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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Premonição

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...") 

O vento assobiava e atirava as folhas mortas pelos ares. Manchas vermelhas e castanhas riscavam os céus de chumbo proclamando a morte do verão. Ecos de guerra troavam ao longe em fulgurantes clarões no horizonte enquanto uma voz angelical entoava um cântico triste, perdido na distância.

A pouca distância, o descomunal templo gótico de fachadas graníticas estranhamente erguido sobre alicerces de tijolos barrentos que ameaçavam desmoronar.

Desorientado, caminhei para a igreja e olhei os meus pés descalços com cortes e feridas de muito caminhar. Calquei cada um dos degraus de pedra onde deixei ensanguentadas impressões, indicando o caminho a quem viesse a seguir.

As imensas portas estavam abertas de par em par e eu cruzei a galilé para ver o ar entre as colunatas dominado pelas folhas e pelo pó esvoaçantes que maculavam o espaço sagrado. Dos vitrais, muitos metros acima, desciam focos de brilhantes poeiras que acabavam repousando em estranhas formas sobre o soalho gasto e arrombado.

Caminhei sobre as tábuas onde sabia terem caminhado milhares de fiéis antes de mim, onde marcharam garbosos cavaleiros e reis. As capelas laterais, quer do lado da Epístola quer do lado do Evangelho estavam vazias e nuas, como se os seus ocupantes se tivessem mudado para outras paragens menos agrestes ou simplesmente estivessem cansados a sua eterna vigília. A igreja vazia e só oprimia o meu coração e fazia-me sentir a solidão e a ausência da fé. Temia que, naquele dia de eclipse, se eclipsasse também tudo aquilo em que acreditava.

Chegado ao transepto, vi os púlpitos abandonados e decadentes, cobertos de trepadeiras que desciam descontroladas para o chão, esquecidos dos tempos em que se pregava a palavra do Senhor.

No presbitério a situação não era melhor. O espaço estava cheio de informes pedaços de pedra e alvenaria produto da derrocada da orgulhosa cúpula que em tempos a cobrira. Via-se o céu de chumbo pelo enorme buraco do teto e o disco solar, que conseguia romper entre as nuvens, estava mordido na quase totalidade pela sombra da Terra, anunciando dias negros.

Também o altar estava vazio de imagens e decorações apenas a imagem do Crucificado pendia da parede como uma ameaça sobre quem se atrevesse a aproximar. À esquerda havia um trono dourado vazio. A Férula estava encostada num dos braços e a Mitra com as Ínfulas abandonada no assento. Aguardavam o dono, ou estavam esquecidas, naqueles tempos sem Deus, com a igreja em ruínas, as guerras à porta e o próprio sol ferido de morte?

Apercebi-me só então que, acima das minhas canelas feridas, tinha a bainha da batina rasgada e a sobrepeliz suja e esgaçada. Também a mozeta escarlate estava rasgada e desalinhada e o solidéu desaparecera da minha cabeça. Confuso, ajoelhei frente ao altar e rezei entre lágrimas, temendo que fosse aquele o fim dos tempos há tanto anunciado. No chão a meu lado jazia um bordão com uma tira de tecido branco amarrada onde estavam escritas as palavras: “Peregrinus requiescit”[1]. Rezei com ainda mais fervor sabendo que aqueles tempos, aqueles em que o Trono estava vazio, eram os mais perigosos. As portas dos infernos podiam abrir-se sem que o Sucessor de Pedro cá estivesse para as encerrar com as chaves que o Pescador lhe confiara.

Pedi iluminação ao Senhor e implorei a Maria que intercedesse por nós junto do Omnipotente.

Quando tornei a abrir os olhos havia diante de mim um esbelto e reluzente anjo envergando uma túnica de um branco imaculado que me mostrava um livro de couro envelhecido, e uma tira de seda vermelha que marcava uma página onde se lia a seguinte frase:

“Depois do peregrino eslavo, virá o bávaro que sonhou a paz entre a guerra do mundo, mas o seu reino será curto.”

Uma fita de seda azul marcava outra página que folheei e li:

“Depois do bávaro, virá do novo mundo a humildade e o amor do povo.”

Maravilhado com tais profecias, tentei virar outra folha e o anjo segurou-me a mão, dizendo que não podia saber mais, mas a sua voz era como muitas trombetas que me encheram de terror.

Acordei, assustado e confuso, sentado no meu lugar no conclave. Conseguira adormecer durante o discurso de um dos meus irmãos cardeais, um dos que estava mais próximo, apercebendo-se da minha falta, sorriu-me.

Estava triste, mas depois deste sonho, sentia-me cheio de confiança. Depois do medo da desorientação e da dor, com o desaparecimento do já saudoso João Paulo II, a sua falta seria colmada em breve com um novo sumo-pontífice. Olhei os resultados da primeira votação: Ratzinger… sim, tudo se encaixava, aquele que tentara negociar a paz na primeira guerra. Seria ele o próximo.

Não acabaria aí, porém, apesar de todas as profecias de desgraças e apocalipses; depois dele teremos outro Papa e depois… só o próprio Deus o sabe.

[1] Latim - O peregrino descansa

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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