Não se planta e se, por exceção, uma ou outra árvore, aqui ou além, surge – rara avis –, é quase certo que a não deixarão medrar a foice impiedosa do lavrador e o dente roaz do gado caprino.
A inconsciência, a ignorância e a selvageria, de mãos dadas, trazem como resultante este deplorável estado de desarborização em que o Concelho se encontra.
(O Transmontano. Suplemento da Illustração Transmontana, fevereiro de 1910)
Lameiro no Concelho de Bragança |
A primeira descrição objetiva da paisagem trasmontana foi publicada pelo polímata saxão J. Link, em 1805, no seu Voyage en Portugal, par le Conte de Hoffmansegg. A profunda desarborização do território, que tanto contrastava com a paisagem vegetal da Saxónia natal foi, talvez, a característica do coberto vegetal nordestino que mais surpreendeu o conde Hoffmansegg e o seu companheiro de viagem, J. Link. Conta este último que, nos arredores de Vila Flor, “o País retoma o seu aspeto normal. Campos cultivados num território desprovido de árvores e afloramentos rochosos desagradáveis à vista”. No Mogadouro, considera que “o País é uniforme e apresenta apenas campos cultivados e rochas nuas”. De Vimioso a Bragança regista “cinco léguas por um País árido e monótono à exceção de algumas pastagens ornadas de árvores”; e que Bragança “está situada numa planície desprovida de árvores e rodeada de pastagens e campos cultivados”. Finalmente, anota que a aldeia de Montesinho se situa “na cadeia de montanhas mais árida do Reino; não se vê uma única árvore ou mesmo um único arbusto: os urzais [rasteiros] cobrem-na na totalidade”. Ainda assim, Link refere que, pontualmente, despontava algum maciço arbóreo: Vinhais “está situada numa garganta fértil, rodeada de montanhas em parte áridas e em parte cobertas de bosquetes de carvalhos”; e a aldeia de França encontra-se “situada num local agradável, no sopé de uma colina coberta de bosquetes de carvalhos”.
Duas décadas antes, já o bragançano José António de Sá confirmava a existência de extensas áreas de baldios e maninhos desarborizados por toda a extensa comarca de Moncorvo, e informava que as cidades e vilas do Alto Trás-os-Montes “experimentam faltas notáveis de carvão e lenhas”. Este membro correspondente da Real Academia das Ciências de Lisboa antecipou-se, certamente por esta razão, aos agrónomos e silvicultores da segunda metade do século XIX quando, com veemência, defendeu a plantação de árvores de modo de garantir o abastecimento de lenhas e a proteção contra erosão.
António Xavier Pereira Coutinho, o autor da mais importante Flora de Portugal do século XIX, a terceira por ordem cronológica, ainda na condição de agrónomo do Distrito de Bragança, nas primeiras observações por si publicadas sobre a agricultura trasmontana, escreve: “No entanto a desarborização é quase completa no Distrito [de Bragança]; o arvoredo forma aqui a exceção, nunca a regra geral. É esta falta que dá principalmente o tom de aridez que reveste quase todas as suas paisagens; por esses descampados enormes, que se estendem léguas e léguas rodeando povoações dispersas, colocadas em meio das suas pequenas faixas de cultura, encontra-se apenas de quando em quando algum mato rasteiro, algum carvalho, ou um pequeno grupo de castanheiros, e o resto aparece cortado de despenhadeiros, donde a terra se despegou, deixando só a descoberto a rocha subjacente”.
A escassez de árvores, o aspeto árido da paisagem bragançana, e, genericamente, de toda a paisagem trasmontana, relatado para o século XIX, início do século XX, levantam um estimulante conjunto de questões:
Que paisagens precederam a paisagem contemporânea?
Se a escassez de árvores descrita pelos autores contemporâneos não é natural, quais foram os “promotores da sua alteração”?
Se a árvore indígena e as suas comunidades – os bosques – são um elemento reiterado na paisagem atual, o que mudou?
Como interagiam os componentes da paisagem novecentista e os componentes da paisagem do final do século XX, no âmbito dos sistemas de agricultura regionais?
UM MODELO INTERPRETATIVO DA DINÂMICA DA PAISAGEM DE BRAGANÇA
O estudo da dinâmica da paisagem requer a definição de um modelo conceptual de referência, a encontrar na informação paleoecológica, em particular nos diagramas paleopalinológicos. Não cabe neste texto uma descrição diacrónica exaustiva da dinâmica da paisagem no Holocénico. Para assistir o argumentário adiante desenvolvido basta explanar, de forma sucinta, a estrutura da paisagem pristina e identificar alguns momentos chave da sua evolução.
Fazendo fé na informação paleopalinológica recentemente reunida para o noroeste peninsular por José Carrión-García e colaboradores, há cerca de 8 000-8 500 anos, a “Terra Fria” bragançana – considerando-se aqui Terra Fria como os territórios grosso modo situados acima dos 700 m de altitude – era coberta por um espesso coberto florestal. Estava concluída a colonização das estepes frias pleistocénicas iniciada há cerca de 11 500 anos, no início do Holocénico. Interrompiam aqui e ali o dossel arbóreo algum afloramento rochoso, deslizamentos de terras colonizados por vegetação subserial, um rio torrencial a serpentear por entre depósitos aluvionares não arborizados e prados dependentes do pastoreio de grandes herbívoros selvagens.
A hipótese de uma paisagem vegetal pristina dominada por bosques é, desde há longo tempo, defendida entre os geógrafos e botânicos portugueses. Em 1932, Taborda de Morais mencionava que o “termo monte serve em Trás-os-Montes para designar os tratos de terreno cobertos de uma vegetação arbustiva... o monte corresponde aos diversos estádios de degradação da floresta primitiva”. Muito antes, em 1882, Pereira Coutinho abriu a dissertação por si apresentada ao Conselho Escolar do Instituto Geral de Agricultura para provimento da cadeira de Silvicultura e Economia Florestal com uma conhecida e lapidar citação de François-René de Chateaubriand:
“As florestas precedem os Homens e os desertos sucedem-se a eles”.
É hoje consensual que a regressão dramática do coberto florestal, expressa nos diagramas polínicos provenientes do noroeste ibérico a partir do Holocénico Médio, tem uma causa antrópica. No mais importante diagrama polínico realizado nas montanhas do norte e centro de Portugal continental, recolhido no Charco da Candieira (Serra da Estrela) por van der Knaap & van Leeuwen (1997), o máximo florestal ocorre há cerca de 8 500 anos. As descidas mais intensas do pólen arbóreo, e a concomitante expansão da vegetação arbustiva dominada por ericáceas, ocorrem há cerca de 8 500 anos, 7 200 anos, 5 500 anos, 3 200 anos e 800 anos.
É tentador relacionar estes eventos com períodos culturais precisos e, implicitamente, com inovações tecnológicas no uso do território. A agricultura atinge o território continental português há 7 500-7 250 anos e entre 7 000-6 750 anos espraiava-se já pelo vale do Mondego. Assinaláveis progressos tecnológicos caracterizam o período Megalítico, há 6 000 anos, e a Idade do Bronze Inicial, há cerca de 4 000 anos. João Tereso coloca no Bronze Inicial o desenvolvimento de povoados sedentários no norte de Portugal, certamente dependentes da integração de uma componente animal na gestão da fertilidade do solo. Depois de uma evidente regeneração do coberto arbóreo na Alta Idade Média, a fundação da nacionalidade despoleta um ciclo imparável de desarborização, associado a uma expansão da agricultura, testemunhada pelos pólenes de cereais. Paulatinamente, a paisagem primitiva, natural, deu lugar a uma paisagem seminatural e por fim a uma paisagem cultural, que pelo determinante agrícola convém designar por paisagem agrária. Este processo ficou provavelmente concluído no dealbar da Idade Moderna.
AS CAUSAS DA DESARBORIZAÇÃO DE BRAGANÇA
Na bibliografia da história ambiental e da agricultura, os promotores de alteração do coberto florestal primitivo que determinaram a estrutura da paisagem rural contemporânea raramente são contrapostos, e a sua importância relativa clarificada. A regressão do coberto arbóreo foi correlacionado com a produção de metais, a construção naval, a pastorícia (sendo a criação animal um objetivo per se), o consumo de lenha para fins diversos e, finalmente, a necessidade de espaço para a agricultura. Esta importante questão foi recentemente abordada por Aguiar & Azevedo, com recurso a um modelo numérico simples, integrando coeficientes técnicos relativos à dimensão da população, dieta alimentar (consumo de pão), gestão da fertilidade das culturas cerealíferas e produtividade das terras de cereal, lameiros e pastagens pobres. O modelo foi desenvolvido para a aldeia de Zedes, no Concelho de Carrazeda de Ansiães, com base em informação agronómica e socioeconómica referente à década de 1920. Esta aldeia, nesta janela concreta de tempo, foi tomada como representativa do metabolismo social e das características agroecológicas e tecnológicas dos sistemas de agricultura das sociedades orgânicas tradicionais da Terra Fria trasmontana, isto é, dos sistemas de agricultura pré-industriais da montanha trasmontana, imediatamente antes da brusca expansão das culturas cerealíferas às terras marginais (de monte) ocorrida no final da década de 1920, e da generalização do uso das descobertas e invenções realizadas pela ciência agronómica do século XIX.
De acordo com os supra referidos autores, a floresta primitiva foi derrubada porque ocultava no lenho, ou no solo, algo que a agricultura sempre necessitou: nutrientes (sobretudo, azoto e fósforo minerais). Embora na complexa cadeia causal da desarborização seja a causa maior, a agricultura foi, sobretudo, um promotor indireto da domesticação da paisagem pristina. Mais do que o espaço físico (solo agrícola), a agricultura orgânica tradicional carecia de vastas áreas de pasto no monte, a fonte primária dos nutrientes que alimentavam as exigentes plantas agrícolas cultivadas em redor dos povoados. Um hectare de cereal era, em média, fertilizado com os estrumes produzidos pelo pastoreio de 3,3 hectares de monte. O tandemfogo-pastorícia foi o instrumento da mobilização dos nutrientes em direção ao espaço agrícola, atuando como causa direta do retrocesso da floresta.
A agricultura está subordinada à lei da conservação das massas, vulgo lei de Lavoisier. Em 1841, Justus von Liebig o fundador da moderna nutrição vegetal, generalizou-a à agricultura do seguinte modo: “deve ser continuamente relembrado como um princípio geral do cultivo das terras aráveis, o que é retirado do solo a ele deve ser devolvido na exata medida”. Não surpreende, por isso, que a evolução e o desenho dos sistemas de agricultura orgânicos tradicionais tenham sido determinados pela contínua necessidade de reconstruir a fertili dade da terra dissipada pelas plantas agrícolas. Estabrook, por exemplo, em 1998, demonstrou experimentalmente que a transferência de fertilidade das pastagens pobres e pousios em direção às áreas cultivadas era uma das principais funções desempenhada pelos ovinos nos sistemas tradicionais de agricultura da Beira Alta. Gusmão, em 1964, já havia reconhecido a mesma função no Barroso. Os memorialistas da agricultura do início do século XX falam, inclusivamente, de uma vocação “copropoiética” do gado ovino. O uso de herbívoros domésticos na extração, transporte e deposição de nutrientes foi uma das soluções mais eficientes e duradouras na gestão da fertilidade da terra: provavelmente generalizada na Idade do Bronze, persistiu até à chegada dos adubos químicos de síntese, em pleno século XX.
A incompatibilidade do bosque com o uso pastoril e agrícola do território envolve um vasto conjunto de causas de índole ecológica. Em primeiro lugar, a flora herbácea dos bosques é menos produtiva do que a vegetação pratense subserial, das pastagens pobres e lameiros. É também menos palatável. Por exemplo, as plantas herbáceas dominantes nos bosques de carvalho da Terra Fria são rejeitadas pelos gados. As plantas agrícolas e as melhores plantas pratenses dos lameiros de regadio e secadal são estritamente heliófilas: a sombra conduz à sua substituição por espécies indesejáveis. Depois, é difícil, quando não impossível, conduzir rebanhos em ambiente florestal: os gados tresmalham-se com facilidade e os predadores espreitam. Finalmente, o solo agrícola é finito: onde há árvores não há espaço para as plantas agrícolas.
A estrutura e funcionamento do sistema de agricultura adiante pormenorizado (vd. ponto 1.4) implica que a capacidade de sustentação de indivíduos humanos na sociedade bragançana pré-industrial era máxima na ausência de floresta, com todo o espaço direta ou indiretamente empenhado na satisfação das necessidades alimentares humanas. Por conseguinte, sob uma dinâmica populacional malthusiana, comum a toda a Europa pré-industrial, a destruição da floresta era uma inevitabilidade. A paisagem desarborizada que caracterizava a Terra Fria Bragançana é o produto de uma história secular de nutrient mining (mineração de nutrientes), um conceito muito útil recém-introduzido na literatura de história da agricultura.
Contudo, importa também não menosprezar, quanto às causas da desarborização da região de Bragança, o consumo de lenha devido às dezenas de fábricas de aguardentes instaladas em Trás-os-Montes a partir de 1760 (mais de 120 na primeira década do século XIX, em todo o Norte de Portugal), numa primeira fase pela Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, que dela necessitava para tratar os vinhos de exportação; e numa segunda fase, a partir de meados do século XIX, instaladas por particulares às dezenas por todo o Nordeste Trasmontano, nomeadamente no Concelho de Bragança, onde entre 1858-1880 surgiram, pelo menos, 17 fábricas de aguardente ou destilação de vinho – em anos de colheita média de vinho, por 1880, Bragança fornecia aos
centros consumidores mais de 140 000 litros de aguardente –, e que contribuíram para um elevado consumo de lenhas, de tal modo que, uma vez esgotados os recursos locais, os seus proprietários mandaram vir a lenha de locais a mais de dez léguas, em carros de bois. A Companhia do Alto Douro, nas primeiras décadas do século XIX, teve de desativar algumas das suas fábricas de aguardente devido à escassez de lenhas. Em 1813, já José Bonifácio de Andrada propunha a utilização do carvão no Alto Douro, “onde há tanta falta de lenha”.
Convém, ainda, lembrar que era igualmente à base de lenhas e, portanto, à custa da floresta que funcionavam os fornos de produção de cal existentes em muitos dos concelhos trasmontanos, nomeadamente, no que a Bragança diz respeito, os fornos de Cova de Lua, Rabal, Rebordãos e São Pedro.
O abate das árvores ligado à construção dos caminhos-de-ferro, assinalável noutras regiões do País, teve pouco significado, como é sabido, na região de Bragança.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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