Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Otilia Lage - O SAPATEIRO DE LAGOAÇA: UM ENCONTRO SINGULAR

Otília Lage
“E um dia descobri-me
- de uma nudez estranha-
a escrever numa prancha
assente nos joelhos da imagem
que me ficara das longas horas
passadas a soletrar
o sapateiro da terra”

Serpenteando por aquelas arribas de um e outro lado do rio Douro, pasmada com as sombras geometricamente desenhadas na relva verde e a beleza prateada das copas bem afeiçoadas das oliveiras derreadas de azeitonas a “pintar”, sorvo o acre aroma das laranjas e laranjais dispersos na paisagem verde escura de sombras com duende, bordados no espaço de calmaria por mãos de fadas sob o privilégio do microclima mediterrânico da região... Vou subindo, encantada, até às terras de Lagoaça e do Freixo de Guerra Junqueiro, a “ terra mais Manuelina “ de Portugal..., a estrada, nalguns pontos, muito esquisita aos olhos da criança citadina, porque só entre montes a caminho do céu, ou então, no virar das curvas, mostrando de imprevisto o rio a luzir lá no fundo longínquo a perder de vista…
 E lá estava a velha Estação do Caminho de Ferro, transmudada em casa de turismo rural e de habitação, para meu sossego de ave de arribação.
A fome de horas torna mais intenso e gostoso o sabor do repasto com que me vai de antemão deliciando, a cultura gastronómica secular de Lagoaça: uma suculenta e macia posta de vitela, o estaladiço cabrito assado e o borrego estufado, o cozido transmontano das cascas com fumeiro e as finas fatias e nacos de presunto com pão caseiro e azeitonas. Tudo bem regado de fino azeite e bom vinho da terra, com as doces laranjas de sobremesa a cortar o peso da suculenta refeição.
Nas ruas silenciosas e estreitas, mulheres sentadas à porta das casas, bordam, sem pressas... 
fora-se o velho fontanário, lamentavam as pessoas que por ali se sentavam dando dois dedos de conversa!

Primeira aproximação a Lagoaça, terra de fronteira

Na verdade, Lagoaça é-me familiar desde que me conheço como gente. Porém, nunca a visitei nem de perto a vi. Identifico-a em fotografias postadas na Net que me reavivam a memória que guardo da sua envolvência natural e afectiva, presa à visão que dela tive de longe, num inesquecível passeio de barco com amigos, pelo Douro, Parque Natural Internacional.
Aprofundo então o meu conhecimento desta aldeia, como eu, transmontana, pelo viés da leitura de “Ernestina”, um dos últimos romances do exilado escritor português J. Rentes de Carvalho, há anos residente na Holanda, onde é destacado embaixador de nossa cultura, e também ele de ascendência transmontana de cujas raízes fortes alimenta a sua criatividade literária, reconhecida e apreciada.
Estimulo igualmente o meu conhecimento desta aldeia rural transmontana pela janela da história de arte, em especial das célebres gravuras de Foz Côa e do seu cavalo paleolítico de Mazouco que lhe ficam nas redondezas. E prossigo, pela leitura de alguns resultados de escavações e estudos arqueológicos sobre a Fonte Santa ou Casal do Mouro de Lagoaça, um abrigo de pedra sobranceiro ao ribeiro da Ponte, junto a um conjunto de Figuras Rupestres. Próximo das minas da Fonte Santa, abandonadas, aí foram identificados dois "painéis" verticais em xisto, de superfície lisa, com pinturas monocromáticas, a ocre. “Um  dos painéis, uma  laje quadrilátera com cerca de 60 cm de lado  na parede  lateral sul, representa duas figuras antropomórficas de tamanho desigual  e uma mancha de forma indefinida. O segundo, na parede fundeira, é composto por uma figura antropomórfica aparentemente sobre um animal (talvez um centauro), por uma figura reticulada e por várias manchas de forma indefinida. Dada a potência significativa de enchimentos de terra e a dimensão do abrigo, há que considerar a possibilidade de este ter servido de habitat coetâneo das pinturas. Abrigo rupestre com pintura esquemática provavelmente arquitectura religiosa, pré-histórica. Conjuntamente com as estações de Pala Pinta (Alijó), Penas Róias  (Mogadouro) e Cachão da Rapa (Carrazeda de Ansiães), constitui um dos  mais importantes testemunhos de abrigos com pintura esquemática da  região de Trás-os-Montes”.
Haverei no entanto de conhecer também Lagoaça, ainda melhor, pelo estudo histórico demorado das suas quintas: a quinta da Cesteira com seu jardim privado, a quinta da Veiga Redonda e a do Vale das Vinhas.
Entretanto, remonto à minha infância, no frio planalto de Carrazeda de Ansiães, voltado ao Douro e Tua, rios que banham boa parte do concelho. Aí se me apresentou pela primeira vez Lagoaça, terra desconhecida que desde então se me tornou tão familiar quase como  terra onde nasci e me fiz gente. Surge-me na névoa da memória a figura simpática e afável do sapateiro de Lagoaça, em sua oficina de trabalho diário, qual loja mágica! Suas duas únicas filhas, da minha idade, eram colegas de escola e brincadeiras que sem contar, rápido nos iríamos perder na vida, para sempre, à custa de mobilidades forçadas de quem nasce em terras de tudo e de repente, sem nada,  delas abalando em busca de um futuro prometido e a custo angariado pelos pais.

A casa onde viviam ficava no caminho principal da vila que levava à igreja setecentista. Era por isso paragem obrigatória todos os domingos, na ida para a missa. A mãe, figura feminina de perfil esfumado e aparência indelével, assomava à janela, ao toque do batente, uma minúscula e decorada mãozinha de ferro, e acenava-me prazenteiramente risonha como uma flor a abrir-se ao sol da manhã, enquanto chamava para dentro as filhas, minhas companheiras de pequenos trabalhos e muitos folguedos. Enquanto isso, abria a porta o pai, o sapateiro de Lagoaça que pela mão me levava até à oficina, no rés-do-chão, ao fundo das escadas, e que era para mim a mais desejada sala de brinquedos, com as suas formas de madeira pezinhos de crianças, mulheres e homens, simetricamente alinhadas nas estantes junto ao tecto por cima da banca onde se dispunham as ferramentas e as latas de cola de todos os tamanhos e rótulos de bonecos coloridos. Depressa me chegaram então as guloseimas apetecidas: bolinhos de amêndoa, num guardanapo de estopa e laranjas docinhas como mel que eu bem conhecia já da pensão de minha mãe a quem o sapateiro de Lagoaça, as ia vender juntamente com as azeitonas bem quartilhadas, as alcaparras doces e os almudes de azeite de ouro finíssimo e quase transparente, sempre que de sua terra voltava, de dez em dias, com as mulas derreadas seguindo o velho e  fiel cãozito, o Perdido.
Já as filhas tinham descido também para seguirmos para a missa em cujo final nos esperavam longas e divertidas brincadeiras no adro da igreja. O sapateiro olhou então atento os meus pés calçados com grossos sapatos de camurça branca, como quem tirava o molde para as botas e os socos que minha mãe sempre lhe encomendava, antes do Inverno de duros nevões, chuvas intensas e desvairadas ventanias, e os quais eu detestava pelo seu aperto e peso de arrobas, e que rapidamente trocava pelas soquinhas abertas e ligeiras que só deixava aos domingos e dias de festa, por imposição materna ou da minha professora de escola primária.
Só esse seu jeito, me fazia então lembrar o recado que minha mãe me encarregara de lhe entregar e já havia esquecido:
- Sr. Botire (alcunha que lhe construí trocando Victor de seu nome com as botas de seu ofício), quando é que o meu pai pode vir provar as botas e os meus irmãos os socos?
E com os dias da semana rascunhados a lápis grosso num papel mata-borrão que guardei no bolso do bibe branco rendado, lá me fui de mãos dadas nas filhas do sapateiro de Lagoaça, sonhando com o dia em que ele e meu pai me levariam à feira de Moncorvo, comprar as amêndoas de açúcar e farinha branca ou de chocolate, subindo depois até à Lagoaça dos meus sonhos de criança…de sempre gostei de conhecer mundos, viajar até qualquer sítio só para ver como era isso … E nunca tinha ido a Lagoaça que há tanto tempo e tão bem conhecia de nome trazido pelas suas gentes para a minha terra de vastos horizontes.
Van Gogh- Três pares de sapatos- 1886-1887
Entretanto e volvidos os anos, subo virtualmente ao relaxante cenário do miradouro da Cruzinha, com seu moderno cruzeiro de pedra e ao miradouro da Senhora dos Montes Ermos, às arribas do Douro Internacional, donde avisto Espanha e o voo picado dos grifos e dos milhafres do Egipto, enquanto ouço cantar o cuco da Carrasqueira ”quantos anos me dás solteira” e o cuco da carrascada “quantos anos me dás casada”, e descodifico o seu vaticínio contando pelos dedos o número de vezes do seu piar primaveril. Lembro o Melro em luta com o padre, longo poema de Guerra Junqueiro que tantas vezes li e dramatizei com os meus alunos de todas as idades e locais, enquanto lá no fundo, o Douro, fita metálica sinuosa me atrai como poderoso íman transportando-me, qual ínfima poalha pelo espantoso património natural, histórico e cultural de Lagoaça e suas redondezas com que, transmontana de gema, me irmano, sempre sobrevoando o mundo presa às raízes do solo em que nasci , hoje já mais sonhado no que da memória ficou do que realmente real e verdadeiro.

in: Trás-os Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

Sem comentários:

Enviar um comentário