mais para fazer inflacionar a placa da rapariga amada. Se calhar também já não há namorados em Outeiro como havia antigamente, como no tempo em que era solteira a Srª Maria Helena Geraldes. Mas a figura do São Gonçalo ainda está presente no leilão, surgindo ainda alguns bonecos de pão que são quase sempre os mais "mandados". 
O presidente da Junta de Freguesia, César Garrido, que acompanha a festa de perto, explica-nos que o dinheiro obtido com o leilão reverterá integralmente para a confraria e também para ajudar a pagar os custos da festa, porque uma festa como esta tem despesas que necessitam de ser saldadas. 

A tarde já vai adiantada em Outeiro. Está na hora de entregar a responsabilidade da manutenção da tradição no próximo ano. Novamente os gaiteiros vão percorrer as ruas. As novas nomeações obedecem a uma organização que respeita a estruturação urbana da aldeia. Os próximos mordomos sairão das casas que se sucedem às casas dos mordomos que acabaram a missão. Mais uma vez o ambiente festivo se instala, um significativo número de pessoas, gaiteiros e restantes músicos param em frente das casas do novos nomeados. Toca-se, come-se, bebe-se muito, dão-se abraços e muitos vivas. Quando a noite cair é a pondorcada que reina. É nessa altura que a festa atinge o auge do profano e num excesso de tudo, dança-se, dança-se, dança-se.

António Luís Pereira

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