[Anexim]
O fabulista La Fontaine foi buscar a Esopo, a Fedro, aos fabulários medievais e contos italianos boa matéria para confeccionar um fascinante cardápio de encantatórios animais eivados de todas as qualidades e defeitos, copiando a condição humana. A lebre entra em quatro fábulas: A lebre e as rãs, As orelhas de lebre, A lebre e a tartaruga, A perdiz e a lebre. Nessas fábulas a lebre surge vaidosa, convencida, medrosa e por fim vencida. Uns duzentos anos antes de Esopo fabular, o eclético Aristóteles ocupa-se da lebre, afiança ser tímida, analisa o funcionamento dos seus órgãos, anota possuir coalho quando está em fase de amamentação, ter dupla fiada de dentes, no tocante à época do acasalamento, escreveu:” as lebres acasalam unindo-se pela parte de trás, como se afirmou acima (trata-se também de um animal que urina por trás); acasalam e têm crias em qualquer época, e as fêmeas estão sujeitas à superfetação e dão à luz todos os meses. Não parem as crias todas ao mesmo tempo, mas com um intervalo de dias que varia. A fêmea tem leite ainda antes de parir e, mal que dá à luz, volta a acasalar, como também fica prenhe quando ainda amamenta. Tem um leite tão espesso como o da porca. Dá à luz crias cegas, como acontece com a maioria dos fissípedes.”
O observador filósofo confere à lebre a natureza de tímida, assim será retratada pelos séculos fora em obras de todos os géneros, tal como a sua extraordinária capacidade de reprodução é origem de grande número sentenças populares, como a escolhida por Hellmut Kirst, para iniciar a obra Os Lobos, na qual evidencia a barbárie nazi. Reza assim:
“Muitos cães são a morte de muitas lebres. Porém, a capacidade de reprodução das lebres ultrapassa todos os esforços dos cães”.
A fecundidade da lebre estará no referente ao simbólico associada à deusa Eostre, a lebre-Lua, forma que os Celtas imaginaram para a superfície da Lua cheia, do mesmo modo como outros povos incorporaram as lebres nas mitologias e crenças. Tanto a lebre como o coelho são lunares porque dormem de dia, chegando a lua a converter-se em lebre, assim o cantam temas folclóricos da Ásia, África e Europa e das civilizações incas. Em Portugal a presença da lebre em todo o território é confirmada não só pela corografia (Laboreiro, Lebres, Leboreiro entre outros), mas também pelas oralidades e linguagens. Andar à lebre é andar à procura de refeição gratuita quando não há dinheiro, comer gato por lebre é deixarmo-nos enganar, comprar gato por lebre é comprar mau e pagar por bom, levantar a lebre é ser o primeiro a falar sobre um falhanço, asneira ou irregularidade. No atletismo lebre é sinónimo de correr para alguém, fugir como a lebre é correr a sete pés, lebre corrida é assunto arrumado, lebreiro é o que caça lebres, lebrechina e lebrechinha é rapariguita leviana.
Uma cantiga de amigo fala da lebre amiga, séculos antes, os gregos e os romanos entoavam cânticos de louvor à lépida lebre, após a terem degustado, cozinhada em receitas esquisitas e custosas. No Banquete dos Eruditos, Ateneu destaca-lhe as singularidades gustativas, ou não fosse a carne da lebre a preferida dos Gregos, o esquisito Apícius anota treze receitas no De Re Coquinaria, desde um ensopado de lebre, até uma lebre recheada, passando pela lebre em almôndegas a mostrar engenho no total aproveitamento da saltarilha.
A lebre estava sempre presente nas refeições festivas da nobreza medieval e da renascença, originando numerosos preparados culinários cujos ingredientes além de raros eram caros, cozinheiras e cozinheiros hábeis e, tempo, muito tempo. Grandes chefes concederam-lhe minuciosa atenção e inventaram modos de a prepararem que perduram até agora, inspirando os cozinheiros galácticos da actualidade na criação de novas receitas, levando-a a figurar nos compêndios da alta cozinha, seja na forma de lebrada, assada, estufada, em filetes, guisada, salteada com chocolate, em mousse, empadas, pastelões e terrinas.
As cozinheiras e cozinheiros de outrora de índole rural deixaram-nos ensinamentos acerca da melhor forma de confecção da lebre, e do lebracho: de um a quatro meses é melhor assado, até ao ano de idade o ideal é ser assada e salteada, a partir dessa idade aconselham a guisá-la.
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.
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