Daniel Veríssimo, um economista fascinado pela natureza, fala-nos da possibilidade de vermos em Portugal a gazela do Mediterrâneo, espécie que pode ajudar a devolver complexidade aos ecossistemas.
Gazela-do-mediterrâneo. Foto: Safwanmrz/WikiCommons |
A gazela do mediterrâneo, também conhecida pelo nome de gazela do atlas ou gazela de cuvier (Gazella cuvieri) é um animal de médio tamanho, similar ao corço. Pesa cerca de 30 quilos e pode medir entre 60 a 70 centímetros de altura; vive em grupos de 3 a 7 animais, apesar de poder formar grupos maiores. Tem uma dieta generalista e está adaptada a zonas mediterrâneas e a zonas áridas, habita a região do Magreb, de Marrocos à Tunísia e é um símbolo de elegância, graciosidade e beleza para os Árabes.
No passado, durante o último período interglacial, existia uma espécie de gazela na Europa. É provável que uma combinação tripla de fatores tenha extinguido as gazelas do continente. As alterações climáticas durante a última glaciação diminuíram o habitat viável para a gazela, a caça pelo ser humano reduziu as populações numa altura crítica e é também provável que a perda de grandes herbívoros – como o elefante de pontas retas, cavalos, rinocerontes e auroques – tenha transformado a paisagem, de uma estrutura aberta idêntica aos montados, para uma estrutura mais fechada, o que fez desaparecer o habitat semiaberto que a gazela prefere.
Uma ligação parecida acontece hoje em África entre o desaparecimento de elefantes, o crescimento de matos e o declínio das populações de antílopes como o Hairola na África Oriental.
As gazelas são animais adaptáveis que habitam uma grande diversidade de habitats desde as estepes da Mongólia às planícies de África, das pradarias da Índia às montanhas do Médio Oriente. Estão adaptadas a regiões semiáridas frias e quentes, a climas tropicas e mediterrâneos, são animais que existem em quantidade e que desempenham uma função importante como presas no ecossistema.
Apesar de os ecossistemas europeus estarem simplificados com poucas espécies de herbívoros, um olhar no passado demonstra que nem sempre foi assim e um olhar a outras zonas do planeta mostra que não precisa de continuar a ser. Com espaço, os ecossistemas mediterrâneos podem facilmente suportar várias espécies de herbívoros de médio e grande porte: corço, gamo, javali, veado, muflão, cabra montesa e, em regime semisselvagem, burro, cavalo e auroques 2.0. Mas são raras as zonas onde concentrações tão grandes acontecem e mesmo todas estas espécies de herbívoros não são a combinação máxima possível.
A herbivoria é uma das primeiras peças para o restauro de ecossistemas, molda habitats, devolve presas aos predadores como o lobo e o lince e cria oportunidades para necrófagos.
Numa altura em que as funções nos ecossistemas estão cada vez mais simplificadas e os desafios para a vida selvagem são cada vez maiores é importante devolver complexidade aos ecossistemas, devolver resiliência, capacidade de adaptação
Gazela-do-mediterrâneo. Foto: Don DeBold/WikiCommons |
A gazela do mediterrâneo seria um clássico caso de migração assistida, uma categoria prevista pela IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza) para a movimentação de animais, que diz o seguinte: “colonização assistida é o movimento deliberado e libertação de um organismo fora da sua área de distribuição histórica, para evitar a extinção da populações da espécie em causa”.
A gazela é, à semelhança da tamareira, do camaleão ou do macaco do mediterrâneo, uma espécie que irá ver o seu habitat diminuir nos próximos anos no Magreb; o habitat para a gazela sobreviver e prosperar não está no Norte de África mas sim no Sul da Europa.
Está ameaçada? É classificada como Em Perigo pela IUCN; existem apenas entre 2500 a 4500 exemplares em liberdade e apenas duas populações com mais de 250 animais.
Relação com outros animais? Muitos animais como o javali, o coelho ou o veado existem tanto no Magreb como na Península Ibérica e tanto o lobo como o lince tem capacidade para caçar as gazelas.
Experiência em programas de reintrodução? O programa de reintrodução na Tunísia foi um sucesso e conta com uma população em crescimento.
Existe espaço para a gazela em Portugal? Sim, graças ao abandono da atividade agrícola em terras marginais e as herdades no Alentejo. Os Montados de Portugal e as Dehesas de Espanha são habitats perfeitos para a gazela, do Alentejo à Andaluzia, do Planalto Salamantino aos campos de Cabañeros. Para além disto, as gazelas do mediterrâneo seriam um proxy das gazelas autóctones da Europa e devolveriam uma peça perdida do ecossistema europeu, sem serem uma espécie radicalmente diferente.
Mas mais do que enumerar as razões porque sim, é perguntar as razões porque não?
Fazer uma caminhada por uma herdade de vida selvagem, com o sol baixo, morno e alaranjado, ao longo de um trilho de terra batida, por colinas suaves e ondulantes e descobrir um grupo de gazelas do mediterrâneo entre sobreiros, azinheiras e catapereiros, misturadas com burros selvagens. Com tamareiras ao longo de guadis (wadis, nome árabe para linhas de água intermitentes), com camaleões nos ramos dos arbustos, com tartarugas no chão, linces à caça ao cair da noite e abutres a voar alto no ar à procura da próxima refeição. Esta é uma descrição de um ecossistema funcional, com espécies adaptadas ao clima que as alterações climáticas irão trazer à Península Ibérica.
Num tempo de desafios ambientais, é hora deixar a apatia, pessimismo e negativismo de lado e sonhar possibilidades, ver oportunidades e começar a escrever uma história bonita de restauro ambiental.
A gazela do mediterrâneo pode chegar a Portugal.
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