Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo…
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse…
Antes isso que ser o que atravessa vida
Olhando para trás de si e tendo pena…
* Alberto Caeiro
A fada lavadeira da Cidadela
- Não digas a ninguém, olha que é segredo! Ouviste Quinzinho? – E eu não contava. Não era isso que me interessava. Ouvia e calava. O meu mundo era outro. Eu gostava de juntar duas ou três pedrinhas, jogá-las ao chão e pensar em batalhas imaginárias com muitos militares a cavalo, muito bem ordenados, digladiando-se entre si. Absorto na imaginação de criança, só o murmúrio das vozes e o barulho das enxadas que cavavam uma vinha no Cabeço me desviavam a atenção. Ou o tlim-tlim-tlim do martelo do ferreiro de Além do Rio, a malhar o ferro na bigorna. Ou então o imperdível rufar dos tambores e o barulho das botas dos soldados que em marcha se dirigiam para o quartel.
- Quero ser militar! – dizia para a minha mãe.
– E porque não? Que bem te vai ficar a farda! Vais chegar a General, vais ver.
As palavras da minha mãe faziam-me crescer mais uns centímetros e saía de casa a galope no meu cavalo de pau, com os cabelos louros ao vento, qual guerreiro Visigodo que vai resgatar a Princesa da Arménia, cativa na Torre da Princesa pelo malvado do Senhor de Bragança, Mendo Adão. Lenda que tantas vezes ouvi contar ao Timóteo, um pobre indigente que vagueava pelas ruas da Cidadela e dormia a sesta à sombra das boloteiras, junto às oficinas do Quartel. O Timóteo, ainda que com fama de tonto, era a voz do povo, o que muitos calavam, ele cantava, versejando em cantilenas intermináveis. Quando não estava a dormir pelos cantos, o Timóteo gostava de acompanhar as lavadeiras. Quando as via juntar-se com as trouxas à cabeça, preparando-se para rumarem ao Sabor, o Timóteo, num andar destrambelhado, a segurar a indumentária larga e rota, abria caminho colina abaixo até à presa da ponte velha do Sabor.
- Timóteo, canta-nos uma das tuas, sempre se nos aliviam as costas que hoje o rol não vai leve. – pedia a Guida lavadeira. E o Timóteo acedia, não para agradar à Guida, mas à sua linda filha Rosalina, por quem todos suspiravam. E assim, do alto do Altar, pedra saliente que os mais ousados usavam para mergulhar nas águas do Sabor, Timóteo cantava:
Bem cantava a lavadeira
ao som da sua barrela;
a roupa que ela lavava
era do Rei de Castela
ela lavava no Douro,
estendia naquela serra,
o sabão que le deitava
era cravo e canela;
o cesto onde coava
era de verga amarela;
a caldeira era d`ouro,
a i-asa de prata era.
A cantilena do Timóteo era acompanhada pelo bater da roupa nas lousas inclinadas sobre o rio, pelo esfregar a punhos fechados e pelo torcer a duas mãos. Tudo bem lavado e cheiroso, com ou sem barrela, dependia da vontade e do bolso da freguesia. Nas margens do rio, ao sol, as roupas à cora pintavam de branco a paisagem, sobressaindo as camisas dos militares e as rendas finas das senhoras da cidade. Cheirava a sabão feito em casa, processo cheio de segredos para a minha cabeça de menino. Como era possível das borras do azeite e mais a soda cáustica fazer sabão para lavar a roupa? Mistérios da Química que o Prof. Dionísio me haveria de explicar lá na Escola da Estacada.
De regresso à Cidadela, as formiguinhas lavadeiras, vergavam com o peso das trouxas de roupa molhada. Chegadas à Vila, ainda com os braços e as mãos dormentes de tanto esfregar, estendiam a roupa entre as muralhas como que a avisar os Castelhanos que ali era terra de paz e para guerra bastava a vida.
Rosalina era a mais nova das duas filhas da Margarida lavadeira. Com 16 anos, também ela já ajudava a mãe, sobretudo nas barrelas mais exigentes, acendendo o lume de manhã cedo, acarretando os cântaros de água a ferver, enchendo os latos com a água que era preciso ir buscar à cisterna da Domus.
Foi num desses percursos até à Domus que Rosalina o viu pela primeira vez. Não estava autorizada a olhar para os militares, muito menos a responder aos piropos mais brejeiros dos soldados que, longe de casa e dos afetos, não continham vontades e não raras vezes se metiam em alhadas que a regra militar não contempla. Com o Tenente Malhadas, o Duarte, como Maria, a irmã de Rosalina, gostava de chamar, era diferente. O Duarte era educado, sempre impecavelmente fardado, escanhoado e com um sorriso que trazia as lavadeiras suspirantes.
- Bom dia menina Rosalina! Está um lindo dia! O Sol quase brilha tanto como esses seus olhos verdes…
Rosalina baixava a cabeça e não respondia. Só Deus sabe o esforço que fazia para se manter silenciosa. O Duarte, tão bonito, educado e Tenente! Intrigada, questionava-se como saberia ele o seu nome. Coisa de soldados que tudo sabiam, que tudo perguntavam.
Absorta nos seus pensamentos, mergulhava os latos na água da cisterna. Depois de cheios, tinha dificuldade em erguê-los.
- Isso não é tarefa para mãos tão delicadas. Quer que a ajude menina Rosalina? – ele de novo, o Duarte.
- Não sei se deva. Os meus pais…
O Tenente não deixou terminar a conversa, com a agilidade dos seus 26 anos, duma só vez puxou os dois latos já cheios de água que Rosalina, de mãos trémulas, a custo segurava. Ao sentir por perto o aroma quente e cuidado do Duarte, Rosalina esmoreceu, sentiu as pernas fraquejar e recostou-se para trás. Refeita e assustada, com uma força repentina, saiu da Domus a correr, puxando pelos latos que agora, estranhamente, tinham sido tomados duma leveza súbita.
Do alto da muralha, Timóteo cantava:
Deixa-te andar Rosalina,
deixa-te andar a brincar
que hoje se corta a lenha,
amanhã vais a queimar…
Apesar das pedras das muralhas tudo testemunharem, a vida na Cidadela corria no seu remanso. O povoado acordava com o toque de alvorada do Miguelzinho, o corneteiro Mor do BC3. O toque destinava-se à rotina militar mas também marcava o ritmo dos que no casario habitavam, como era o caso do Sargento Morais que obrigava os filhos a levantarem-se ao toque do Miguelzinho. Os filhos, contrariados, levantavam-se mas vingavam-se no corneteiro. Ao abrigo das muralhas, quando este, de corneta debaixo do braço, regressava a casa, a garotada mais atrevida gritava bem alto:
- Miguelzinho, pardal sem rabo!
E era ver o Cabo Miguel, intrigado a olhar em redor para as muralhas sem perceber donde vinha o impropério.
Verdade, de tão miudinho que era, o Miguelzinho parecia incompleto, Adequava-se a nomeada.
A rotina remansosa da Cidadela só era interrompida nos dias de Juramento de Bandeira. Os populares eram autorizados a presenciar a cerimónia e a assistir à mestria do Prof. Guilhermino na direção da Banda Militar.
Mas outros dias marcaram as nossas vidas. Como aquele em que os soldados regressaram da Índia, corria o ano de 1958. O soldado Benigno, cujo nome de batismo batia certo com o seu carácter, ao passar por mim, gritou emocionado:
- Olha o Quim Vila! Que saudades dos meus rapazes da Vila!
Foi nesse dia que percebi que também se pode chorar de alegria.
No resto, tudo sucedia na normalidade costumeira. O cabo correeiro, nas oficinas do quartel, reparava os atafais das mulas e dos cavalos. A Terrona taberneira guardava a chave da Domus Municipalis, quando víamos alguns turistas canabeques a passar por baixo do Arco de St.º António, corríamos rua acima para pedir a chave do monumento, a nossa jóia da Vila, que mostrávamos com orgulho. Claro que o fazíamos na esperança de nos darem uma moedita para jogar na rifa que nunca saía ou para beber uma laranjada.
Também me lembro de ver fome envergonhada pois os tempos não eram de fartura. A criançada, antes de ir para a escola descia a Rua do Jardim até à Igreja de S. Bento onde as catequistas Luzia, Dina e Teresinha, todas meninas e moças, preparavam o pequeno-almoço com os víveres que os Americanos mandavam pela Cáritas. Tudo regido e orientado pelo coração sem fim do Padre Miguel ajudado pelo Sr. Maurício, sacristão de serviço. Com o estômago mais acomodado, os rapazes partiam para a Escola da Estacada e as raparigas para a de S. Sebastião.
Os dias corriam iguais mas felizes. Ao toque de recolher, vários corneteiros em formatura em frente à Porta de Armas do Quartel, anunciavam o fim do dia.
Houve um dia com um final de tarde diferente.
Eu tinha ido à Fonte do Alcaide buscar um cântaro de água. Pelo caminho cruzei-me com o Laminuta que vinha do Rebolo. Estava ele a gabar-se dos mergulhos que dera da Carrasqueira e dos ralhetes das lavadeiras que queriam a canalha longe porque turvavam a água, quando ouvimos uns suspiros vindos do Carrascal.
- O que é isto? Ouviste Quim? – perguntou o Laminuta como que pressentindo marosca – Ia jurar que ouvi vozes e gemidos.
- Deixa lá isso, vamos embora. – acrescentei eu como que adivinhando desgraça.
- Deixo nada, anda cá.
Contrariado segui os passos de gato do Laminuta que depressa farejou a origem dos estranhos sons. Protegidos pelos carrascos, Rosalina, a morena lavadeira por quem todos suspiravam, perdia-se nos beijos do Tenente Malhadas, já liberto da jaqueta e com a camisa já desabotoada.
-Pára, não podemos! – defendia-se Rosalina entregue aos braços fortes de Duarte.
A cena inesperada provocou no Laminuta um risinho nervoso. A mim causou-me uma desilusão tão grande que sem pensar, soltei um berro que fez levantar a passarada e colocou alerta o casal improvável. Desatamos os dois a correr galgando a colina. Foi tão grande a pressa que me esqueci do cântaro da água lá na Fonte do Alcaide. Ao chegar à Vila, ainda disse ao Laminuta:
- Não digas nada, não contes nada a ninguém, ouviste?
Nem me respondeu, qual cabrito-montês, desapareceu pelas ruelas soltando gritinhos insanos. Naquela mesma noite na taberna da Tia Joana, adivinhava-se o tema da conversa. As línguas soltas, como não têm ossos, trataram de alastrar o sucedido. Rosalina caiu nas bocas do mundo, um beijo incontido, roubado, transformara-se na maior das devassidões.
No Quartel, nos aposentos dos Oficiais, Duarte, o Tenente Malhadas, deitara-se sobre a cama feita, não se desfardara nem descalçara as botas, logo ele que primava pelo esmero e que cuidava da farda com todo o brio. Estava preocupado, Rosalina, agora com 17 anos, era menor. Um ímpeto incontido, impensado colocava em risco a sua carreira militar, logo ele, oficial de carreira que aspirava a altos cargos, ele que até tinha amigos no Ministério. No dia seguinte, no gabinete do coronel, foi-lhe dito que a sua transferência tinha sido autorizada. Sem mais palavras, foi informado que partiria nessa mesma manhã. Não tinha pedido nenhuma transferência, era feliz e realizado em Bragança mas a disciplina militar dava-lhe a frieza necessária para entender a gravidade da situação, sentia-se até agradecido por não sofrer consequências piores.
E Rosalina? Rosalina sentiu a aspereza das mãos da mãe Guida e por três dias e três noites chorou sem parar, não de dor física, mas da ausência de quem amava.
Timóteo, o cancioneiro do povo, do Alto da Torre de Menagem, dizia:
Minha mãe mandou-me à fonte,
à fonte do salgueirinho;
mandou-me lavar a jarra
com a flor do rosmaninho.
Eu lavei-a com areia,
Quebrou-se um pedacinho.
- Anda cá, minha perra traidora,
Onde tinhas o sentido?
Não o tinhas tu na roca,
nem tão-pouco no sarilho;
tinhas é naquele mancebo
que andava de amor contigo.
Ao ouvir os versos do trovador, Maria, a irmã denunciante de Rosalina, sorria. No fundo estava satisfeita com as desventuras da irmã. Como podia o Duarte ter-se enfeitiçado pela irmã, de tez morena e ar de cigana? Como podia a irmã competir com a sua pele alva e os cabelos de ouro?
Timóteo, atento e justo, tinha resposta para Maria:
Eu levantei-me a passear
pela tarde, às duas horas;
vira estar numa janela
duas donzelas formosas:
Uma era muito branca,
da sua cor melindrosa,
outra era mais morena,
morena engraciosa.
Namorei-me da morena
por uma ação generosa;
A branca desque o soube,
logo se mostrou queixosa.
- Cale-se lá, senhora branca,
não seja tão invejosa;
Brevemente l`eu direi
o moreno em quanto se importa:
De preto são nas abelhas
a seu dono proveitosas;
De preto são nos cavalos
e as mulinhas corredoras;
De preto são nos ornatos
com que as igrejas se adornam;
De preto vestia o Rei
e o padre santo em Roma;
Preto era o manto
da Virgem Nossa Senhora.
Passaram muitos anos. O BC3 foi demolido e os militares foram embora. As lavadeiras carpiram a saudade de outros tempos. Já não se ouviam os martelos dos ferreiros de Além do Rio. Deixou de ecoar o som forte e decidido das botas dos soldados. As cornetas emudeceram-se e já não despertavam o casario nem mandavam recolher os indigentes mais descuidados.
Apenas Timóteo continuava a sua função. Nas noites quentes de Agosto, os netos dos que há muito tinham partido, pediam que lhes contasse, mais uma vez, a Lenda das Bruxas Lavadeiras. E ele, sentado no banco a meio do largo onde outrora se formava a parada, contava:
Lavadeiras no Fervença |
- Viste as bruxas a lavar no ribeiro?
O homem respondeu:
- Eu ver não vi. Mas ouvi bater roupa nas lousas.
As pessoas da aldeia andavam sempre a perguntar aos que vinham de fora se tinham visto ou ouvido as bruxas a lavar, pois era a única forma de os apanhar e descobrir quem eram.
As crianças, curiosas, perguntaram ao Timóteo que bruxas eram essas. E ele, com um sorriso desdentado e encardido, mas sincero, dizia:
- Não eram bruxas, era uma fada. Era a Rosalina, a fada lavadeira da Cidadela.
Uma lenda muito bonita e muito bem escrita! Parabéns Rui, gostei muito.
ResponderEliminarLuísa Gonçalves Pereira