(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
** Conto publicado na coletânea "A Bíblia dos Pecadores"
“E o cadáver de Jezabel será como esterco sobre o campo, na herdade de Jizreel; de modo que não se possa dizer: Esta é Jezabel.” 2 Reis 9:37
Ângela era uma mulher bem sucedida. Casada com um dos mais importantes industriais das conservas portuguesas, era ela própria filha de outro industrial do mesmo ramo, arruinado durante a expansão de Henrique Mello, seu sogro.
Sentiu-se humilhada quando foi encaminhada para casar com Eduardo Mello, filho do responsável pela desgraça do seu pai, como se se tratasse de despojos de guerra. No entanto, com o passar dos anos, adaptou-se e verificou que Eduardo era muito fácil de lidar e a vida não era assim tão má. Gradualmente, conquistou as boas graças do sogro, o amor do marido... e a inveja do cunhado, Filipe e da mulher, Luciana. Não foi portanto de admirar que, quando faleceu Henrique Mello, o testamento deixasse a maior parte dos bens a Eduardo, nomeadamente a presidência das Conservas Lusas.
Ambos os filhos de Henrique estavam bem um para o outro. Se Filipe, o mais novo, não estava habituado a fazer esforços para nada e detinha um curso de Direito, do qual não tirava grande partido, Eduardo, por seu lado, achava que o dinheiro crescia nas árvores apesar do seu curso de gestão. O testamento do pai, inexplicável, na opinião de Filipe, causou a discórdia e várias altercações entre os dois irmãos. Se por um lado Filipe achava que deveria ter uma quota igual ao irmão na conserveira, Eduardo não se conformava que, o quadro a óleo da sua mãe e de quem o irmão quase nem se recordava, não tivesse ficado para ele. Mas o que estava escrito eram as ultimas e soberanas vontades do pai e eles não chegavam a acordo em eventuais trocas. Eduardo geria a empresa sem consultar Filipe e este último conservava o quadro para afrontar o irmão.
No meio destas águas turvas estavam Luciana, paraplégica na sequência de uma queda nas escadas onde perdeu o seu único filho e Ângela, ruiva escultural, de voz suave, olhos brilhantes e hipnóticos e... uma vontade de ferro. Da cama que era o seu trono, Luciana espicaçava o marido, contra o irmão e a cunhada, incentivando-o a tomar medidas legais para contestar o estranho testamento que terá sido mudado pouco tempo antes da morte do sogro. Ângela, por seu turno, parecia passar ao lado de tudo isto e, sobre os mares tempestuosos destas relações, apoiava o marido na administração da empresa enquanto revelava capacidades de gestão muito superiores.
Eduardo estava feliz. A esposa era de uma beleza estonteante, uma mãe extremosa e uma mulher dedicada... além de uma gestora capaz de administrar a empresa sozinha deixando-o livre para outros assuntos. Cada vez presidia a menos reuniões e dava carta branca a Ângela. Os rendimentos da Conservas Lusas estavam em crescimento. Após a aquisição da maior parte da concorrência durante a gestão do pai, estava-se numa fase de otimização de recursos e processos no “reinado” de ficção de Henrique. Uma das últimas reuniões a que presidiu foi para dar “um puxão de orelhas” a alguns diretores que não queriam acatar as determinações de Ângela e admitir nas reuniões do conselho de direção, com caráter definitivo, a presença de um novo “consultor” na pessoa de João Teixeira, amigo de infância da esposa. Assim podia dedicar-se com mais cuidado à sua última diversão, uma moreninha simpática que trabalhava nos Recursos Humanos.
Era uma manhã como as outras e Ângela estava no gabinete da administração, furiosa com os relatórios que lhe chegavam às mãos e que davam conta das quedas nas vendas e do crescente volume de reclamações. Aliado à greve que decorria na fábrica da Nazaré, era um caldo explosivo para o seu temperamento pouco paciente... devia estar a ficar velha, pois já não reconhecia os pequenos contratempos pelo seu tamanho.
A parede à sua esquerda, era uma enorme vitrine onde podiam ser apreciados os quase quinhentos metros de extensão dos edifícios fabris. Uma varanda sem outro resguardo que não o vidro e que permitia ver, três pisos abaixo, as enormes caixas da ventilação das câmaras frigoríficas.
Apercebeu-se dos dois vultos à entrada do gabinete a sussurrar. Fingiu continuar a trabalhar. Não precisou de levantar os olhos para identificar João Teixeira.
- Entra! - Ordenou, ainda sem levantar os olhos, quando ele se preparava para bater na porta.
João entrou seguido de um homem baixo e gordo em cuja calva brilhavam gotas de transpiração. Ela recostou-se, rosto inexpressivo, olhando os dois. Os seus pensamentos corriam em alta velocidade; “João e o Francisco Gouveia, o diretor de produção. Oh, como ela desprezava aquele homem covarde e adulador. Sempre todo transpirado... tinha que o suportar. Era um mal necessário. A presença dos dois a esta hora era tudo menos um bom sinal...” Não os mandou sentar e continuou a olha-los interrogativamente.
- Ângela... - Começou João, hesitante. - ...o Francisco veio ter comigo... com um problema.
Ela ergueu uma sobrancelha e debruçou-se sobre a secretária pousando os braços no tampo numa atitude defensiva.
- Sim?!? - Ela impacientou-se. - Desembucha, vá. Que aconteceu desta vez, Francisco?
- Bem, doutora Ângela, - O homem ficou apavorado quando a atenção se voltou para ele causando um visível alivio a João. - a ASAE esteve esta manhã na fábrica de Matosinhos.
- E que tem isso? Não é a primeira vez nem será a última. - Ela alternou o olhar entre os dois homens. - Tratem disso como o costume.
- O problema é esse... - Começou João.
- Não fomos avisados. - Explicou Francisco. - E o inspetor que veio não foi o do costume.
- Falem com ele! Ora bolas, desenrasquem-se! Liguem para o “palhaço” que resolve estas coisas na ASAE. - Ela começa a levantar a voz.
- Já tentei. - Lamentou-se Francisco. - Não atende o telemóvel e na secretaria da ASAE dizem que está de baixa, doente.
Ela continuava a alternar o olhar que parecia soltar chispas entre os dois homens. Sentia-se encurralada e nenhum daqueles imprestáveis parecia ser capaz de arranjar uma solução. Mexeu-se desconfortável na cadeira.
- Encontraram algo que não deviam? - Perguntou ela, percebendo já que sim.
- A carga de Sevilha, que chegou ontem ao fim do dia, não estava ainda arrumada... - Francisco sentia-se cada vez mais infeliz.
- Merda!!!! - Explodiu Ângela. - Imprestável, idiota! Não foste avisado montes de vezes? Chegue quando chegar, tem que ser imediatamente misturada com as restantes, não se pode deixar à vista o peixe que chega de lá, faziam horas extra e arrumavam tudo! Não é para isso que estás lá?!?
- Ele tentou. - João saiu em defesa do apavorado homem. - O Francisco pediu para fazerem horas mas o Armandino da comissão de trabalhadores armou ali uma grande confusão e quase se pegaram à porrada à frente dos funcionários. Parecia até que já foi de propósito para apanharem a carga imprópria esta manhã.
- Merda, merda, merda! - Ela continuava a gritar.
- Que achas que devemos fazer? - João tentava ser construtivo.
- Sei lá! - Exclamou Ângela. - Temos que aguardar o relatório. Vamos levar com uma multa gigantesca... isto, se não nos quiserem fechar a fábrica. E esse Armandino... é uma fonte de problemas...
- Achas que é um problema a resolver? - Perguntou João olhando-a diretamente nos olhos.
- Senhor Francisco. - Ela pareceu recuperar a compostura. - Vá para o seu trabalho ver se resolve a merda que deixou acontecer. Insista em encontrar esse bendito inspetor para ele fazer valer o dinheiro que lhe pagamos e não se atreva a trazer-me mais más notícias hoje.
O pequeno homem acenou nervosamente com a cabeça e saiu do gabinete em passo de corrida a enxugar a testa.
- Esse Armandino. - Começou ela pensativamente. - Pode ter alguma coisa que ver com a greve da Nazaré?
- Não seria nada que me surpreendesse. Desde que reduzimos as quotas de compras aos pescadores locais e começamos a trazer o peixe mais barato de Sevilha que ele tem sido o causador de montes de problemas na laboração e instigador dos trabalhadores que à boca pequena vão comentando a falta de qualidade de algum produto.
- Na verdade, João, temos dois problemas... vamos precisar de alguém mais ágil na direção de produção... vê se consegues que um problema trate do outro. Eu vou pensando em quem vou escolher para a vaga na direção.
João contornou a secretária pelo lado direito e debruçou-se sobre o rosto de Ângela beijando-a ternamente na boca.
- Já sabes que não quero que faças isso aqui. - Ela censurou suavemente.
- Sim, minha senhora. - Ele brincou abandonando o gabinete num passo apressado.
As coisas estavam a começar a complicar-se. Tinha que resolver este problema sem perturbar Eduardo e a sua concubina. Ele tem que continuar afastado dos destinos da empresa, ela é que tem que gerir aquilo, porque ele não consegue viver com o odioso e fazer o que precisa ser feito. Para agravar a situação, na noite anterior o marido e o cunhado tiveram mais uma violenta discussão sobre a herança. Eduardo quer comprar o quadro da mãe mas Filipe quer metade do controlo da empresa em troca... diz que vai contestar o testamento... não convém nada que ande a “desenterrar fantasmas”... é aquela venenosa da Luciana... mais outro problema a tratar. Mas este terá de ser ela a resolver.
Naquela noite, um vulto que se deslocou-se furtivamente na enorme varanda do segundo piso da vivenda de Eduardo, geminada com a de Filipe, e passou sem dificuldade, da varanda de uma casa para a outra sem necessidade de pisar as telhas do alpendre da entrada.
Em baixo, no jardim, um dos rottweiller farejou o movimento e rosnou baixinho, desinteressando-se de imediato.
Ângela, envergando um fato de macaco de licra preta, ocultou-se nas sombras evitando as áreas iluminadas ou cobertas pelas câmaras de vigilância. Experimentou as portadas da varanda e acabou por descobrir uma que cedeu... naquela noite de verão era praticamente impossível que estivessem todas fechadas. Entrou sem ruído no quarto da cunhada e aproximou-se da cama de casal, onde ela estava sozinha, para se certificar que dormia. Depois, abriu muito devagar, a porta que ligava ao quarto do cunhado. Um ronco ritmado e forte dizia-lhe que estava num sono profundo. Pé, ante pé, pegou a almofada do cadeirão junto da janela e regressou ao quarto de Luciana fechando suavemente a porta de ligação. Aproximou-se novamente da cunhada e calcou-lhe a almofada sobre o rosto adormecido com toda a força. Sobressaltada, a mulher despertou e tentou lutar contra a ameaça que não percebia e esbracejou a tentar agarrar alguma coisa sem sucesso. Ângela ficou ainda mais uns longos segundos a bloquear o rosto depois da vítima ter parado de esbracejar. Atirou a almofada para o chão e contemplou a máscara de morte da cunhada, de olhos esbugalhados e boca escancarada em busca de ar. Saiu por onde entrou tendo o cuidado de deixar as portas como estavam.
Estava “inocentemente” no seu posto de trabalho, no gabinete da administração das Conservas Lusas quando Eduardo surgiu intempestivamente e, num discurso meio atabalhoado, conta que a cunhada fora encontrada morta naquela manhã, com indícios de ter sido assassinada. Filipe fora levado para a esquadra para ser interrogado.
Aguentou com paciência e respondeu às questões do marido enquanto olhava para a carta que lhe entregaram em mão esta manhã. Era destinada a Eduardo e era do Presidente da Câmara a manifestar grande preocupação com as informações que lhe foram fornecidas relativamente a uma inspeção da ASAE efetuada num fábrica no concelho. Aparentemente foram detetadas graves irregularidades que iriam dar origem a um processo de contra-ordenação muito grave contra as Conservas Lusas.
Assim que o marido deixou o gabinete, entrou João.
- Dá-me boas notícias. - Pediu ela.
- O nosso problema numero um está tratado e o numero dois está em curso. - Piscou-lhe um olho e sorriu. - Mas tu não pareces muito contente.
- Já temos bronca da grossa com a câmara. Conseguiram falar com o sacana do inspetor?
- Não. Não está ninguém em casa dele. Já percebeu que alguém atirou merda no ventilador...
Ela pousou o cotovelo na secretária e esfregou o rosto numa atitude de stress.
- A minha cunhada foi assassinada esta noite. Desconfiam do marido.
- Aquele lingrinhas? - João não conseguiu disfarçar o espanto. - Foi apanhado?
- Foi levado para depoimentos.
- Já lá fica. - Sentenciou.
- Agora deixa-me por favor. Tenho que escrever a resposta ao Presidente da Câmara e ver como vou dar isso a assinar ao Eduardo... e depois ver com quem falo para limpar esta porcaria sem dar muito barulho.
- Sim senhora doutora. - Ele piscou o olho divertido e abandonou o gabinete.
Ele não tinha de saber da sua atividade. Aliás, quanto menos soubesse, melhor.
Naquela manhã o marido andou numa agitação só. Telefonava para os advogados, foi por duas vezes ao tribunal para conseguir a libertação do irmão. Não foi autorizado, pois teria que ser ouvido por um juiz e esse só o faria no dia seguinte. Teria de passar a noite nos calabouços da Judiciária.
Ângela começava a ficar preocupada. Eduardo deveria estar contente. Se o irmão fosse preso, acabavam-se os problemas com a herança e teria finalmente o quadro que tanto quer.
Se bem o pensou, melhor o fez e apresentou-se na casa do cunhado, com João, para levantar o quadro da mãe dos Mello.
A governanta que abriu a porta não estava muito segura sobre o que fazer até que Ângela, candidamente, lhe recordou que, se o cunhado ficasse preso, seria ela a decidir o destino dos empregados da casa.
Saíram dali com a enorme pintura embrulhada. Levaram-na para o escritório para a apresentar a Eduardo. Ela até sentia as lágrimas nos olhos ao imaginar a alegria que ele sentiria sentir ao rever o quadro da mãe.
Tudo o que fazia era por aquele homem... Eduardo, seu marido. Já não tinham conta os esforços e sacrifícios feitos por ele, só para o ver feliz. Conseguira que o testamento lhe fosse favorável, melhorara os rendimentos da empresa, facilitara-lhe a vida, permitindo que trabalhe menos... até lhe arranja as amantes... de que ele desfruta durante algum tempo, antes de voltar para ela, arrependido. E agora o quadro. Estava ansiosa por ver a cara dele. Mas não foi naquele dia que a pôde ver pois ele não voltou naquela tarde.
No dia seguinte, disse-lhe que tinha uma surpresa no escritório, mas ele quase nem ouviu, que precisava de ir para o tribunal rapidamente. O irmão iria ser ouvido naquela manhã. Ângela foi retomar o seu lugar no escritório, envolta nos papeis e em cada vez mais reclamações.
- Doutora Ângela. - A voz em tom de urgência da secretária puxou-a para fora dos seus pensamentos. - Venha depressa à produção por favor.
- Que se passa? - Respondeu de mau humor.
- Está lá a Judiciária. Vêm prender o Francisco Gouveia. Está acusado da morte do Armandino Marques.
- O Armandino morreu? - Fingiu surpresa.
- Sim, tiraram o corpo do mar ontem ao fim do dia. Encontraram a carteira dele em casa do Francisco.
- Desço já, já.
Apressou o passo pelo corredor que levava a uma das varandas com vista para área de produção e notou logo o grande ajuntamento de funcionários, em círculo, junto de uma das escadas de acesso ao escritório.
Francisco, com ar infeliz, tinha as mãos algemadas atrás das costas e estava seguro pelo braço por um dos homens à civil da Polícia Judiciária. João falava com outro dos agentes.
- Que se passa aqui? - Interrogou com autoridade.
- Bom dia. - Respondeu o que falava com João. - Deduzo que seja a responsável pela empresa, a doutora Ângela Mello. Sou o inspetor Mariano da brigada de homicídios da Polícia Judiciária e temos ordens para deter Francisco Gouveia por suspeita de envolvimento na morte de Armandino Marques.
- Eu nem sabia que o Armandino tinha morrido. - Disse ela. - Como é que isso aconteceu?
- Neste momento está a decorrer uma investigação e...
- Cabra fingida! - A voz estrangulada de Francisco sobrepôs-se. - De certeza que foste tu que o mandaste matar e deitar-me as culpas...
- Cala-te! - Ordenou o agente que o guardava com um puxão do braço.
- … o Armandino estava a ser um estorvo, tu própria o disseste. - Continuou ele ignorando a interrupção. - Quantos foram mais? O Fernandes, na greve do ano passado? Que ninguém sabe o que foi feito dele? Quantos mais? As secretárias do diretor que desapareciam de um dia para o outro? Não és uma mulher, és um demónio que saiu dos infernos, vives do mal e vais morrer pelas tuas ações... És maldita, morrerás num lugar escuro, comida por bichos e a tua memória será uma lembrança de horror e repulsa que todos quererão esquecer.
- Chega! - Gritou o outro agente. - Leva-o para o carro para que não diga mais disparates. Senhora doutora, as nossas desculpas, vamos levar este facínora.
Assim que os agentes abandonaram o portão da fábrica, os chefes de serviço começaram a dar ordens para que todos regressassem ao trabalho.
Abalada pela maldição, Ângela quedou-se, em choque, encostada ao corrimão das escadas, até que João a amparou e ajudou a subir e encaminhar-se para a segurança do gabinete.
Não se acabavam porém, naquela lamentável cena, todas as novidades daquele dia. Chegados ao gabinete da direção, deparam com os dois irmãos, de braços cruzados sobre o peito, que os esperam em silêncio. Sobre a secretária, o quadro desembrulhado da matriarca Mello.
- Podes dizer-me o que significa isto? - Exigiu saber Eduardo apontando o quadro.
- Como é que o meu quadro veio parar a este escritório, logo na altura em que sou detido injustamente acusado de uma morte? - Os olhos de Filipe faiscaram de ódio enquanto avançava e agarrava-a pelo braço. - Vamos, responde!
- Tira daí a mão! - Gritou João empurrando-o com violência.
- E tu, desaparece-me da frente, cabrão oportunista! - Filipe ameaçou, apontando o dedo a João, após recuperar o equilíbrio.
- Ou o quê? - João era uns bons vinte centímetros mais alto que Filipe e bastante mais musculado, mas isso não impediu que o outro se atirasse a ele e se envolvessem numa luta.
- Parem com isso! - Gritou Eduardo numa voz autoritária que ninguém lhe conhecia mas que era bem herança de seu pai. - Parem com isso imediatamente!
João empurrou Filipe para longe de si enquanto protegia Ângela ainda atordoada e incapaz de reagir.
Eduardo postou-se em frente a João e exigiu:
- Quero falar com a minha mulher, agradeço que se retire.
João olhou para a visada que, com as lágrimas nos olhos, assentiu com a cabeça. Ele afastou-se para trás dela mas não abandonou o aposento.
- Fala, Ângela. Que está o quadro do meu irmão a fazer aqui?
- Meu amor. - Ela gemeu. - Sempre te ouvi dizer que adoravas aquele quadro, que o desejavas e só ele te impedia de o ter. Assim que me disseste que ele estava preso, vi a altura ideal para te devolver o que é teu por direito.
- Não posso crer que achaste que eu iria aceitar tirar uma coisa do meu irmão. Ainda para mais de forma tão torpe, tão vil... onde estão os teus princípios? - Havia uma repulsa no olhar dele que a magoou profundamente.
- Os meus princípios?!? - Ela olhou-o como se o não reconhecesse- Os MEUS princípios? Os meus princípios, perderam-se no dia em que o mafioso do teu pai me fez casar contigo após ter arruinado o meu... e mesmo assim eu amei-te tanto. Mesmo assim abdiquei de mim para te dar a ti... E sofri em cada humilhação que me fizeste aceitar... em cada amante que tinhas, que eu te arranjava. Em cada coisa que querias e eu conseguia para ti e que tu não agradecias. As sevícias que suportei do baboso do teu pai para que ele mudasse o testamento em teu favor...
- Eu sabia! - Gritou Filipe fazendo estremecer Eduardo que não acreditava no que estava a ouvir. - Foi por isso que o testamento foi mudado, puseste-te debaixo do velho lúbrico, sua cabra, para conseguir o que querias. E a Luciana? Foste tu não foste? Tu, ou essa bosta que trazes sempre contigo e que sei que metes na tua cama.
- Que dizes, infeliz? - Eduardo pareceu recuperar.
- Sim, é verdade! - Reafirmou o irmão. - Já o sei há muito tempo e não to dizia porque não irias acreditar em mim.
- Matei sim! - Reconheceu finalmente Ângela. - Matei essa invejosa que te envenenava contra nós!
Filipe atirou-se ao pescoço dela e chocaram ambos contra o enorme vidro através do qual se podia admirar toda a extensão da fábrica. Rachou, mas suportou o impacto. João precipitou-se a ajudar e os três, chocaram uma vez mais contra o vidro. Agora era peso a mais e ele cedeu em mil pedaços... Filipe caiu com a cabeça para fora e com o corpo dentro, mas João e Ângela caíram, desamparados, através da vitrine, agora sem proteção.
João bateu na varanda imediatamente abaixo com uma pancada surda que fez tremer as paredes. Ângela, bateu com força na esquina da mesma varanda e foi a rodopiar mais um piso para o meio das enormes ventoinhas de refrigeração das câmaras frigoríficas. Um buraco enorme numa das cabines anunciava o lugar da queda.
A equipa de bombeiros levou mais de duas horas para cortar a amalgama de ferros e plástico da cabine que impedia o acesso ao corpo. Quando chegaram perto e conseguiram iluminar o local, viram uma quantidade enorme de ratos a fugir em todas as direções, deixando exposto um corpo contorcido, semidevorado.
Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.
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