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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

O PALÁCIO DO ROUXINOL ,por Amélia Ferreira-Pinto

 Tinha sido educada num colégio de freiras. Educada. Não instruída. Era mulher. Para quê mulher instruída? Sabidas já elas nasciam. E arteiras. Portanto, quanto menos soubessem, melhor. Pelo menos era esta a filosofia do senhor Resende, homem de teres e haveres, pai da menina morgada.
Quando a levou ao colégio, explicou bem à madre superiora o que queria:
- Poucas letras. Isso só serve para elas escreverem aos conversados. Nada disso. Coisas de casa: coser, cozinhar, bordar. Prendas. Prendas… Prepará-la para a vida, para ter marido e filhos e saber cuidar deles.
A madre ainda alvitrou;
- E uma musicazinha?!…
         - Qual música, nem qual carapuça. Onde é que ela vai tocar lá na terra? E quem a ouve? Coisas que dêem proveito, e também não é preciso muita reza. Eu cá não a quero para freira. Só tenho esta, para mal dos meus pecados, e quero herdeiros. Não ando a trabalhar para o cura.
         A madre lamentou muito, Não era educação completa, não senhor. Nem uns conhecimentozinhos de francês, nem umas liçõeszinhas de piano. Era um incivilizado, o homem. Tinha de se lhe dar desconto; não se lhe entendia mais. Vinha lá das montanhas de Trás-os-Montes...
- Mas lá quanto a formação religiosa, isso não.  Tivesse santa paciência.  Tinha de seguir as lições das outras - disse de si para si a madre.

Anos depois, a Maria da Felicidade voltava à terra com um baú cheio de bordados, de “naperons” pintados à pena, de flores artificiais, de rendas de bilros e de alguns chambrinhos rebicados. Na mala trazia uma Bíblia, um catecismo, dois rosários, três terços, um missal, uma dúzia de “bentinhos”, medalhas e pagelas de todos os santos.
A mãe, quando ela chegou, expôs as suas obras de arte numa grande sala, convidou as meninas mais abastadas da terra e as respectivas mamãs, e mostrou-lhes os dotes da filha.
Teceram elogios, admiraram, apalparam, apreciaram a perfeição dos avessos, o disfarce dos remates e cá fora comentaram, rataram-lhe na pele:
- Que exageros. Para que quer tanto bordadeco? Nós cá também sabemos fazer rendas e dar pontos. E aquelas flores de papel!...Parecem as dos caixões dos mortos. É só para fazerem ver às outras…
- É mas é para arranjar casamento.
- Os pretendentes não vêm atrás dos bordados. Vêm atrás das oliveiras.
- Oliveiras não lhe faltam.
- E pretendentes também não.
E era verdade. A Dadinha tinha montes deles e alguns bem do agrado do pai. Mas ela punha tacha a todos. Nenhum lhe servia. Depois do que vira lá pelo Porto, era difícil achar chinelo para o seu pé: queria homem que calçasse sapatos e não aquelas botifarras. Homem que tomasse banho.
E continuava bordando, lendo no missal. O pai já estava a perder a paciência. A coisa não dava de si. Estava-lhe a parecer que ela ia dar em beata. Não procurava as amigas. Achava-as todas umas brutas. Refugiava-se na igreja e até já o povo dizia que era mal empregada tanta fazenda sem herdeiros.
Mas a velha Estrudes aquietava os ânimos das mais insofridas.
- Quando se faz uma panela, faz-se logo o testo. O homem há-de aparecer. Mas está-me cá a parecer que não há-de ser destes lados...
E não era.

Um belo domingo, a terra foi alvoraçada por um grande acontecimento. Tinha chegado um fidalgo lá das bandas de cima. Era esquisito, mas guapo, bem apessoado.
O brasileiro, de bigodinho retorcido, “cavanhaque” bem aparado, “palitó” de linho branco, chapéu de palhinha e bengala, vinha sondar o terreno: é que já o tinham inculcado.
No Brasil não se dera bem. Era preciso trabalhar muito e ele não fora para lá com esse fito. Na mira da fortuna dum tio fura-vidas e solteirão, por lá se manteve alguns anos e não houve maneira de se adaptar e de se entender com o velho que era finório e percebera logo a marosca.
Quem quer ter, tem de puxar pelo lombo, e o menino armara em “almofadinha” e trabalho... nem vê-lo.  Devolveu-o à irmã; que o aturasse - senão que o tivesse ensinado a esfolar para saber quanto custa a vida. Dar sentenças de espinhela direita e receber as patacas sem alombar, não era com ele.
O “papo-seco” não tinha aprendido a trabalhar, mas aprendera a viver. Espalhou aos quatro ventos a fama da herança que ia receber do tio.  Tinha vindo à terra visitar a mãe e arranjar mulher da sua condição. Quando o tio morresse (fingia que não sabia da caboclinha...) teria de vender a chácara e fechar os negócios.
Sim senhor. Aquela vinha mesmo a matar. Bons casais espalhados por aquelas aldeias. Dois moços para o serviço. Casa grande com duas moças para a cozinha. Uma velha para tratar da criação. Um galego, já antigo na casa, para dirigir tudo. Nada mau...Nada mau... A mocinha também não era de se deitar fora. Olhos grandes e mansos. Bom sinal. Era preciso, era armar bem o laço.
Por ali se passeou, admirando a terra, apontando com a bengala, acentuando o sotaque, perguntando o nome das alfaias agrícolas que repousavam pelas ruas, fingindo desconhecê-las. E tirava partido de tudo para impressionar os basbaques. Nem se esquecera de ir assistir à missa do meio dia, de cuja hora se informara antecipadamente.
O povo nem assistia ao santo sacrifício. Tudo era olhadelas e cochichos:
- Quem será? Que fidalgo! Não é daqui de perto...
A velha Estrudes torceu o nariz e comentou para o juntouro que se formara no adro da capela:
- Não me cheira. É fidalguia a mais. Homem de siso não se apresenta naquela andaina. Véstia branca nesta terra... Não diz a letra com a careta.
Aquilo passou. A vida continuou. A Dadinha não esquecia os olhares furtivos que recebera naquela missa. Esse sim, enchera-lhe as medidas. Ela também o mirou bem. E verdade, verdadinha, era bem diferente daqueles brutamontes, de botas e capote, esporas nos pés, que só sabiam falar de gado e feiras, de lagares e moinhos.
A seu tempo chegou um inculcador. Falou com o pai da morgada, expôs o assunto o melhor que pôde (a paga estava de acordo com o resultado da incumbência), elogiou a educação do rapaz, falou do dinheiro que ele mostrava aos amigos, da casa de azulejos que o tio andava a fazer na terra, dos bocaditos bem bons que os pais dele ainda tinham.
O bom do Resende não foi lá muito na conversa. Bem sabia que aquele janota só tinha empáfia. Porém não havia que escolher: entre uma beata maninha e uma mal casada com filhos, mais valia esta última. Ele bem topara que a rapariga ficara presa pelo beiço quando viu aquele pantomineiro. Não tinha outro remédio senão mandá-lo vir fazer o pedido.
A boda foi de arromba. A morgada era feliz. O pai tomava conta da casa, o marido tomava sol na varanda, ela tomava conta do marido.
O senhor “brasileiro” sentia-se, enfim, bem instalado na vida. Ia engordando. Montava a cavalo. Passeava até à horta e, de vez em quando, mandava-se até ao Porto e deambulava pela Foz para esquecer a Guanabara.
A mulher ficava em casa a tomar conta das gémeas e da criadagem. Não fora para isso que tinha sido educada?!
Com o passar do tempo, a desilusão ia-se apoderando do seu espírito. Apercebia-se da tristeza do pai, do embuste do marido, e sentia que o seu casamento tinha sido um malogro. Desabafava na igreja, onde rezava horas a fio.
Com a chegada de mais uma neta, o velho Resende desanimou de todo.  Já eram quatro, e rapazes... não havia maneira.
- Só me dá fêmeas, aquele peralta. Sou eu sozinho no meio de tanta saia e de um manjerico...
Andava cismático, casmurro, e começou a tresler. A velha companheira, sempre tão calada e resignada, também para ali estava a finar-se. A filha só tinha ossos. E ainda por cima estava outra vez de esperanças. Era para o que tinha habilidade, aquele calaceiro.
O neto chegou finalmente, mas o velho já o não viu. Fora-se pelas vindimas mais pelo desespero do que pela idade.
E ali estava o seu descendente, o sangue novo dos Resendes. O menino era o ai-Jesus da avó, o orgulho da mãe e a vaidade do pai.  Este mandara vir da terra um criado expressamente para tomar conta do filho. Não o queria nas mãos de tanta mulher. 
Ele lá tinha as suas razões...

O moço chegou também num domingo. Fora o galego que o fora buscar - um tanto amuado, pois achava-se no direito de ser ele a tratar do patrãozinho. Mas o senhor “brasileiro” entendeu que, com aquele sotaque, só prejudicaria a educação do filho.
Começou o rapazinho a passear as ruas e as hortas pela mão do seu criado. O moço era alegre e vivaço e cantava tanto e tão bem que lhe puseram a nomeada de “rouxinol”.
Ensinou o amo a montar a cavalo, e foi pela sua mão que ele entrou na escola.
À noite, iam os dois para o andar cimeiro. E então o menino mostrava-lhe os livros e lia-lhe histórias. A mãe recomendava-lhes que rezassem o terço.
- Sim minha ama - dizia o bom do Rouxinol - e instruía o garoto à sua maneira.
- O que quer ser o patrãozinho quando for grande?
- Eu sei lá. A minha mãe diz que vou ser padre.  O meu pai diz que vou ser doutor.
- Eu cá acho que a sua mãe não tem lá muita mioleira no caco, com o seu perdão. Então não diz também que as manas vão ser freiras! Se a gente não se precatar, vai dar tudo em beatério nesta casa. Até eu vou para sacristão. Que deixe mas é de dar tanto azeite ao bispo e tanto presentinho ao senhor padre. Mas ele a falar a verdade, menino, não há melhor vida que a deles.  Comem à tripa forra e não sabem donde lhes vem.
- Mas eu não quero, Rouxinol...
- Não quer, porquê?
- Porque me quero casar.
- Os padres também casam.
- Com quem?
- Com as criadas. Olhe que vão sempre escolher as mais pimponas, as mais escaroladas. O menino que pensa... Ai! menino, menino!  O Rouxinol tem muito que lhe ensinar...
Mal ouviam os passos da mãe na escada, punham-se a arengar: "Santa Maria, mãe de Deus..."
- São horas de ir para a cama. (Louvado seja Deus, que rapaz tão atilado! Quem dirá que é um pobre zorro, criado ao Deus dará, sem família, sem arrimo!…)
O galego, que lhe tinha sapeira, aborrecia-se com a cantoria do moço. Que diabo, era logo de manhã ao lusco fusco e ia até altas horas da noite. Aquilo era demais e o que é demais passa a mal.
Um dia deram-lhe umas ganas e disse-lhe:
- A cantar é que a vais levando boa. Pensas que não sei as balelas que contas ao menino? Andas-lhe para aí a meter indróminas na cabeça. Se a nossa senhora sabe…
- Vossemecê o que tem é dor disto - e batia com a mão no cotovelo.
À tia Maria do Curral também já lhe andava a chiar no papo. Ficava-lhe em frente do curral, a curralada da morgada. Mal ouvia o goeludo, punha-se a responsá-lo:
- Raios partam tanto zurrar. É pior que o burro do ferreiro. E dizer que ainda há quem lhe ache graça. Eu cá na minha acho que ele dava mais para moço de cego do que para moço de casa.

O Rouxinol andava murcho. Não lhe apetecia cantar. O patrãozinho lá ia para o seminário de Bragança. Tinha de ser. Onde se mete saia de padre e saia de beata, pouco serve teimar. A “Nossa Senhora” tinha aquela fisgada, ela e o padreca, e não havia nada a fazer. Mas deixa estar que ele havia de lhes dar o arroz…
- Deixe lá menino, aguente uns tempinhos. Depois eu é que lhe vou ensinar o catecismo…
Nas férias, os dois entraram em confidências. Aquilo era pior do que parecia; só rezar, aprender latim, levantar cedo e a más horas, comer pouco e mal. Não sabia donde aparecia tanto feijão chícharro, nem tanto grabanço. Também não sabia para onde iam os salpicões que a mãe lhe mandava…
- E quanto a saias, menino?
- Nem vê-las. Só as do bispo e as dos padres.
- Quer um conselho? Faça-se burro. Deixe correr a coisa. Deixe passar mais este ano. Depois é cá comigo…
O Rouxinol também tinha novidades a dar-lhe: com o seu dinheirito tinha comprado um assento no cimo das Eiras. Era pequeno, mas dava para fazer um buraquito. E foram os dois ver a propriedade.
O pior foi a tia Maria do Curral; adregou de passar por ali, escarmentou-se e fez um peneiro dos diabos. Já se andava a vender a terra a todo o moinante; só faltava darem-lhe cadeira na missa.
- Patrão - dizia o ofendido - nunca tive nada de meu na minha vida e o que tenho saiu-me do corpo. Porque será que esta feiticeira me anda sempre a acinzentar? Ainda um dia lhe parto os cornos, ai parto…
- Não faças caso. Ela é assim para toda a gente. Vê se pões uns marcos bem fundos, não t’os vá ela arrancar…

No ano seguinte, rebentou a bomba: o filho da morgada tantas fizera no seminário que tinha sido expulso.
A mãe desfez-se em lágrimas, o padre desfez-se em ameaças e censuras contra os maus exemplos e as más companhias. O pai não deu por nada. Desde que caíra do cavalo e partira a cabeça, era para ali um mono. O galego, com a perna arrasta, é que resmoneava:
- Coisas do instrutor…
Mandaram-no para o Porto, para um bom colégio, e só nas férias vinha a casa. Agora quem era o mestre, era ele. Contava ao seu Rouxinol as suas aventuras amorosas. Este ria a bandeiras despregadas.
- Patrãozinho de um raio. Saiu-me obra acabada. Se o seu avô, que Deus tem, o visse…
Pois a casa do Rouxinol, o palácio, como lhe chamava o patrãozinho, também já tinha alicerces. E mais não crescia, porque o dinheiro estava na casa de quem o tinha…
- Tem calma, Rouxinolzinho - dizia-lhe o amigo. - Eu surripio umas notas da minha mesada e a casa há-de subir.
- Nem pensar, meu amo. Mais queria morrer. Eu sou pobre, mas mais limpo que pano alveiro. Não quero enganar a “Nossa Senhora”.
- Espera, eu não te vou dar nada nem enganar ninguém. Vou emprestar, que é diferente. O que é preciso é pormos o palácio de pé.
E a casa ia subindo; as paredes iam sendo feitas às tiras, conforme o dinheiro. A planta era do patrão, a pedido do criado: duas portas - uma à frente para entrarem as pessoas, outra atrás para entrarem as bestas; em cima, uma porta rasgada, um palanquim e duas janelas; escadas por dentro, por mor do frio.
Os caibros e as traves tinham vindo das propriedades do amo. Só faltava o telhado. Mesmo assim, o Rouxinol aventurou-se a mudar para lá a enxerga. Pô-la sobre umas tábuas, cobriu-a com uma manta e ali dormiu todo o verão. De madrugada, fazia coro com os pássaros que viviam nos olmos.

Enquanto crescia a casa do criado, minguava a fazenda dos amos. Sem o galego, sem rei nem roque, ia tudo água abaixo. O novo caseiro só metia ao bolso e odiava o Rouxinol que estava sempre a advertir a patroa.
Nesse ano, o palácio ficou com telhado. E de telha vermelhinha, da francesa, não da Saldonha.
Mudou-se de vez o cantor. Levou alguns trastes que a ama lhe dera. (O menino também lhe tinha trazido um candeeiro dos modernos que era todo o seu orgulho). Botou sobrado, tapou as janelas com tábuas e respirou fundo, o grande proprietário.
- Agora o resto vai com o tempo, meu rico patrão. Quando puser as portas, vou ver se arranjo uma companha para viver comigo. Recebidinha de igreja como uma madama. Com casa de sobrado, hão-de ser todas “a mim… a mim…”
- Já tens alguma debaixo de olho?
- De cá não, têm-me osga. De lá de riba, das minhas bandas…
O amo ria à socapa. Queria-lhe fazer uma surpresa. Estava já a ver a cara do criado quando visse as vidraças nas janelas… Entretanto, os diálogos continuavam:
- Quando os teus parentes virem o teu palácio…
- Eu não tenho parentes, meu patrão.
- Sempre hás-de ter pelo menos uns primos…
- Os pobres não têm primos. Os ricos é que são todos primos uns dos outros.
À noite, o Rouxinol estava caído nas Eiras. Mirava lá de longe o seu palácio e fazia mil e um projectos. O patrão, que não tinha nada que o distraísse naquele ermo, ia procurá-lo para se rir um pouco:
- Pois é verdade, Rouxinol, e sou eu que to afirmo: a Terra anda.
- Ai menino, sempre me vem com cada uma… Eu acordo sempre no mesmo sítio…
- Então porque é que a Lua não está sempre no mesmo lugar?
- Porque é mulher, e as mulheres andam sempre a dar ao rabo.
- E o Sol? A Terra é que o esconde quando roda.
- Nada disso. O Sol anda atrás dela, o magano. Isso que o menino diz são coisas de doutores e eu posso-lhe garantir que anda para aí muito doutor que é burro.
O jovem ria à gargalhada. Era melhor do que ir ao cinema. E tinha ali um amigo, um amigo bom e puro, o que é coisa rara. Mas também ele pagava-lhe na mesma moeda. Só estava para ver a cara que ele faria… E ambos voltavam felizes para as suas casas.
O Rouxinol estendia-se na sua tarimba e monologava:
- Como é bom termos umas palhas: as nossas palhas! Como um homem é rei em sua casa!
No inverno é que foram elas. O cieiro vinha lá do “Amieirinho” fino como agulhas e repassava-o na cama; o serrano soprava da Serra de Bornes, entrava pelas frinchas das janelas e das portas, e ele batia o dente como se estivesse a bater uma maleita. Deixá-lo. Ia-se à lenha à adega (!). Fazia uma fogueira… e adormecia no lar. Por vezes aquecia um púcaro de vinho com mel e consolava-se.
No Natal, o patrão ralhou-lhe:
- Grande bruto, andas a arranjar alguma. Porque não vais dormir lá a casa? Porque não esperas pelas portas? Lá que brinques no verão, está bem, agora com este tempo, é burrice.
- Ora… deixe-se de coisas. A nossa casa é a nossa sepultura, a sepultura da nossa vida e eu nunca tive onde cair morto…
- Espera até à Páscoa, homem. Então é que vais ver o que nunca viste… Mas espera, alma do diabo. É preciso ter paciência.
Paciência tinha o Rouxinol. Fosse do frio ou de uma pontada que lhe derreava as costas, já não cantava. Quando lhe perguntavam por que tinha perdido o pio, dizia que estava à espera do cuco para cantarem à desgarrada.
A velha ama foi encontrá-lo no catre a tremer de frio. Levou-o para casa. Mas a febre aumentava e ele chamava constantemente pelo seu patrãozinho, pelo seu menino. Mandaram vir o médico. A coisa tinha-se complicado. O filho, mal recebeu a carta da mãe, alugou um carro e pôs-se a caminho.
Quando chegou à vila, meteu-se pelos atalhos e correu, correu até perder o fôlego. Ele tinha adivinhado que aquele maluco, no meio de tanta euforia, ia dar cabo de tudo.
O Rouxinol estava prostrado. Mas sorriu-lhe, sorriu-lhe feliz. Tinha um último pedido a fazer-lhe:
- Menino, leve-me para as minhas palhas…
Fez-lhe a vontade. Agasalhou-o carinhosamente, maternalmente. Pô-lo no carro de bois e levou-o ao seu palácio. Aí, mandou-lhe preparar a cama com os melhores lençóis de linho e os mais fofos cobertores de papa. No lar ardia uma grande fogueira…
O médico não gostou daquele disparate. Mas assim, como assim, não havia nada a fazer.

- Menino, chame o senhor padre…
O padre veio e o Rouxinol, depois de expor as suas culpas, pediu-lhe que fosse testemunha da sua última vontade: deixava a casa ao seu amo.
Este não continha a emoção. E o aio ainda teve forças para lhe dizer:
- Não se consuma, patrãozinho. O que tem de ser, tem muita força. Temos de aceitar o nosso destino…
Onde aprendera ele aquelas palavras? Não eram mais ou menos as de um grande filósofo da Antiguidade?! Mas o Rouxinol nunca abrira um livro, muito menos de filosofia. Onde aprendera tanta coisa? Como conseguia transmitir-lhe tantos ensinamentos? Grande amigo! Grande mestre!
Deu a casa à igreja. Nunca mais quis saber dela. No verão, não veio a férias. Desculpou-se com uma cadeira que deixara para Outubro…
Já lá vão muitos anos e ainda não conseguiu esquecer; um grande amigo nunca se esquece! E tem bem clara na mente a quadra que ele tantas vezes cantava:

A minha escola foi a rua,
Foi nela qu’eu aprendi.
Aquilo que m’ensinou,
Nunca mais o esqueci.

in:altm-academiadeletrasdetrasosmontes.blogspot.pt

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