O maior manuscrito de rezas judaicas já encontrado, escrito apenas por uma única pessoa, tem autoria de um brigantino. Datado de 1925, com 54 rezas, foi escrito e guardado em segredo por Eugénio Carvalho, que fora sapateiro na Rua Direita, em Bragança.
O manuscrito veio agora a público já que o neto, António Fernandes, o foi guardando após tomar conhecimento da sua existência. Conforme relembrou o neto do sapateiro, os avós não davam a conhecer as práticas religiosos porque naquela altura ainda havia muito receio. "Ele sempre professou a religião judaica mas escondia-se das pessoas, tinha um certo receio. Não se justificava mas no tempo de Salazar ainda havia um certo aperto tanto que eu só tive conhecimento dos livros perto dos 20 e muitos anos. Eu desconhecia que ele tinha os livros. Eu fui criado em casa dos meus avós e uma vez por ano, na altura da primavera, mandavam-me para casa dos meus pais uma semana, que era a semana do jejum deles. Isso causava-me uma certa estranheza e tive que investigar. Até que me apercebi do que se passava e num sábado, dessa semana, vi que saíram de casa e fui ver onde iam. Foram para um pinhal e falavam em voz alta mas eu não percebia o que diziam. Depois compreendi era a confissão deles. Faziam a vida deles mas não davam a perceber a ninguém".
O manuscrito foi cedido a Anum Barriuso e Jose Manuel Laureiro. Com ele deram origem a uma investigação, chamada “Os criptojudeus da raia. Uma cultura de resistência. As rezas de Bragança”, que agora está publicada em livro. Os investigadores revelam que na região não é comum encontrar rezas escritas pelo perigo que representava. "As rezas explicam-nos que o judaísmo não desaparece e vai evoluindo em segredo e pouco a pouco vai criando a sua própria liturgia, separada da liturgia oficial judia, e chega aos nossos dias. Em Portugal nunca tínhamos visto rezas escritas, o que conhecíamos era tudo oral por causa do perigo", explicou Jose Manuel Laureiro. "Conservar um livro destes era um perigo, este senhor foi muito atrevido", disse Anum Barriuso. "Esteve escondido até ao ano 2000 e agora há um segundo livro, do mesmo senhor, no qual estamos a começar trabalhar, mas é mais pequeno", referiu ainda Jose Manuel Laureiro.
O manuscrito de Eugénio Carvalho, que reflecte, em parte, o criptojudaísmo neste zona, integra a exposição “Os Judeus e os Cristãos Novos de Bragança: medo e esperança na roda multicultural transmontana”. A mostra, patente no Museu do Abade de Baçal, reúne peças a partir do século XVII que foram encontradas, ao longo dos últimos três anos, na região. Marina Pignatelli, curadora da exposição, afirma que nunca esperou encontrar tantos vestígios. "Há uma fotografia do poço que está ainda na cidadela, que é medieval, que marca a presença mais antiga dos judeus em Bragança, depois há peças do dia-a-dia: um anel de casamento, que será do século XVIII, um livro de rezas manuscrito com orações criptojudaicas, um agnus day, do século XVII/XVIII, é único ao que se conheça, há também um relicário, que será do século XVII. A maior parte das peças são de Bragança, há apontamentos de fora mas não fui eu que fui à procura porque, como tem aparecido tanta coisa, ainda não consegui sair de Bragança e ir para as aldeias e concelhos à volta".
O manuscrito de Eugénio Carvalho foi dado a conhecer a propósito da segunda edição de “Terra(s) de Sefarad – Encontros de Culturas Judaico-Sefardita” e integra ainda uma exposição no Museu do Abade de Baçal, alusiva a artefactos e memórias de judeus e cristãos-novos de Bragança.
Escrito por Brigantia
Jornalista: Carina Alves
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