Sou um entre muitos transmontanos vindos ao mundo no princípio da segunda metade do século XX, quando os carros de bois chiavam nos caminhos, as mulheres desenferrujavam a língua junto à fonte, os ritmos continuavam a ser marcados pelo sino da igreja matriz e a senhora professora, virtuosa, beata e exigente, era a expressão possível do que sobrava de mundo para além do horizonte.
Depois da escola ficava a lavoura quotidiana, a missa ao Domingo, a festa anual com altifalante até que chegasse o tempo de os mancebos rumarem à cidade para serem medidos, pesados e auscultados por homens de fardas engomadas, a cheirar a pano novo, sapatos de verniz e relógios de contrabando a reluzir.
Fraco destino comparado com o que, às vezes, se ouvia contar de fortunas colhidas nas áfricas ou de vida melhorada, com venda e casinha posta ao lado, por essa Lisboa, onde havia eléctricos, autocarros, alguns aviões e um porto com barcos carregados de gente nas idas e voltas do mundo.
Feita a 4.ª classe, talvez se pudesse chegar à guarda ou à polícia, houvesse sorte no exame, mas ainda faltavam muitos anos. As noites à luz da candeia não abriam grande apetite para leituras e os erros ortográficos podiam tornar-se porta fechada para vida limpa e respeitada. Na vila, só se aprenderia mais qualquer coisa no seminário, mas a batina e a monotonia arredavam a garotada.
Quanto às meninas, esperavam por noivo trabalhador e ordeiro ou por filho de gente com fazenda, para dar seguimento à vida na forma que Deus queria. Alegria podia ser calhar-lhes um guarda aprovado e correr o país, ver os filhos estudar e chegarem a empregados de finanças, ou professoras, talvez engenheiros e oh!, grande sorte, se ficassem doutores num hospital dos grandes.
Outra alternativa era o caminho da vila ou da cidade, para empregada doméstica, com mesa, cama e horário de escrava, ou para criada na cozinha da taberna, na rouparia da pensão ou na mercearia da esquina.
Não iam muito mais longe as hipóteses para os rapazes. O balcão do café, o serviço de mesas, a oficina oleosa de automóveis ou a porta da repartição, com farda e escalfeta, a ganhar pouco mas seguro, com direito a reforminha com catarro. Uma loja ao fim de trinta anos, com boa clientela e margem de lucro certo, a garantir tranquilidade para chegar a um carro para os fins de semana era um sonho. Era a expectativa de vida, desde que uns senhores, conhecidos de ministros em Lisboa, não nos tomassem de ponta.
Pelo meio dos anos 70 pareceu que a roda virara. Já não mandariam sempre os mesmos e como fizeram assim poderiam achar.
Somos, geralmente, o produto da vida a que tivemos direito. Se não nos ficou tempo para a reflexão suportada sobre a humanidade, sobre a moral ou a ética, a misericórdia e o pecado, facilmente nos deixamos levar pela convicção de que nunca nos será feita suficiente justiça. Pobres e burros, que os leve o diabo.
Assim, se não tivermos suficiente serenidade, a vida pode empurrar-nos para a representação ingrata do papel de mau da fita, sempre disponível para ser o bode expiatório dos pecados dos outros.
Teófilo Vaz
in:jornalnordeste.com
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