Mas ninguém poderá conhecer uma cidade se não a souber interrogar, interrogando- se a si mesmo…
(José Cardoso Pires, Livro de Bordo, 1998)
O passado (mais remoto ou mais próximo) só existe quando o presente o identifica e o valoriza.
(Maria Calado, Sociedade e Território, 1991)
O estudo desta exigirá pesquisa demorada, incompatível com este trabalho, passando pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo e arquivos da Cidade de Bragança, no sentido de se detetar, através das mais diversas fontes históricas (registos paroquiais, processos judiciais, arquivos das instituições da Cidade, jornais quando existem, etc.), a importância dos diferentes grupos sociais, as atividades profissionais, fortunas e rendimentos, o associativismo e os múltiplos aspetos da vida quotidiana de Bragança – hábitos sociais, trajes, mesa, lazer e divertimento, devoções e práticas religiosas, saúde e higiene, e a atitude perante a morte, entre outros aspetos.
Assim sendo, iremos procurar dar um primeiro contributo para esse estudo, conscientes de que a nossa abordagem, além de discutível, é meramente introdutória, tendo em consideração, por vezes, mais a região de Bragança, em sentido lato, do que o Município propriamente dito, uma vez que os raríssimos testemunhos de que dispomos sob o ponto de vista da sociedade, para o século XIX, têm em consideração a região trasmontana (entenda-se, o Alto Trás-os-Montes), e não o Concelho de Bragança, cujos hábitos e práticas sociais, porém, não difeririam significativamente do Nordeste Trasmontano – a não ser quanto à Cidade de Bragança, a qual, enquanto único centro urbano da região, quer pela sua estrutura social, quer pelos serviços e equipamentos de que estava dotada, apresentará traços distintos.
A fonte mais importante para o conhecimento da sociedade trasmontana nas primeiras décadas do século XIX, apenas utilizada até hoje por um dos autores desta obra na sua tese de licenciatura sobre Trás-os-Montes, é o Portugal and Galicia do conde de Carnarvon, que visitou a província em 1826-1827.
Segundo ele, Trás-os-Montes constituía uma região habitada por um povo muito peculiar, incansável e intrépido, a única parte da população portuguesa que manteve o seu caráter original, inabalado ao longo dos séculos, uma raça máscula que possuía na perfeição as virtudes selvagens, a primeira a revoltar-se e a última a ser dominada. Nenhum moderno refinamento enfraquecera a sua dureza nativa, continuando os seus habitantes a distinguir se quanto a maneiras, sentimentos e, inclusive, na aparência externa, dos seus compatriotas e da restante “comunidade europeia” – remata o autor que estamos a seguir, porventura com algum exagero.
Trás-os-Montes era a terra favorita dos “valentões” – expressão que também nos aparece nos documentos da época –, homens “bravos” que habitavam nas partes mais selvagens da região, conhecidos entre si através de certos sinais e pela sua terrível reputação. Caracterizavam-se como justiceiros e alguns eram, de facto, espíritos honrados, embora deturpados, atuando no desafio da lei, fiéis a um falso e deturpado sistema de direito. Todavia, a maioria degenerara em simples bandidos, cujo orgulho consistia em levar a cabo qualquer façanha, mesmo que arriscada, executando qualquer crime por mais atroz que fosse, e com mais empenho que qualquer outro homem. Nalgumas partes de Trás-os Montes, constituíam quase uma classe à parte, opondo-se à justiça, aterrorizando as testemunhas, que não se atreviam a depor contra eles ou contra quem eles dependiam, intimidando ou corrompendo as autoridades locais.
A fidelidade ao chefe era, talvez, a única virtude redentora destes homens – diz Carnarvon. Estes “bravos” tinham dependido anteriormente de alguns nobres, cujas ordens cumpriam com uma devoção que roçava o heroísmo, desfrutando, em compensação, do seu apoio e proteção. A maior ou menor proteção que um nobre lhes podia conceder foi durante muito tempo considerado um bom critério da influência pessoal dessa “aristocracia”, e o número dos que se encontravam ao seu serviço era motivo de honra e objeto de inveja. Este sistema prevaleceu em Trás-os-Montes, e embora a alteração dos costumes pelo tempo e a evolução do caráter dos nobres tivesse dissolvido essa relação, ainda existia, por um lado, um forte sentimento de proteção e, por outro, de ligação.
Os “valentões”, uma “raça medonha” em Trás-os-Montes, eram quase um corpo de homens à parte, em virtude da manutenção dos costumes do estado feudal que prevaleceram na região. Passando os limites de Trás-os-Montes, sozinhos ou, por vezes, em número considerável, quando privados de um poderoso protetor ou perseguidos por uma casa rival que pretendesse vingar-se deles, invadiam o Minho, dedicando-se à pilhagem.
Este mundo feudal manteve-se preservado nas principais famílias da região. Um forte sentimento de superioridade de sangue, que separava estes nobres da restante sociedade e existente mesmo no seio das suas próprias famílias, marcava os seus hábitos sociais, mantendo inalteradas as velhas fórmulas ancestrais. As crianças habitavam em divisões separadas nas alas distantes de velhas mansões, e só bem após o tempo da adolescência recebiam, ajoelhados, a bênção dos pais. Não lhes era permitido tomarem as suas refeições à mesma mesa que os pais, e não podiam manter-se cobertos na sua presença ou sentar-se sem a sua autorização expressa. Os hábitos familiares da vida moderna não tinham invadido ainda os velhos e patriarcais corredores das casas nobres, formas de um legado primitivo que se mantinha de modo inflexível.
Nas famílias nobres ou enobrecidas, a jovem senhora da casa, mesmo quando saía para tomar um pouco de ar fresco, era precedida do escudeiro da família – embora ele já não carregasse escudo –, marchando à sua frente com um passo solene e medido, a cabeça descoberta, segurando o chapéu, humildemente, na mão. Vem a talhe de foice, aliás, referir que já o bragançano António de Sá, em finais de Setecentos, anotara que, “principalmente em Bragança”, as mulheres escondiam-se dos homens, não falando “senão às pessoas muito chegadas em parentesco, de sorte que, ainda entre casas amicíssimas, as senhoras não se comunicam com os homens”. “Não aparecem nas janelas; escondem se de trás de rótulas apertadíssimas, que abrem para olhar muito pouco, e com muita cautela, e se, os homens vendo-as, se não retiram, são reputadas inonestas”.
Trás-os-Montes era assim um território onde reinavam o banditismo e a vendetta, marcado sociologicamente pela existência de clãs rivais, reportando-se a grupos políticos distintos – absolutistas/miguelistas ou liberais, numa primeira fase, a que se seguiram os progressistas e regeneradores numa fase mais adiantada do século XIX.
Os chefes dos clãs, nobres ou grandes proprietários eram-no, geralmente, de forma hereditária. As famílias poderosas rivais mantinham o seu estatuto graças à instituição do morgadio – a abolição dos vínculos, com a lei de 19 de maio de 1863, extinguiu de direito mas não de facto os morgadios; e o Código Civil, estabelecendo uma nova moldura jurídica, surgiu em 1867 –, o qual, com o celibato, permitia manter a integridade do património.
Durante muito tempo, em Trás-os-Montes, fez-se sentir a insegurança das pessoas e das propriedades devido à sua natureza montanhosa e à dificuldade das comunicações, fatores que, entre outros, impediam o funcionamento da justiça. As eleições revestiam muitas vezes as lutas ou rivalidades entre os clãs.
Ao longo do século XIX, a organização dos clãs entrou em decadência. Como demonstraram Léon Poinsard, no Portugal Ignorado, e Paul Descamp, no seu Le Portugal, o banditismo no Nordeste Trasmontano desapareceu com as estradas e o caminho-de ferro, mas o espírito de clã manteve-se. Continuaram a existir conflitos que levavam a vinganças privadas, nomeadamente, a propósito das mulheres e dos direitos de propriedade insuficientemente definidos pela ausência de cadastro e de uma má regulamentação, por exemplo, no que dizia respeito à utilização da água no Verão. O espírito de clã acabou por dar origem às rivalidades coletivas entre as aldeias, que vieram até aos nossos dias.
Na segunda metade do século XIX, o antigo chefe de clã passou a ser um homem influente, rico, um grande proprietário (entenda-se, não aquele que tinha um verdadeiro domínio, mas o que possuía parcelas disseminadas, em grande número), que dava trabalho aos cabaneiros, concedia empréstimos aos agricultores, apoiava os mais desfavorecidos e concedia dinheiro para as festas populares. Com a sua proteção, as famílias camponesas podiam esquecer impunemente o pagamento de impostos, isentar os seus filhos do serviço militar e obter pequenas vitórias na justiça. Uma “autoridade social” deste género dirigia a opinião pública, de tal modo que, quando havia eleições, votavam como ele, sem se preocuparem com o partido em que votavam.
Os textos dos autores referidos, todos estrangeiros, permitem-nos apreender, assim, as características mais impressivas da Sociedade Bragançana na Época Contemporânea.
Em primeiro lugar, a permanência de uma aristocracia feudal ou feudalizante, típica do Antigo Regime, uma oligarquia fundiária avessa a quaisquer mudanças, que moldou “de forma relativamente nova... antigos privilégios”, “mantendo muito da estrutura subjacente”. A fraqueza da reduzida burguesia local – o que explica a difícil e lenta implantação das ideias republicanas no Município, como em todo o Distrito de Bragança –, e a pobreza de uma população analfabeta explicam que o “cidadão” não substitua o “súbdito”, que não se ponha em causa o poder aristocrático dominador, que o povo obedeça ao cacique influente como rebanho, e que humildemente agradeça… o que lhe é devido!
Em segundo lugar, a forte diferenciação social existente entre ricos e pobres, entre os proprietários e os camponeses por um lado e, por outro lado, a distinção entre os habitantes da Cidade e a população rural das freguesias do Município. Esta separação de classes, de grupos sociais, em Bragança, seria um pouco mais atenuada, por força da presença dos militares – os oficiais das unidades aí aquarteladas, independentemente da sua origem social, convivem facilmente com a elite local –, dos quadros da administração pública e da justiça – bacharéis e licenciados –, e de uma pequena e média burguesia ligada à atividade do incipiente comércio, que fazem a ponte entre a aristocracia fundiária – a riqueza está na terra – e o povo.
Contudo, mesmo na Cidade, as diferenças sociais permanecem marcadas até à segunda metade do século XX (até 1974?), e as formas de tratamento social, assim como a frequência distinta de cafés, clubes e outros espaços públicos, pautam uma hierarquia social do quotidiano não negligenciável.
De uma maneira geral, concordamos com Maria Alcina dos Santos, quando, a propósito das elites transmontanas do Estado Novo, refere que o povo não dispunha de quaisquer condições “para resistir ao domínio das elites”, nem para anular “a profunda separação” existente entre os que trabalhavam e os que possuíam a terra.
Se o Antigo Regime, sob o ponto de vista económico, se manteve no Distrito de Bragança até ao século XX, então, não havia quaisquer condições para abalar a estrutura hierárquica de uma sociedade anacrónica, tradicional, virada para o passado e não para o futuro, que teimou em persistir e logrou novo fôlego com o regime autoritário do Estado Novo, como se, na expressão de Alcina dos Santos, o hábito fizesse o monge. Esta estrutura social sofreu, logicamente, um forte abalo com a vaga de emigração que se fez sentir na década de 1960 e primeiros anos da década de 1970 – mais de quatro mil emigrantes saídos do Concelho de Bragança entre 1964-1974, segundo as estatísticas oficiais. Apesar disso, nas vésperas da Revolução do 25 de Abril de 1974, ainda se fazia sentir em Bragança a discriminação social, a distinção de classes, dois mundos à parte, convivendo, mas não se misturando – refira-se, a título de exemplo, a segregação espacial no café Chave de Ouro, na Praça da Sé, entre “notáveis” e “populares”, que veio até ao nosso tempo.
Mesmo no mundo rural, nos lugares ou aldeias do Município, a posição social e económica dos seus moradores estava longe de ser idêntica ou homogénea. Há ricos e há pobres, há senhores da terra e trabalhadores rurais, há quem mande e quem obedeça.
Trindade Coelho, a este propósito, recria, em 1901, o diálogo que, ainda em criança, tivera com um “tio já velho”, o qual confirmava “que afinal somos todos parentes cá na vila”. “Os pobres e os ricos, todos?”, questionava Trindade Coelho. E o tio respondeu-lhe “Sim, todos; mais por aqui, mais por ali…”.
Adriano Moreira, escavando o imaginário da sua povoação de Grijó, Macedo de Cavaleiros, na década de 1920, navega no mesmo sentido, ao referir-se que “o valor da democracia civil fazia com que a relação patrão-empregado não tivesse um grande significado entre gente que não se diferenciava grandemente pelos meios de fortuna”. Mas regista que existia uma “pequena nobreza não coroada”, instalada na “casa grande que ostentava os seus criados, uma designação suposta de prestígio social” – embora a prática da torna-jeira impedisse “que ganhasse predominância uma distinção baseada na referência à posse dos meios de produção".
Jorge Dias, na sua monografia sobre Rio de Onor, freguesia do Concelho de Bragança, parece concluir que a aldeia constituía um “arquétipo do igualitarismo rural” e que portanto a caraterística mais importante de Rio de Onor era “a sua extrema igualdade social”. Brian O’Neill, porém, mais tarde, estudando uma pequena povoação agro-pastoril do Alto Trás-os-Montes ou Terra Fria, põe a tónica na desigualdade social existente dentro dessa pequena comunidade, pondo em causa, assim, a visão igualitária de Jorge Dias. A igualdade social nesta aldeia apenas se concretizaria em certos momentos, existindo contudo “no resto do tempo uma hierarquia económica bem nítida”.
Trata-se de uma leitura apressada da excecional monografia de Jorge Dias. Com efeito, segundo este antropólogo, os habitantes de Rio de Onor davam “a impressão de terem todos o mesmo. Mas na realidade não é assim”.
Este autor refere, com efeito, que por 1945-1950 existiam neste povoado seis famílias que viviam bem; sete que não viviam mal; vinte que não colhiam o suficiente, tendo de comprar aos mais ricos o pão que lhe faltava, em jeiras ou com o dinheiro da venda do carvão; e sete que chegavam a passar fome nos anos maus ou quando havia escassez de trabalho. Por outro lado, as novas famílias constituídas a partir da divisão da casa, que tinha sido até então indivisa, deixaram de pertencer ao conselho dos vizinhos ou famílias de Rio de Onor, ao qual pertenciam os que tinham gado nos coutos comunitários. E conclui mesmo quanto à “desigualdade social e de direitos, que ao mesmo tempo é também desigualdade económica”.
Não será esta nova sociedade que O’Neil vai encontrar, quatro décadas mais tarde em relação a Jorge Dias, no universo que estuda, onde a diferenciação socioeconómica é agora mais evidente, atenuadas ou apagadas as formas de comunitarismo igualitário e de interajuda – a torna-jeira, a vezeira, o rebusco, o galego, do passado?
Seja como for, todos os autores referidos acabam por confirmar que havia ricos e pobres – “senhores” e “morgados” por um lado, camponeses e pequeníssimos proprietários, por outro lado –, que existia uma diferenciação social no mundo rural de Bragança como do Nordeste Trasmontano, com matizes diversas, é claro, em função do maior ou menor isolamento das aldeias, dos diferentes tempos históricos, e da riqueza ou pobreza dos povoados. Em Bragança como nas suas freguesias rurais, de 1820 em diante, a hierarquia social manteve-se estável, “para além das alterações formais dos regimes políticos” – como escreveu Adriano Moreira.
É neste contexto de um mundo arcaizante, fortemente hierarquizado, que temos de entender a evolução de Bragança e do seu Município quanto à sociedade e seu quotidiano, nos séculos XIX e XX. Procurámos valorizar, na medida do possível, características de índole cultural e civilizacional, aspetos ligados à temática dos “quotidianos”.
Pensamos que não há grande e pequena história, que há apenas boa e má história. O que aqui se traz resulta, por vezes, de tímidos passos em terrenos escorregadios. É apenas um começo… Um trabalho mais refletido sobre estas matérias justificaria uma definição, ainda que aproximada, dos objetos – sempre difícil de fazer por serem de contornos vagos e difusos – e exigiria um “namoro” com outras áreas do saber, que entram nos terrenos sociológico e antropológico e no fugidio território do “mental” e das “mentalidades”.
Na construção deste capítulo, acabámos por destacar e valorizar documentos que nos parecem ter alguma riqueza informativa e serem ilustrativos de aspetos civilizacionais e culturais significantes. Outros, porventura mais importantes, não puderam, por enquanto, ser considerados. As fontes mais privilegiadas – na impossibilidade de realizar, para já, outras pesquisas – provêm, essencialmente, do mundo da imprensa. São documentos que podem ser elucidativos, se devidamente interrogados, uma vez que levantam complicadas questões hermenêuticas que tentaremos dilucidar ao longo do texto.
Iremos falar, para o lapso de tempo que nos propomos abordar, desse espaço ocupado e transformado por homens que aqui escreveram e inscreveram a sua história, que afeiçoaram e foram fazendo a Cidade. Algumas características que marcam (evolutivamente) os tempos que aí se vivem e os espaços em que se inscreve a sua história são o resultado de um longo processo de humanização; são o resultado das diversas e diferentes “braganças” que se sucederam no tempo, interagindo e sobrepondo se num complexo processo dialético - “A cidade é permanência de várias sequências temporais no espaço”.
A história do aglomerado vai pulsar em consonância (maior ou menor) com o ritmo histórico de complexos histórico-geográficos mais amplos. E isto, apesar de desfasamentos que, em relação a outros espaços – quando se procede a análises sincrónicas –, lhe marcam a história e a fisionomia. Iremos falar desse meio urbano, num determinado período, com a sua identidade própria, tecida através dos tempos, num processo complexo de evoluções e retrocessos, de sucessos e insucessos, que de tudo isso a história é feita. Identidade que resulta de diálogos e trocas – contágios, “importações”, “exportações” – com os espaços de que recebe influências e com os quais se rela ciona. E, um meio como este se é, como todos os outros, muito marcado pela história, também acaba por marcar a história.
Envolventes que marcam a história dos seus territórios, a “montanha”, a interioridade, o isolamento, ajudam a compreender certos traços culturais, variadas inércias, diversas persistências, alguns arcaísmos e, por vezes, certas originalidades e especificidades. Os problemas de subalternidade – que, com frequência, estão na origem de representações dramáticas – e os desfasamentos reais, mais acentuados em dados momentos são mais o resultado da história, da ação dos homens, do que propriamente das condições ditas naturais. Tempos houve em que um certo isolamento foi até estimulante e contribuiu para preservar atividades industriais com significado económico e social.
Este modesto estudo é também um contributo singelo para melhor conhecer uma pequena fatia da história de Bragança, feita por homens, que aqui “gostavam” de se perder e de se encontrar, de viver, nestes metros quadrados, as vidas que lhes deram para viver (embora muitos deles conhecessem um quotidiano tecido, não raras vezes, de incertezas, de angústias e de misérias); que daqui partiram (e em dados momentos foram muitos) e que aqui chegaram. Foram eles que ajudaram a fazer a Cidade e que, com muitos fios, teceram a sua história…
É preciso, por isso, conhecer esses homens que antes de nós viveram e que permanecem vivos graças ao que construíram e edificaram e aos legados que ainda perduram e povoam o nosso dia-a-dia. Pode afirmar-se, por conseguinte, “que a cidade é, em parte ou no todo, um testemunho material da atividade humana e, por isso mesmo, um documento”.Um documento difícil de interrogar. Além do mais, há muito de insondável no passado, porque como afirma Celine, com algum exagero mas muita razão, “nada se sabe da verdadeira história dos homens. Tudo o que interessa, passa-se na sombra”.
Bragança tem uma história feita com várias e diferentes histórias: as que foram, as que se viveram, as que se contaram (e contam…). E se temos de falar dessas diversas e sucessivas “braganças”, que se sucederam no tempo, que fizeram e talharam a sua história, também temos de realçar que, em cada momento (e em todos os momentos), não há uma só Cidade, uma só Bragança. Coexistem no seu espaço, a cada tempo, várias cidades, “braganças” variadas, heterogéneas e heteróclitas, com espaços diferenciados, que interagem e conflituam. É que todas as urbes são múltiplas e diversificadas. Plurais. Com diferenças várias em diversos domínios e campos.
É assim no que respeita à malha urbana – que integra vários sítios, mais e menos qualificados, mais e menos centrais, mais e menos marginais –, no que concerne ao tecido social variado, no que tem que ver com o panorama económico diversificado, no que diz respeito às suas díspares e diferenciadas atividades, no que toca a manifestações e realizações de variadíssima ordem, no que se relaciona com as diferentes criações artísticas, com as múltiplas e variadas demonstrações “espirituais” – são ideias e perspetivas de análise que vão “nortear” as abordagens que efetuamos. De todas estas variadas “diferenças” se faz, a cada momento, a cidade. Diferenças que, em cada tempo, se traduzem nos milhentos quotidianos que se vivem, se constroem e se reconstroem. E que afetam todos e cada um dos seus habitantes…
Necessário se torna conhecer o passado para repensar o presente, integrando e valorizando a herança desse passado, porque “se a cidade é o reflexo da sociedade, não é menos verdadeiro que, por sua vez, a cidade afeiçoa a sociedade. Por consequência, modelar uma, é também influenciar o futuro da outra”.. Apostar no desenvolvimento harmonioso da cidade, no seu progresso, é conferir-lhe uma modernidade que seja respeitadora da sua identidade. Somos diferentes pelos patrimónios que ainda conservamos.
A história dos homens, difícil de contar, é feita de diálogos – também difíceis de perscrutar – entre, por um lado, permanências, continuidades, inércias; e por outro transformações, mudanças, alterações. É feita deste diálogo entre o tempo longo (a longa duração) e o tempo breve (a curta duração). E se é muito o que muda – o que vai mudando –, é muito o que permanece. Os ritmos são diferentes: normalmente, o económico atrasa-se em relação ao político, o económico em relação ao social e o social em relação ao “mental”.
É, também, com base nestes pressupostos que vamos avançar alguns dados e caracterizar algumas “faces” dessa Bragança, que permitem fazer uma ideia do que teria sido a Cidade no século XIX, a partir de 1834, quando se dá o triunfo definitivo do liberalismo, e no primeiro terço do século XX, com incidência nesse lapso de tempo que conduz à República – última vintena de Oitocentos e primeira década de Novecentos – e nos primeiros anos do regime que pôs cobro à multissecular Monarquia.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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