A moura e o cavaleiro cristão
Próximo da povoação de Vila Verde, no concelho de Vinhais, existiu noutros tempos uma torre fortificada, que serviu de refúgio a uma princesa moura. Seu pai, um monarca tirano que reinava no norte da Península Ibérica, viu-se de tal forma perseguido e derrotado pelos cristãos que resolveu esconder naquela torre a sua filha predilecta, fazendo-a acompanhar de uma escolta de guerreiros dispostos a tudo para impedir que algo de mal lhe acontecesse.
A vinda da princesa para aquele refúgio causou na população das redondezas grande curiosidade, tanto mais que se dizia ser uma jovem de beleza nunca vista. Os guerreiros mouros encarregavam-se, por sua vez, de manter longe dela os olhares curiosos dos habitantes das redondezas. Acontece que, entre estes, havia um jovem cavaleiro cristão que combatia nas hostes de São Tiago, onde era respeitado pela sua valentia, e que, de tempos a tempos, vinha em visita aos seus pais em Vila Verde, aí trabalhando na agricultura como os demais. Ao saber da presença da bela moura na torre, logo procurou maneira de a ver de perto. Dirigiu-se a um pastor que guardava habitualmente um rebanho nos prados à volta e disse-lhe:
– Se me emprestares o teu capote, o cajado e o bornal, ofereço-me para ir, no teu lugar, guardar o rebanho. Poupar-te-ei trabalho.
O pastor aceitou e o jovem lá foi com o rebanho para junto da torre. E voltou a ir dias e dias seguidos, até que, de tanto persistir e de tanto se aproximar da torre, conseguiu finalmente ver a princesa e cruzar com ela olhares de cumplicidade amorosa. Embora sem trocarem palavra, que a tanto se não atreveriam nem um nem outro, acabaram ainda assim enamorados.
Depois o jovem teve de voltar para o seu posto nas tropas cristãs e a princesa lá ficou, sozinha e triste, olhando insistentemente os horizontes, sem nada saber sobre tão prolongada ausência. Passaram semanas, passaram meses, e o misterioso pastor que ela se habituara a ver nos verdes prados não havia meio de aparecer. Por sua vez, o moço
cansou-se das saudades e pediu licença por uns dias para ir à sua terra-natal e disfrutar de novo da mágica visão que tanto o desassossegava. Ali chegado, voltou a procurar o pastor:
– Empresta-me outra vez o capote, o cajado e o bornal, que eu vou guardar o teu rebanho.
A princesa, que já não tinha esperança de poder voltar a vê-lo, teve grande surpresa e alegria quando ali o encontrou de novo mais o rebanho, olhando fixamente para a torre e para ela. Os olhares que trocaram foram, para um e para o outro, a certeza de que o amor entre ambos era cada vez maior.
Por fim, o cavaleiro voltou a partir. Esperava-o agora o cumprimento do dever.
Para lhe afagar a alma e lhe acalentar a esperança, bastara-lhe aquele brilhozinho que viu, ao longe, nos olhos da jovem moura. Partiu, por isso, mais feliz que nunca.
Contudo, desta vez, o pastor que lhe emprestara o capote e o rebanho não suportou a inveja de o ver escolhido e desejado aos olhares da moura, pelo que resolveu traí-lo, denunciando-o ao chefe dos guerreiros. E a resposta não se fez esperar. O chefe mouro, para se vingar de tal ousadia, foi com os seus homens à povoação e arrasou as habitações do bairro onde o jovem vivia. E não satisfeito, levou a sua crueldade ao ponto de chacinar todos os moradores, por pensar que, dessa forma, o mataria também a ele. Concluída esta vingança, dirigiu-se à princesa e ordenou:
– Reuni o vosso enxoval, que ao amanhecer levar-vos-ei para junto do vosso pai. E fá-lo-ei sabedor das vossas leviandades.
A princesa não ripostou, pois já de nada lhe valeria. Sabia também que a esperavam dias terríveis junto do seu pai e que não teria forças para o enfrentar, sobretudo agora que julgava estar morto o jovem por quem se havia enamorado e que era, afinal, a razão dos seus castigos. Por isso, na manhã seguinte, ao passar com a escolta nas escarpas de um lugar chamado Pena Cabreira, onde apenas podia seguir uma pessoa de cada vez, a jovem adiantou-se e foi empurrando para o abismo um a um todos os mouros que a acompanhavam. Segundo a lenda, após esta façanha, a bela princesa desapareceu no interior de uma gruta próximo dali, ficando encantada numa fraga que ainda hoje o povo identifica como a “fraga da moura”.
Tempos depois, o jovem cavaleiro regressou a casa, e, ao ser informado do que se havia passado na sua ausência, montou num javali e procurou, desesperadamente, a princesa, até que na referida gruta encontrou restos de seda e damasco que terão feito parte das suas vestes. Naquela mesma noite, noite de S. João, ouviu gemidos longínquos misturados com o chiadouro de um tear em movimento.
Reza a lenda que o moço, depois de dias e dias de espera infrutífera à entrada da gruta, regressou aos combates com os mouros, e que o seu fiel javali ficou petrificado num cabeço próximo, olhando fixamente a “fraga da moura”, onde ainda hoje espera o seu regresso.
Fonte: PARAFITA, Alexandre – O Maravilhoso Popular – Lendas. Contos. Mitos., Lisboa, Plátano Editora, 2000, pp. 172-174.
Mouros Míticos em Trás-os-Montes – contributos para um estudo dos mouros no imaginário rural a partir de textos da literatura popular de tradição oral.
Alexandre Parafita
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