Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Francisco Manuel Alves e a sua Vida Económica (1890-1913)

Porque contribui para a descoberta de Francisco Manuel Alves nas suas relações com o que faz – e de que aqui dá testemunho –, nas suas relações com a vida e com os seus semelhantes. Para o conhecimento do homem em todas as suas dimensões, com os seus múltiplos rostos e máscaras, para o conhecimento do seu “lado de dentro”. Fornece-nos elementos valiosos – e até um pouco inesperados – para a sua biografia, para o seu percurso humano, feito de vários itinerários.


Além do mais, esta Vida Económica permite-nos ficar a saber mais desses tempos em que viveu, porque é muito o que deles nos diz. Anda por aqui, neste registo económico, muita e esclarecedora informação sobre o período de tempo a que diz respeito.
Em suma, ajuda-nos a conhecer um outro homem de facetas pouco conhecidas. E, apesar das singularidades próprias da sua personalidade, elucida-nos sobre uma criatura desses tempos, que por eles é marcado. Embora esteja acima deles e para além deles, o que realizou e fez – a interação com o meio e com os seus semelhantes, os seus lavores polifacetados – permite-nos apreender melhor os tempos e o ambiente cultural em que viveu e que, à sua maneira e com a sua ação, por ele foram marcados.
Quando inicia esta detalhada contabilidade das suas despesas – que mantém durante 23 anos – tinha começado a paroquiar em Mairos, concelho de Chaves. Contava então 25 anos.
O que à primeira vista impressiona, pela cópia de informações – e ainda pelo que deixa adivinhar –, é uma grande capacidade aquisitiva, uma significativa apetência, por múltiplos e variados bens, que se consubstancia numa preocupação obsessiva pelo registo minucioso, que o leva a fazer uma contabilidade detalhada. Parece comprazer-se com tarefas de cunho burocrático que são polvilhadas, aqui e além, com registos de índole memorialística.
Desta contabilidade de escriba compulsivo, começam por sobressair os rostos do proprietário e do administrador, com um grande apego a bens mais e menos valiosos. O que faz e realiza, as estratégias de que lança mão e os investimentos que faz para poder dar dimensão aos seus bens. Não deixa de surpreender a visão do gestor de bens e de dinheiros e a persistência e a agudeza do investidor. São traços que seguramente se mantêm até perto dos 50 anos – em 1913, ao fechar a Vida Económica, contava 48 anos. No último ano do registo, já haviam saído três volumes das suas Memórias, o Abade era uma figura cimeira de Bragança e do seu Distrito, e (re)conhecido no País, mas continuava a ser o escrivão metódico que anotava, com todos os pormenores, as suas contas correntes.
Indiscutível a vocação de agricultor (militante) e uma grande paixão pela vida agrícola. Não estamos na presença de um qualquer lavrador, mas de um agricultor que se quer esclarecido, atualizado e pedagógico, que acredita na ciência e na técnica, que se dá à experimentação, que investe no progresso e em invenções e práticas inovadoras. As anotações elucidam-nos sobre o quotidiano de um pároco especial, pragmático e terra-a terra; sobre o quotidiano de um sacerdote que vai fazendo a sua casa agrícola em Baçal, primeiro à distância, desde Mairos, e depois com uma administração de proximidade, quando se fixa na sua terra natal. Fica-se com a sensação, em face dos proventos que realiza, sobretudo em Mairos, que devia conhecer muito bem as suas “ovelhas” e que estas o deviam ter em grande apreço. Se assim não fosse, se não gozasse de tão grande aceitação, e não tivesse criado tanta empatia, não teria realizado tão substanciais proveitos e as suas “ovelhas” não teriam colaborado com tanta “disponibilidade” e agrado na “tosquia” a que, de boa vontade, se sujeitaram.
Impressiona a estratégia utilizada para construir uma casa de lavoura que se poderá considerar abastada. E impressiona o que compra e adquire, desde simples utensílios domésticos e vulgares alfaias, passando por instrumentos agrícolas tecnicamente avançados e por produtos e equipamentos evoluídos (como, por exemplo, armas), até à aquisição de produtos agrícolas, gados e bens imóveis. Mas também outros produtos e géneros alimentares e de vestuário (de menor e maior qualidade, mais e menos valiosos), artigos de luxo e os mais diversos livros.


Mas o que aí colhemos revela-nos, também, uma enorme e invulgar capacidade realizadora e uma multifacetada personalidade. São muitas e variadas as suas preocupações e realizações; são muitos os traços do caráter que manifesta. Há muitas anotações do quotidiano e de variados pormenores da sua vida pessoal e familiar.
Vislumbra-se, no homem zeloso dos bens terrenos, um espírito sensível, profundamente humano, humanista e humanitário, com uma grande ânsia de aprender, de saber e de conhecer, dado ao estudo, à reflexão, à cultura, à ciência. Há, ainda, notas que revelam o leitor insaciável e o homem apaixonado pela cultura, atento às criações espirituais (literatura, história, etnologia, arqueologia, filosofia, ciências, artes, etc.). Há traços do cientista “polimórfico” que vai ser e do humanista que tão atento vai estar ao mundo que o rodeia.
Impressiona o que gasta com a família, o que lhe dá e o que por ela faz. Cobre a irmã de mimos, trata a mãe com extremo carinho, procura assegurar o bem-estar de todos os familiares. O homem, solidário com os familiares, coexiste com o indivíduo esmoler com seres humanos necessitados, que pouco se pareceriam com homens e mulheres. Veja-se, por exemplo, o apoio dado ao tísico e a dedicação com que o trata, como se fosse da família.
O homem que chora quando o “prometedor” irmão morre, a criatura sensível que tudo faz pela irmã mais nova.
É já o ser humano que, mais à frente, no outono da vida, vai “namorar” o pisco que o visita e com o qual mantém “dialogantes” monólogos de grande beleza, trespassados de lirismo. Não deixa de impressionar, contudo, a secura, vizinha da frieza, com que refere a morte do pai – o que também pode querer traduzir serenidade perante a inelutabilidade da morte, mesmo quando se trata de um ente tão próximo.
O Abade não se pode considerar uma típica e “exemplar” personalidade da vida rural; o seu viver quotidiano também se alimenta do espírito da polis. Mesmo como “lavrador”, estamos na presença de um “patego” culto e muito erudito, que mantém relações privilegiadas com cidadãos das urbes que são representantes desse mundo da cultura (das ciências e das artes) que é forjado por elites esclarecidas. Está entre elas. O seu itinerário intelectual e a sua produção científica dão-nos, à medida que envelhece, uma personalidade que se vai distanciar, cada vez mais, dessa componente materialista e economicista – tão presente em Vida Económica –, para ficar obcecado com a cultura, com a ciência, com a sua terra e as suas gentes. Ele é bem o rústico citadino e o citadino rústico.
Nele se congraçam e fundem a ruralidade e a urbanidade. E é nos longos anos passados no ambiente bucólico de Baçal que escreve grande parte da sua obra.
Ele é um cientista da cultura rural e popular porque é um homem da cidade, da polis (cidadão, político), da cultura urbana e académica, das elites e das classes ditas cultas. Interessado em registar, estudar e valorizar muitas das componentes culturais da “civilização campestre” e popular, às quais confere uma dimensão científica.
Mas ele, que vive na aldeia e aí estabelece a sua corte, está apostado em ser simultaneamente um consumidor e produtor da cultura dita erudita – a dos fora científicos que medram nos grandes meios urbanos. Aliás, nenhuma “muralha da China” separa uma da outra. Havia entre elas, a “popular” e a “erudita” – Francisco Manuel Alves sabe-o bem – trocas, contágios, interações.
Com o que a “grande” ciência lhe deu e ensinou, foi um estudioso esclarecido da cultura popular, com a qual, sobre a qual e a partir da qual realizou uma grande obra. Ele soube cultivar e fundir, sem distinções, várias dimensões culturais. A gestão do seu património não o distrai das suas paixões culturais, literárias e científicas, da cultura livresca e académica. Como cultor de várias áreas, prova que não fazia distinção entre a “alta” e a “baixa” cultura. Para ele a cultura era uma só. Unitária. E, por estas e outras razões, foi admirado, como é sabido, por muitos intelectuais e académicos que com ele partilhavam preocupações culturais e saberes.
Homem sabedor e atualizado. Atento ao mundo, conturbado, complexo e heterogéneo que o rodeava, o que se nota nos seus saberes e nos seus fazeres, nas amizades que cultiva – entre as quais se contam grandes vultos da cultura (que lhe prestam preito e homenagem) –, nas suas atividades e intervenções culturais e cívicas, na obra que realiza. Como sabemos, o Abade vai ser – o que este documento já anuncia – um cidadão interveniente e comprometido cívica e culturalmente, um homem de causas pequenas e grandes, que vão desde a defesa do património material e imaterial à defesa do que deviam ser os grandes valores da humanidade; um polemista capaz de se envolver em acaloradas discussões para defender princípios e valores em que acreditava e amigos que prezava…
Registe-se que, para além desta criatura aparentemente simples, se esconde um homem orgulhoso, ciente do seu valor e das suas capacidades, que publicita, com vaidade, o seu curriculum vitae, com todas as suas criações, obras, empreendimentos e realizações. Os feitos que lhe diziam respeito eram para lembrar e mostrar. Melhor se há de compreender, nesta perspetiva, a feitura de Vida Económica, que também acaba por ser uma obra essencialmente autobiográfica. O laudatório currículo que regista na parte final, com elementos até 1913, vai ser inserido na extensa notícia que nos dá sobre ele próprio, no volume VII das Memórias Arqueológicas. Neste tomo, Os notáveis, Francisco Manuel Alves descreve a obra e a ação realizadas até 1930. Fá-lo com manifesto orgulho e com grande vaidade. A publicação deste “arrogante currículo” seria, porventura, a bofetada do “plebeu” a uns presumidos senhores que o haviam “desgostado” e que, no preâmbulo desse volume, intitula de “fidalgotes” e de “zoilos ingratatões”.
Nas páginas de Vida Económica deteta-se, ainda, a atividade do político militante217 que, inclusivamente – como era natural no seu tempo –, “cacicava” os eleitores, compondo-lhes, a expensas próprias, os estômagos, alegrando-lhes os espíritos e levantando-lhes os ânimos.

Casa do Abade de Baçal

Já quase nos esquecíamos: também está presente o padre, o sacerdote, o pastor. Todo o homem não é só isto ou só aquilo, todo o homem é muitos homens e muitas biografias. Francisco Manuel Alves não escapa a esta inelutabilidade.
Muitas e variadas informações se colhem sobre os dias desse período intenso e agitado que corresponde ao ocaso e estertor da Monarquia e ao parto e ao nascimento da República. Documento que guarda, essencialmente, uma grande riqueza sobre o quotidiano e sobre a civilização material: os comeres e os beberes (géneros alimentícios mais e menos comuns), os vestires (são muitas as referências à variedade de tecidos e de trajes, descrevendo com minúcia os variados enxovais do irmão, da irmã e dele próprio); os meios de transporte, as distâncias, as vias de comunicação e as condições de transporte da época. Que nos elucida sobre a mobilidade dessas gentes: as viagens que faziam e como viajavam. Gentes que se movimentavam – apesar das limitações, das dificuldades e dos obstáculos que marcavam as deslocações, servindo-se quase sempre da “viação ordinária” – com alguma “facilidade” e que quase tudo transportavam. Documento que nos informa, por um lado, sobre o que faltava nestas terras transmontanas e, por outro, sobre o que surpreendentemente aqui havia e sobre o que, ainda mais surpreendentemente, aqui chegava!
É enorme a variedade e o volume de informações sobre os preços de uma infinidade de produtos, de artigos, de artefactos, de bens e de serviços e sobre o valor de diversos salários. Informações, ainda, sobre o mundo rural: as fainas agrárias e os trabalhos agrícolas, as práticas e os investimentos que a agricultura destas terras exigia.
Numerosos, também, os elementos sobre doenças e enfermidades e sobre os meios utilizados para as combater.
Documento que nos permite avaliar o contraste entre o “velho” e o “novo”: tradições e práticas rotineiras; objetos, conquistas, técnicas e práticas inovadoras, resultantes do “progresso civilizacional”.
É altura de avançar alguns elementos significativos – que se querem paradigmáticos –, do muito que o escrito contém.
“Em 2 de fevereiro [de 1894], mandei para Baçal uma vaca. Custou 45 000 réis. Transporte 600”. A vaca custava mais do que um enterro pomposo, embora houvesse féretros mais em conta: a 9 de agosto de 1893, com a morte do pai, em Baçal, gastou 20 000 réis. Alguns dias depois, a 8 de fevereiro, “esteve cá [em Mairos] minha mãe, dei-lhe uma cadeirinha de andar a cavalo e mais em dinheiro 2 500. Custo da cadeirinha 1 600”. Tempos antes, em 28 de novembro de 1893, tinha mandado para Baçal, no âmbito desta aquisição de animais domésticos, dois porcos de raça inglesa no valor de 5 000 réis, sendo a despesa de transporte 600 réis.
À frente, há páginas destinadas à “mais nova da irmandade”, Maria Cândida do Coração de Jesus Alves. Ele próprio trouxe para Mairos esta irmã e “afilhada de batismo”, em novembro de 1892. Tinha apenas sete anos.
“Fomos na mala [de Bragança] até Vinhais e depois levei-a a cavalo diante de mim”. Algumas notas, verdadeiramente tocantes, pontuam a pequena narrativa: “Entrou comigo de boa vontade para o carro em Bragança, mas desde que o viu rodar e que minha mãe, que a acompanhara, ficava, desatou numa grande berreira, queria botar-se abaixo; custou a sossegar. Para a distrair comprei-lhe em Vinhais um boneco que tocava automaticamente caixa de rufo, ainda assim adormeceu, tive de a levar nos braços por aquelas intermináveis ravinas e córregos de Lomba. Quando chegámos a S. Vicente da Raia, onde pernoitámos, seriam dez horas da noite, muito escura, e ela completamente dormida, meti-a na cama, onde estava uma mulher da casa e outra pequena. De manhã, acordei ao som das casquinadas e grulhos que as duas pequenas faziam como se fossem conhecidas de sempre”.
Seguem para Mairos. A irmã vai “viver para casa da professora a quem eu dava um tanto por mês à conta do ensino e sustento”. Como se pode ver, eram outros tempos. Outros caminhos, outros meios de transporte, outras demoras e delongas, outros incómodos e dificuldades. Dois dias de viagem… de Bragança a Mairos.
Fala, por entre números, da doença da pequena: “achou-se doente [a 8 de abril de 1895] e assim esteve mês e meio. De galinhas e coelhos 4 000 réis. Ao dr. Santos de Chaves por uma visita 6 000 réis, remédios 2 500, mais vitela e galinhas 4 000 réis”.
Há uma descrição pormenorizada do enxoval que o irmão Manuel António, com onze anos, trouxe de Baçal, em 25 de junho de 1891. Veio, tal como a irmã viria mais tarde, como acabámos de ver, para o mandar educar. Ano e meio depois, a 14 de dezembro de 1892, manda-o para Bragança “a fim de completar a habilitação”. Os “hábitos do liceu” custam 15 000 réis (fazenda e feitio); as “propinas de matrícula”, 5 000 réis.
No meio das contas, insere este depoimento sobre Manuel António: “Pobre irmão! Morreu em Bragança a 14 de janeiro de 1894, com uma gastrite a que sobreveio tifo, quando frequentava o primeiro ano do liceu da mesma Cidade, em cujo cemitério público foi enterrado. Foram no saimento fúnebre os professores do liceu levando a chave do caixão o reitor do mesmo estabelecimento João António Pires Vilar. Teve música e ofícios de corpo presente na Igreja da Misericórdia. No préstito incorporaram-se os estudantes do Liceu e do Seminário”. As cerimónias fúnebres, de um enterro rico e vistoso, implicavam encenações, participações qualificadas, música.
Os ofícios decorriam na Igreja da Misericórdia – que ainda não ostentava na frontaria os azulejos que aí se veem.
E escreve, ainda, estes desabafos dolorosos: “Prometia dar alguma coisa porque era muito inteligente. Em toda a minha vida consciente ainda não derramei outras lágrimas a não ser por este meu irmão. Paz à sua alma!” Para enterrar o irmão “com pompa”, gastou 35 000 réis.


Da análise dos livros que levou para Mairos – livros considerados nessa altura, provavelmente, de primeira 
necessidade –, podem também tirar-se algumas conclusões, como este esclarecedor apontamento, que já revela um leitor com uma enorme sede cultural: “Quando regressei de Mairos para Baçal, minha terra natal, em junho de 1896, trouxe 33 arrobas de livros que adquiri e li enquanto estive nessa freguesia – a melhor aquisição de toda a minha vida que nenhum desgosto me tem acarretado antes mais e mais prazer, satisfação e tranquilidade de espírito”.
A propósito, acrescenta estes comentários de bibliófilo contumaz e de homem de cultura: “Em Baçal tenho sempre continuado a comprar e a ler livros de maneira que hoje possuo uns dois mil exemplares, digo volumes, entre os quais muitos livros raros, incunábulos, obras de valor literário, científico e algumas artístico; as principais obras de literatura europeia, desde Homero a Tolstoi, com a maior parte dos clássicos portugueses, e bem assim muitos códices e manuscritos únicos, alguns de merecimento raro, pelas iluminuras, sendo notável a coleção referente ao Distrito de Bragança que abrange passante de duzentos volumes e opúsculos”. Muitas destas aquisições, que revelam um leitor exigente e criterioso e um investigador apaixonado, teriam servido para elaborar as obras que lhe conhecemos.
Da longa lista de bens, móveis domésticos, ferramentas, artefactos, peças de vestuário, destacamos, pelas indicações que, simultaneamente, nos podem dar sobre o homem e sobre alguns aspetos da “civilização” e do quotidiano desses anos finais de Oitocentos, algumas aquisições: um revólver calibre 12, sistema Leafucheux, 2 500 réis; outro revólver, fogo central, calibre 12, 1 250 réis; um candeeiro de gás com manga de vidro 460 réis; um sobretudo de casimira estambre, 9 000 réis; uma capa de oleado, 4 500 réis; um par de fivelas de prata para os sapatos, à eclesiástica, 1 000 réis; uma arma de fogo central, sistema Remington, 4 500 réis; cartuchos para a mesma, um cento, 500 réis. Inclui ainda objetos variadíssimos de uso doméstico, ferramentas de carpinteiro e de ferreiro, muita roupa pessoal, objetos pessoais ornamentais e de luxo, e materiais para as cavalgaduras, como aprestos e arreios.
E lá vem mais um apontamento sensível: “no dia do seu aniversário natalício, minha irmã e afilhada Maria Cândida… ofertou-me uma fronha de travesseirinha de linho fino holandês… com uma silva a todo o comprimento”, o primeiro serviço bordado que fez.
Do rol de gastos diários, em 1895, destacamos a quantia de 28 000 réis entregue ao favaceiro, a quem não pagava há um ano; dois alqueires de batatas, a 300 cada um e mais dois para sementar, a 240 réis cada; remédios para a irmã Cândida, 320 para a botica e mais, ainda, cinco dúzias de bichas, a 100 réis por dúzia e mais outra dúzia a 320 réis; vitela, 360 réis; uma galinha, 240 réis; um coelho, 100 réis; ao doutor Santos, de Chaves, por vir visitá-la, 6 000 réis; um cântaro de vinho velho, para convalescença da irmã, 900 réis; chocolate para a doente, 360 réis. Ficamos a saber que os “direitos de mercê de três meses pela Igreja de Mairos” importam em 5 735 réis; que os remédios para o “tísico” orçam em 1 300 réis; que com o arroz dos melros gasta 360 réis; e que dá 100 por um quarteirão de sardinhas.
Os livros que arremata em Lisboa, no leilão da livraria dos condes de Linhares, importam em 20 040 réis.
Devem-se referir os gastos com o transporte desses livros até Mirandela, 1 640 réis; gastos com o homem que aí os foi buscar, 1 200 réis, jeira deste 1 500 réis, e merenda, 400 réis; aluguer dos burros, 880 réis. Registe-se que o preço do transporte orçou em mais de um quarto do preço dos livros. Cotejem-se as disparidades nos preços: até Mirandela – no longo percurso feito em meios de transporte evoluídos, na “viação acelerada” – gasta bastante menos do que desta localidade a Mairos.
Sobre o tísico João, que protege, informa que, por um cobertor já usado, pagou 600 réis; para remédios, 300 réis; para conserto de umas calças, 120 réis; pano para uma jaqueta, 1 000 réis; forro para a mesma, 540 réis.


Na rubrica “Mudança para Baçal” reporta, com emotividade, o que se passou e a sua viagem para Bragança.
Sai de Mairos a 21 de junho de 1896. A pé, na companhia de um amigo, que ia cavalo, “fomos dormir a Tronco… e no dia seguinte… parti com o correio a cavalo para Vinhais e daí na mala para Bragança”.
Dos múltiplos gastos diários em Baçal, nos anos de 1896-1897, respigámos alguns apontamentos: “para ferrar as éguas, 720 réis; remédio para a égua, 710 réis; para um alqueire de sal, 240 réis; nove jeiras de mulheres para apanhar batatas, a 60 réis; uma purga para a minha irmã Cândida, 240 réis; três jeiras a espadar linho a 80 réis cada uma; oito quartas de amoras para vinho, a 40 réis cada uma; a uma mulher por fiar 12 ½ arrobas de lã a seco, 500 réis; por um carro de cepos das almas, 1 500 réis; por 15 alqueires de castanhas das almas, 1 500 réis; na hospedaria de Bragança, 500 réis; uma roda de cigarros, 400 réis; um boi para os chouriços, 20 000 réis”.
Tornam-se frequentes as idas a Bragança, em especial nos dias de feira: para a Companhia Hortícola 900 réis; hissope de metal amarelo, 720 réis; caixa de rapé, 160 réis; um candeeiro de gás 600 réis e duas mangas para o mesmo, 100 réis. Vejam-se as despesas com os eleitores, 1 200 réis para vinho.
Em Bragança, para comer, 210 réis; fruta, 100 réis; gasosa, 10 réis; cerveja, 100 réis; cigarros, 40 réis; e três queijinhos, a 90 réis cada um; livros no alfarrabista, 800 réis; três arráteis de pimento, a 120 réis; cinco alqueires de sal, a 200 réis; três quartilhos de mel, a 100 réis. Compra ossos para a vinha, “deslousa a casa”, investe muito no fumeiro. E ficamos a saber que havia um alfarrabista em Bragança.
Em 1898, para castrar as colmeias, 200 réis; por um cântaro de azeite, 2 880 réis; e um litro de gás, 140 réis. Em Bragança, por duas albardas, 1 300 réis; um leitão, 700 réis; dois arráteis de trutas, 480 réis. Neste mesmo ano, regista em novembro, na eleição de deputados, tabaco aos eleitores, vinho e chibo para os mesmos, 2 180 réis.
São muitas as informações sobre atividades financeiras que envolvem empréstimos de dinheiro – “paguei à Cristiana de Bragança o resto da dívida… 72 000 réis de que vinha pagando juros” –, aquisições de propriedades, trocas e vendas, construção de um pombal, informações sobre os moinhos, aquisição de sementes exóticas que manda vir do Porto, compra de livros… Em 1900, por uma casa, adquirida no Picadeiro – de que se vai servir durante muitos anos – paga 90 000 réis.
Na rubrica “Vinha”, informa que a “filoxera vastratix aniquilou completamente os vinhedos que acabaram de redondo em Baçal em 1889, ficando apenas algumas poucas parreiras em altas latadas. Em abril de 1892, plantei a cortinha daquele lado da Bagueira com bacelos nacionais que mandei de Mairos, onde as vinhas não secaram devido a ser terreno granítico. Não deu resultado; secou logo. Quando em 1896 vim de Mairos para Baçal, como pároco, a minha família apenas colhia três almudes de vinho das parreiras de Rei”. E com orgulho diz que foi o primeiro, na freguesia de Baçal, a tentar a reconstituição dos vinhedos por bacelos americanos; em Varge, foi a família Martinho Rodrigues.
Entre 1910-1913, ficamos a saber o preço de máquinas e de alfaias agrícolas, de armas, de peças de roupa requintada, de jeiras… Uma prensa para espremer bagaço, 24 000 réis; uma tarara para limpar pão, 36 000 réis; arma de carregar por trás de dois canos de aço, por 20 000 réis. Nunca houve tanta palha, em Baçal, como em 1913, e as jeiras para segar centeio (650 réis) nunca foram tão caras.


Quanto à atividade política, regista que, em novembro de 1908, foi eleito vereador da Câmara Municipal de 
Bragança, deixando aí o seu nome “vinculado a um empreendimento de enorme importância literária…, a impressão de forais e mais documentos históricos relativos ao Município de Bragança.”
Na secção “O seu civismo e ação social”, colhem-se informações importantes para conhecer muitas das suas iniciativas. Segundo diz, com orgulho, foi ele o “primeiro que em Portugal levantou a questão sobre a comida das diversas carnes de animais, uso que, se chegasse a generalizar-se, seria da máxima importância para o proletariado”.
Esta ideia seria muito discutida na imprensa da especialidade agropecuária.
É com “Distâncias” que acaba a sua Vida Económica. As medições “a passo”, que regista e converte em metros e quilómetros – como o seu passo regula, segundo diz, por 80 centímetros, a distância entre Baçal e Bragança andaria pelos 6,5 km –, são fruto da curiosidade persistente e do espírito minucioso de Francisco Manuel Alves, também ele paciente e atento caminhante.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

Sem comentários:

Enviar um comentário