Entre cavalos e laranjeiras, há, na Quinta do Rei, uma caixa de música gigante. É um museu, fica em Palmela e tem 600 peças de música mecânica. Ali se reúnem grafonolas de diferentes formatos, campânulas de várias cores, fonógrafos raros e caixinhas de música invulgares. Uma colecção privada que nos dá a escutar sons que remetem para o passado. Límpidos ou roufenhos, deslumbram os mais novos e comovem os que nasceram antes.
No Museu de Música Mecânica, Luís Cangueiro, o coleccionador, diz-nos quem é: “Uma pessoa que nasceu numa aldeia de Miranda do Douro e fez o percurso natural como qualquer jovem. Estudou no liceu, foi para a universidade, foi para a tropa, deu aulas. Depois, começou a criar empresas de publicidade.” A vida correu-lhe bem.
Estudou Filologia Clássica. Nas suas palavras, “uma área um pouco estranha: é dar aulas de Latim, Grego e Literatura Portuguesa”. Bragança “era um bocadinho morto” e decidiu vir “cá para baixo”, conta. “Ainda bem, lá teria de me manter como professor e aqui tive oportunidade de criar riqueza, pelo menos para construir este museu.”
Dentro da caixa
Não sabe precisar quando é que a música entrou na sua vida, lembra-se de que sempre esteve presente, que a estudou e recorda os tempos em que, jovem, aprendeu a tocar acordeão. “Quando entrei na Faculdade de Letras de Coimbra, inscrevi-me logo no coral. Acompanhei sempre a música clássica e descobri mais tarde estas máquinas de música, que são o meu encanto.”
Mas o primeiro encontro com estes mecanismos sonoros aconteceu mais atrás no tempo, quando tinha sete ou oito anos e descobriu lá por casa uma caixa de música. “Eu não sabia o que era aquilo. Era uma peça em que se dava à manivela e aquilo mal tocava. Tocava muito mal.”
Resolveu, com a curiosidade própria de criança, abri-la e desmontá-la para ver como é que funcionava. Resultado: “Já não tive capacidade para voltar a montá-la. Aquela maldade ficou-me na memória. Não sei se isso também teria contribuído de alguma maneira para entrar neste campo”, questiona-se. E, com graça, conclui: “Vinguei-me. Comprei exactamente essa caixa de música, que agora tenho aqui. Não essa, mas uma igual e muitas do mesmo género (era uma Ariston de 1880 e tal).”
Música à manivela
A primeira peça que comprou para a colecção que agora partilha com os visitantes foi um gramofone, em 1987, não uma caixa de música. Luís Cangueiro explica: “A caixa de música propriamente dita é um instrumento mecânico diferente. O gramofone já exige uma gravação prévia, que toca os discos de 78 rotações por minuto.” E logo nos põe a escutar, nesse gramofone inicial à manivela, um disco dos anos 1930/40 de Júlia Barroso, “que ainda está muito presente e continua a ser nossa conhecida”. Achou mais apropriado do que nos dar a ouvir Frank Sinatra. Fez bem.
A colecção, que revela 250 anos de sons (do século XVIII até à década de 30 do séc. XX), foi sendo obtida em leilões de arte. “Eu já adquiria pintura, escultura e outros objectos de arte e apercebi-me de que havia caixas de música com sons completamente diferentes daqueles que estava habituado a escutar. Sons únicos. E comecei a descobrir um mundo novo nos instrumentos de música mecânica.”
Entrou então no circuito de antiquários, sobretudo no centro da Europa, que se dedicavam quase exclusivamente à venda destes mecanismos. “Peças que também existiam em Portugal, mas em pouco número. As peças com maior significado, mais importantes e raras, adquiri-as na Europa (sobretudo Suíça, França, Alemanha, Inglaterra) e Estados Unidos”, enumera.
Campânula como fachada
Quando chegou às 400 peças, entendeu que era importante dá-las a conhecer ao público. Queria criar um museu, mas que fosse na quinta da família, para a ter por perto. Depois de esperar “sete ou oito anos, dados os problemas burocráticos” (foi preciso realizar um plano de pormenor para obter autorização da câmara para construir um edifício maior do que o inicialmente previsto, que tinha apenas 180m2), conseguiu erguer o Museu de Música Mecânica.
O edifício foi imaginado por Manuel Marcelino, “apostei na juventude e este projecto já foi motivo de atenção de revistas internacionais de arquitectura, pelo menos em 14, de vários países da Europa e também nos EUA”, descreve com orgulho. E elogia o arquitecto: “Conseguiu realizar essa inserção de uma maneira notável, pensando ele que seria interessante mostrar o edifício como se fosse uma caixa de música gigante.”
Luís Cangueiro convida-nos a olhar para a fachada principal do museu e a identificar o “paralelismo com as chamadas ‘campânulas’ das caixas de música”.
O coleccionador define o museu em três vectores fundamentais: “A parte musical, a componente tecnológica e a questão sentimental.” No entanto, não descura os aspectos históricos e sociais: “Temos fotografias em que há um grupo de familiares e amigos em que o elemento principal, fulcral, é um fonógrafo ou um gramofone. Temos um álbum de família musical, em que há fotografias lindíssimas que nos mostram como é que se vestiam, como era a moda naquele tempo.”
Há peças destinadas a locais públicos, “onde as pessoas se divertiam e dançavam”, outras com jogos de um lado e grafonola de outro, “que se levava para piqueniques”. No museu podem encontrar-se postais que eram gravados e depois enviados por correio para serem escutados noutro gramofone.
Os tocadores de realejo dão-nos também um retrato da sociedade, eram homens que percorriam várias cidades da Europa, divertiam as pessoas e era daí que vinha o seu sustento. Muitas vezes tratava-se de ex-soldados que tinham ficado incapacitados.
Lembra ainda que, até certa altura, só as elites tinham acesso a caixas de música. “A democratização chegou nos inícios do século XX, com a descoberta do fonógrafo e mais tarde do gramofone. Aí, sim. Lembro-me de no meu tempo, nos anos 50, dançarmos ao som de uma grafonola. Nos anos 30, 40 do século XX, praticamente em todas as aldeias já havia uma grafonola. Antes, não era para toda a gente.”
Descentralizar a cultura
Sobre o espanto que as pessoas manifestam pela localização do museu no meio rural, argumenta: “É um espaço que está muito próximo dos grandes meios, nomeadamente Lisboa, e está num ponto estratégico nos eixos norte-sul, tanto pela Ponte Vasco da Gama como pela 25 de Abril.”
Sabe que ali não terá tantos visitantes como se estivesse num centro urbano, mas diz achar muito importante “descentralizar a cultura” e dá o exemplo de países como a Suíça. Ainda assim, com pouco mais de um ano de abertura ao público, já recebeu cerca de 11 mil visitantes. Desde crianças “com um ano, que já interagem com as máquinas”, até visitantes com idades bem avançadas, “a mais velha tinha 97 anos”, conta, para concluir, “todos se sentem aqui muito bem”.
O facto de estar numa quinta permitiu-lhe ainda concretizar um dos seus objectivos iniciais, “criar um projecto global em que lazer e cultura tinham de estar de mãos dadas”. Como já ali tinha instalado um centro hípico, agora proporciona os chamados “Dias na Quinta”, em que as crianças até aos 15 anos visitam o museu, brincam no campo de jogos e experimentam andar a cavalo. Também acolhe festas de aniversário.
Olhos arregalados
O PÚBLICO acompanhou um grupo de crianças do Colégio Valsassina, de Lisboa, na visita ao museu e testemunhou o interesse e deslumbramento que as peças causaram nos miúdos.
Depois de deixar os alunos contarem que tipo de colecções faziam — “todas as coisas esquisitas: pedras com formas estranhas, caroços”; “rolhas”; “moedas antigas do meu avô”; “minerais, conchas bonitas, búzios”; “chávenas de café, temos mais de 200” —, Andreia Dinis (coordenadora de comunicação do museu) mostra um cilindro metálico e informa que a primeira caixinha de música do mundo foi construída pelo relojoeiro Antoine Favre, que vivia em Genebra, Suíça.
“Construiu um cilindro ‘cheio de piquinhos’, onde gravou a música, e depois inventou um pente de lâminas vibrantes. O pente está sempre à frente do cilindro. Quando o cilindro começa a girar, vai levantar cada nota musical. E vai fazer assim a melodia.” O cilindro pode conter no máximo 12 melodias.
Há-de mostrar-lhes uma árvore de Natal que roda e entoa uma música da quadra, uma caixa com uma bailarina no topo que dança de forma “desengonçada”, “parece que voa”, um boneco que toca numas placas metálicas, “um xilofone”, e vários objectos do quotidiano, todos com música, claro. Desde uma lâmina de barbear ao tal álbum de fotografias musical que ao ser folheado activa o cilindro que esconde.
Também tiveram oportunidade de inserir moedas nalguns mecanismos e escolher as músicas a escutar. Olhos arregalados e expressões de espanto animaram as galerias do museu, onde há uma tentação enorme para mexer em tudo, mas que só se permite nalguns casos.
Biscoitos no fim da visita
O coleccionador diz ainda ter mais 200 peças em reserva, que irá substituindo à medida que puder. O museu conta com um centro de documentação, um auditório e uma galeria para exposições temporárias. No bar, vendem-se biscoitos de alfarroba e curcuma, feitos na quinta.
“No final das visitas, nós estamos aqui meia hora, uma hora a falar com as pessoas descontraidamente. As pessoas que entram aqui sentem-no como um museu de afectos”, diz e conta como, nas visitas que faz, “as pessoas começam a sentir pele de galinha, em muitas delas as lágrimas começam a cair-lhe dos olhos”.
Atribui esses sentimentos “a uma certa nostalgia por estarem a sentir, a ver e a ouvir as peças que desde há 250 anos passaram por gerações”. Por isso ou por muitos dos sons remeterem para a inocência infantil que ficou lá atrás.
Uma certeza o coleccionador tem: “Há uma paz interior que se consegue colher nesta quinta.” E está a falar verdade.
Rita Pimenta (texto) e Vera Moutinho (vídeo)
Jornal Público
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