terça-feira, 22 de janeiro de 2019

QUASE EXPLICAÇÃO DO PECADO

Sou um entre muitos transmontanos vindos ao mundo no princípio da segunda metade do século XX, quando os carros de bois chiavam nos caminhos, as mulheres desenferrujavam a língua junto à fonte, os ritmos continuavam a ser marcados pelo sino da igreja matriz e a senhora professora, virtuosa, beata e exigente, era a expressão possível do que sobrava de mundo para além do horizonte.

Depois da escola ficava a lavoura quotidiana, a missa ao Domingo, a festa anual com altifalante até que chegasse o tempo de os mancebos rumarem à cidade para serem medidos, pesados e auscultados por homens de fardas engomadas, a cheirar a pano novo, sapatos de verniz e relógios de contrabando a reluzir.

Fraco destino comparado com o que, às vezes, se ouvia contar de fortunas colhidas nas áfricas ou de vida melhorada, com venda e casinha posta ao lado, por essa Lisboa, onde havia eléctricos, autocarros, alguns aviões e um porto com barcos carregados de gente nas idas e voltas do mundo.

Feita a 4.ª classe, talvez se pudesse chegar à guarda ou à polícia, houvesse sorte no exame, mas ainda faltavam muitos anos. As noites à luz da candeia não abriam grande apetite para leituras e os erros ortográficos podiam tornar-se porta fechada para vida limpa e respeitada. Na vila, só se aprenderia mais qualquer coisa no seminário, mas a batina e a monotonia arredavam a garotada.

Quanto às meninas, esperavam por noivo trabalhador e ordeiro ou por filho de gente com fazenda, para dar seguimento à vida na forma que Deus queria. Alegria podia ser calhar-lhes um guarda aprovado e correr o país, ver os filhos estudar e chegarem a empregados de finanças, ou professoras, talvez engenheiros e oh!, grande sorte, se ficassem doutores num hospital dos grandes.

Outra alternativa era o caminho da vila ou da cidade, para empregada doméstica, com mesa, cama e horário de escrava, ou para criada na cozinha da taberna, na rouparia da pensão ou na mercearia da esquina.

Não iam muito mais longe as hipóteses para os rapazes. O balcão do café, o serviço de mesas, a oficina oleosa de automóveis ou a porta da repartição, com farda e escalfeta, a ganhar pouco mas seguro, com direito a reforminha com catarro. Uma loja ao fim de trinta anos, com boa clientela e margem de lucro certo, a garantir tranquilidade para chegar a um carro para os fins de semana era um sonho. Era a expectativa de vida, desde que uns senhores, conhecidos de ministros em Lisboa, não nos tomassem de ponta.

Pelo meio dos anos 70 pareceu que a roda virara. Já não mandariam sempre os mesmos e como fizeram assim poderiam achar.

Somos, geralmente, o produto da vida a que tivemos direito. Se não nos ficou tempo para a reflexão suportada sobre a humanidade, sobre a moral ou a ética, a misericórdia e o pecado, facilmente nos deixamos levar pela convicção de que nunca nos será feita suficiente justiça. Pobres e burros, que os leve o diabo.

Assim, se não tivermos suficiente serenidade, a vida pode empurrar-nos para a representação ingrata do papel de mau da fita, sempre disponível para ser o bode expiatório dos pecados dos outros.


Teófilo Vaz
in:jornalnordeste.com

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