Pedro Afonso, que acaba de apresentar um estudo sobre o impacto do excesso de carga horária laboral na saúde psíquica e na vida familiar, não tem dúvidas: trabalhar mais horas não significa produzir mais. E diz que é precisa acabar com ideias como esta: “Quem sai a horas é criticado porque é pouco empenhado, porque não se esforça”.
Trabalhar mais horas não significa produzir mais. É o psiquiatra Pedro Afonso quem o afirma, para alertar em seguida para os riscos da carga horária laboral excessiva, não apenas doenças físicas, mas também do foro psíquico: sintomas depressivos, ansiedade, perturbações do sono.
É um mal muito moderno. O médico, também professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina de Lisboa, no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica e na AESE-Business School, fala mesmo numa nova forma de “esclavagismo”. Quando a tecnologia, criada para nos facilitar a vida profissional e nos devolver tempo de descanso, nos transforma em funcionários a tempo inteiro e quando a pressão para estarmos sempre disponíveis faz com que se olhe de lado para o colega que respeita o horário de saída, acusando-o de ser pouco empenhado, a solução pode residir na capacidade de as empresas assumirem um compromisso ético, que respeite o tão necessário período de lazer e promova uma saudável vida familiar.
Isso mesmo sublinhou esta quinta-feira o autor de “Quando a mente adoece”, durante o debate “O impacto do excesso de carga horária laboral na saúde psíquica e na vida familiar”, promovido pela ACEGE - Associação Cristã de Empresários e Gestores.
É possível traçar uma fronteira entre o ser-se cumpridor e profissional e o saber parar porque se está a trabalhar demasiadas horas?
Há uma linha estabelecida por padrões internacionais que o define. A OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] proíbe o trabalho além das 48 horas semanais, incluindo já as horas extraordinárias. Mas isto não é respeitado, embora seja uma realidade que o excesso de horas de trabalho está associado ao desenvolvimento de doenças físicas, como hipertensão, doenças cardiovasculares e diabetes, mas também psiquiátricas (ainda que existam poucos estudos no que a esta última dimensão diz respeito).
Apresentou esta quinta-feira o resultado de um estudo sobre o tema. Quais as principais conclusões?
A AESE - Business School fez um estudo para avaliar precisamente as implicações de trabalhar mais de 48 horas por semana. Foram ouvidas 439 pessoas e verificamos que 53% estavam em situação de carga horária excessiva. Em média, trabalhando 54 horas semanais, referindo-se o estudo a participantes com uma média etária um pouco acima dos 40 anos. Mais, 75% das pessoas disseram trabalhar também em casa. Ou seja, o que devia ser exceção transformou-se na regra.
E não é difícil impor um limite, quando os telemóveis, o correio eletrónico e até as redes sociais nos fazem estar potencialmente sempre disponíveis?
Vivemos um paradoxo. As novas tecnologias apareceram para supostamente nos facilitar a vida e nos libertar para usufruirmos mais tempo de lazer e o que acontece é exatamente o contrário, com o que isso representa em prejuízos para a nossa saúde e vida familiar. Além disso, perdeu-se um certo pudor e reserva, que existiam há uns anos. Não se respeitam sequer os períodos de refeição, liga-se a qualquer hora... As fronteiras entre vida profissional e vida familiar diluíram-se.
E como é isto se pode inverter?
O que se verifica é que esta carga horária excessiva é algo que vem de cima. Parte dos diretores, chefias e é imposto verticalmente até aos funcionários, o que torna mais difícil promover a mudança. Creio que é um problema que só poderá ser resolvido com o assumir de um compromisso ético por parte das empresas. Esse caminho começou a ser seguido no Japão, por exemplo, e produziu já resultados. Nos anos de 1980, este país assistiu a um número crescente de mortes súbitas devido ao excesso de trabalho. Foi de tal ordem que as empresas foram obrigadas a assumir esse compromisso ético e o Ministério de Saúde teve de intervir. À semelhança do que existe em relação à responsabilidade social, por exemplo, defendo a criação de uma certificação de responsabilidade familiar.
Que se traduziria em...?
No assumir de compromissos que passem por permitir a flexibilização dos horários de trabalho, não enviar emails a todas as horas, criar protocolos com creches próximas dos locais de trabalho, para facilitar a vida dos pais com filhos pequenos...
Na pressão do dia-a-dia, nas rotinas de trabalho que temos instaladas, há sinais que devemos tomar como alarme?
Um dos sinais de alarme é passar a dormir menos tempo, o que abre caminho para o aparecimento dos quadros de ansiedade e depressão. Se dormimos menos, tornamo-nos menos produtivos. E não há como o organismo se adaptar a descansar menos.
Por outro lado, é um erro acreditar que trabalhar 10 ou 12 horas significa produzir mais. Tal como estudar oito horas não significa que o estudo renda efetivamente oito horas. O que se passa é que estamos passivamente a aceitar o que eu chamo ‘novo tipo de esclavagismo’, porque aos escravos não era permitido ter família e a sua vida e saúde podia ser posta em risco em função de um interesse material.
Mas num contexto económico como o que temos vivido, as pessoas vivem pressionadas também pelo medo de perderem os empregos...
É verdade. E há uma certa coação, mesmo entre colegas. Quem sai a horas é criticado porque é pouco empenhado, porque não se esforça. Para mães com filhos pequenos, conheço exemplos, isto é particularmente angustiante. Na minha experiência clínica, encontro também muitos jovens com quadros de exaustão física e psíquica. São licenciados de várias áreas - direito, jornalismo, engenharias - que não aguentam a carga horária enorme, que acontece logo nos seus primeiros empregos.
Na sua vida profissional, consegue impor limites?
[Sorriso] Ainda ontem me perguntaram se podiam ligar às nove da noite. Disse que não. Teria de interromper o jantar.
Mafalda Ganhão
Semanário Expresso
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