Chasco-preto (Oenanthe leucura) | by Joaquim Antunes |
Na minha infância sabia-os distinguir perfeitamente, desde os chascos pardos aos chascos pretos, passando pelas “rabitas” (Erithacus rubecula) , “ lavandeiras” (Motacilla), “escravideiras” (Carduelis spinus) e um rol de outros pássaros e passarões que apenas conheço pelo nome popular, uma aprendizagem empírica que resultou dos interesses da minha infância.
Os miúdos da minha aldeia gostavam de ninhos. Eu tinha uma paixão sem limite por ninhos. Foi o meu pai que nas videiras do Miscaral ou a caminho desse mesmo sítio me ensinou tantos e tantos locais de nidificação, alguns talvez de chasco, mas tantos outros de pintassilgo, de melro ou de rola. Lembro-me muito bem das recomendações que na altura me dava. Os ninhos são apenas para observar. Para observar com muito cuidado e nunca tocar nos ovinhos porque as mães podem “enjeitar”. E quanto tempo eu passei nessas observações! Só em observações, porque para mim um ninho era um pedacinho de palha forrado de conforto para fazer crescer vidas sagradas!
Adorava acompanhar o processo todo, desde a altura em que o passaroco iniciava a sua árdua tarefa de construção do ninho, até à partida aventureira das crias tontas que se esparramavam no chão em pequenos voos rasantes, numa aprendizagem trapalhona e perigosa, onde sobressaía a preocupação quase louca da fêmea chocadeira que empoleirada o mais proximamente possível, assim acompanhava o início arriscado da vida dos filhotes.
Na casa de meus pais nunca houve pássaros encerrados em gaiolas. Em minha casa não há gaiolas nem pássaros privados de liberdade. Os pássaros são para pintarem as paisagens num arco-íris de som e de cor. Foi a “céu aberto” que aprendi a observá-los e nunca precisei de binóculos e muito menos de telescópios.
Quando chegava a primavera eram os “marantéus” (Oriolus Oriolus) da cor amarela inconfundível que mais me fascinavam, principalmente os seus ninhos inacessíveis, pendurados nas pontas dos ramos, em forma de cesta, nas nogueiras grandes e antigas que existiam na aldeia. São já tão raros os “marantéus” nos socalcos do Douro! Um dia destes vi-os de raspão na foz do Tua, num laranjal antigo que ainda existe a jusante da barragem.
Hoje, quando sozinho e sentado num pedaço silenciado da paisagem duriense, sei identificar pelo pio, ou pelo canto, a maior parte das espécies voadoras sobreviventes nesse ecossistema. Percebo quem são, se estão em fase de cio, ou se já estão na fase do choco. É um saber quase natural, espontâneo, que me flui com naturalidade devido à aprendizagem vivenciada do tema que fiz enquanto menino.
Este é o melro, esta é a mejengra (Capeia Arraiana), esta é a pêga (Pica pica), este é o gaio (Garrulus glandarius), esta é a rabita (Erithacus rubecula), esta é a escravideira (Carduelis spinus) … sei-os a todos só pelo simples piar ou por um pequeno trecho de canto que me chegue de uma oliveira ou de uma outra qualquer árvore ou arbusto, sem precisar de vê-los. Mas vê-los, a pular traquinas entre a espessura da folhagem, é para mim extremamente belo e pacificador!
Confesso que os chascos nunca me despertaram grande interesse. Eram comuns, irrequietos e mais esquivos. Os castanhos, castanhos; os pretos, em preto. Para preto tinha o melro, que era muito maior, mais sociável e bonito devido ao seu bico de ouro a assobiar vaidoso na figueira grande da horta florida a caminho da fonte.
Mas o “chasco-preto”, tão comum na minha meninice, tornou-se agora numa ave rara, considerado como criticamente em perigo. Soube-o ocasionalmente num artigo sobre biodiversidade que me chegou às mãos. Caramba, como cresci! Como me afastei de mim! Crescer é mau. A minha filha mais nova diz-me que não quer crescer e acho que tem toda a razão! O crescimento afasta-nos da verdadeira natureza, da pureza humana, das coisas belas e essências! Se eu tivesse ficado na minha infância já tinha reparado que o Chasco-preto não aparece! Há muito que não aparece! Há anos que não faz ninho nas ruínas do moinho do poço da ponte. E eu, que cresci para ter uma vida de adulto normalizada, formalizada, formatada, “uma vida séria e responsável”, não dei por essa essencialidade, não dei conta que o Chasco-preto foi morrendo, morrendo, morrendo …
Eu, que não dei muita atenção ao Chasco-preto durante a minha infância, sinto agora dele uma falta tremenda. Preciso revê-lo, falar-lhe dos seus antepassados a quem não dei atenção devido à banalidade da cor preta, onde espreitava um rabito branco para lhe amenizar o breu. Preciso dizer-lhe que foram os homens da minha terra que os foram aniquilando aos pouquinhos, com os herbicidas e outras modernices que não existiam no meu tempo de convivência com o Chasco- preto, o mesmo chasco que comia os insectos das ervas rasteiras dos bardos mondados nas vinhas de meu pai.
Ao continuar a leitura do artigo reparo que ele ainda não abandonou completamente a região. Ainda há um enclave, um pequeno enclave do meu Douro onde o chasco-preto conseguiu encontrar refúgio. Mas são já tão poucos os da sua espécie que mal se topam, que mal se vêem. Em Trás-os-Montes, lê-se no artigo, “a zona do chamado Douro Vinhateiro, na região de Carrazeda de Ansiães, é favorável à observação desta espécie, que também ocorre um pouco mais para montante, na zona de Barca d’Alva”.
Talvez um dia se permita que o Chasco-preto volte a conviver connosco. Talvez. Talvez quando surgir uma nova consciência ambiental e a terra voltar a ser granjeada com a naturalidade das mãos e sem as intrusões da química.
Houve, em tempos já tão longinquos, um Chasco- preto a povoar-me a infância. Hoje há apenas uma recordação… a recordação de um pássaro antigo a saltitar na saudade.
Luís Pereira
in:noticiasdonordeste.pt
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