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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Tudo em jogo

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


Naquele fim de tarde, a pequena e escura taberna estava enevoada de fumo de tabaco e as vozes tonitroantes de homens enchiam o espaço.
Por entre as mesas toscas de madeira, ladeadas de bancos corridos, o chão de lajes grosseiras estava manchado e sujo de anos de vinho entornado. Os candeeiros a petróleo, nas paredes de madeira enegrecida, travavam uma luta desigual com as trevas e o fumo que dominavam o estabelecimento. Uma enorme lareira crepitava e emprestava mais um pouco de luz bruxuleante a todo o ambiente.
Estavam os clientes todos amontoados, ao fundo, em volta da mesa onde estavam a ser decididos destinos.
Sentados, cercados pela pequena multidão, estavam quatro homens. Dois deles, eram sem dúvida camponeses, vestes modestas e rostos tisnados do sol com barbas crescidas, cortadas há muitas horas. Outro, envergava um blaser preto, discreto e rosto barbeado mas também queimado de muitas horas ao ar livre. O último deles aparentava ser o mais abastado de todos. Casaca preta comprida, cabelo impecavelmente cortado, rosto pálido e barba curta, devidamente aparada, sobreposta por um respeitável bigode de pontas retorcidas.
Os três primeiros, habitavam aquela aldeia e eram jogadores assíduos de dados na tasca do António “Bisarma”, um gigante com um metro e noventa e mais de cento e vinte quilos de peso. O ultimo deles era um recém chegado que se apresentou como um negociante de propriedades chamado Fernando Sarmento.
Os dois camponeses, o Manel “Esbarrola” e o “Xico da Horta”, jogavam habitualmente com o João Morais, lavrador proprietário conhecido pelo “Fanhoso”, em apostas mais ou menos elevadas. Muitas vezes as partidas levaram os magros rendimentos dos camponeses, mas outras tantas, o lavrador deixou gordas maquias nos necessitados bolsos dos companheiros.
Naquela tarde, o forasteiro entrou na taberna para beber e, após algum tempo a assistir ao jogo, mandou servir mais uma rodada de tinto a todos os presentes, apresentou-se e perguntou se podia juntar-se ao trio.
Após um olhar rápido entre todos, assentiram e Sarmento sentou-se ao lado do Fanhoso.
Em cima da mesa, além dos quatro dados e uma caneca de barro  com vinho,  três copos de madeira e pequenos montes de moedas ficavam à direita de cada jogador.
Jogavam ao vinte e um. Cada jogador lançava os quatro dados e, se o valor fosse inferior a vinte e um, escolhia um ou mais dados e podia jogar duas vezes até atingir o valor máximo menor ou igual que vinte e um. Se o valor fosse ultrapassado, perdia imediatamente, senão, finda a ronda de todos os jogadores, ganhava o que conseguisse o valor mais elevado.
As moedas corriam em cima da mesa ora para um lado ora para outro e, após algumas jogadas equilibradas, o forasteiro rapidamente começou a arrebanhar todo o dinheiro da mesa.
Mais duas canecas do tinto adamado se beberam antes do Xico da Horta, nervoso, gaguejar um “Já não tenho tusto” e levantar-se, juntando-se aos assistentes.
O Manel Esbarrola, assim conhecido pelo temperamento irascível e pelas gabarolices que lhe eram característica, começou a “ferver” assim que as últimas moedas se lhe escaparam da mão:
-        Demónios dos infernos. Excomungado jogo que não me dá sorte nenhuma. - Ferrou um soco na mesa que fez saltar dados, moedas, copos e canecas. - Não consegui fazer as sortes virarem.
Sarmento olhou surpreendido para o Fanhoso que acenou negativamente, de olhos no chão, desaprovando a já esperada conduta.
-        Eh, lá, ó Manel! - Trovoou o Bisarma de trás do balcão. - Já sabes que não quero cá coices! Se escoicinhas na mobília ponho-te na rua.
O Esbarrola voltou-lhe as costas e atirou um braço ao ar enquanto resmungava um “Deixa-me cá”.
Os outros dois jogadores olharam-se e o Fanhoso negou com a cabeça, informando que também para ele o jogo estava terminado.
O forasteiro ficou-se sentado à mesa a brincar com os dados enquanto os restantes clientes retomavam os lugares que ocupavam antes do jogo se tornar interessante.
-        Deixe-me jogar mais uma. - Pediu o Esbarrola de repente.
Sarmento olhou-o nos olhos antes de responder:
-        Não disseste que não tinhas mais dinheiro?
-        Sim, mas posso jogar outras coisas. - Voltou-se para o companheiro que se mantinha ao seu lado. - Xico, arranja-me cá um cigarro.
-        Arre porra, homem, os últimos dois que fumaste fui eu quem tos deu. Achas que a mim não custam dinheiro? - O da Horta atirou. - Hoje não larpas mais nenhum que eu te dê.
Manel deitou um olhar azedo ao amigo antes de tornar ao forasteiro.
-        Então? - Inquiriu. - Que me diz vossemecê?
-        Que tens que me possa interessar? - O indivíduo tornou o olhar para a mesa enquanto brincava com os dados numa atitude descontraída. - Tens terras?
-        Terras não tem. Esse lôrpa perdeu, as que o pai lhe deixou, há dois anos nessa mesa. - Interveio o taberneiro de braços pousados no balcão e atento à conversa.
-        Não tenho terras, mas tenho um cavalo. - Afirmou o Esbarrola ignorando o Bisarma.
-        E queres jogar o teu cavalo? O teu ganha pão? - Perguntou o estranho fitando-o nos olhos.
-        Não faças isso, Manel. - Avisou o Xico da Horta. - Se o perdes ficas sem emprego ou vais para carrejão.
-        Sim quero! - Ele ignora completamente os restantes.
-        Sente-se por favor. Eu aposto todo o dinheiro que aqui ganhei esta noite contra o teu cavalo. - Convidou Sarmento. - Senhor António, traga mais uma caneca.
Assim que o adversário se sentou, o homem tirou do bolso do casaco um pequeno molho de papeis. Soltou um deles, que se revelou uma folha amarelada dobrada em quatro e perguntou:
-        O teu nome é Manuel...
-        Esbarrola! - O grito, coroado de gargalhadas, veio de uma das outras mesas. Todos estavam atentos à conversa.
-        ...Bugio. - Esclareceu Manuel, ignorando-os.
Continuando o seu ritual, o forasteiro retirou de outro bolso uma caneta que destapou e começou a escrevinhar enquanto lia alto:
-        Eu, Manuel Bugio, declaro que este documento atesta a propriedade do meu cavalo e será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de de dados. Testemunha deste acordo foi o senhor António Pereira, taberneiro.
O tasqueiro pousa a caneca sobre a mesa e olha espantado para a caneta de tinta permanente que o homem empunhava. Nunca tinha visto nenhuma, embora já tivesse ouvido falar, até o senhor abade escrevia com aparos que molhava na tinta.
-        Senhor António. - Interpelou Sarmento. - Quer ser nossa testemunha, ler e assinar este contrato?
O Bisarma repetiu, de forma errática, as mesmas palavras que escutaram e garatujou o seu nome, numa letra infantil.
-        Agora você, Manuel. - Pediu o forasteiro.
-        Eu... não sei ler nem escrever. - Lamentou.
-        Não há problemas. Pegue na sua faca e faça um corte num dedo. Ponha uma pinga no fundo do papel e calque com um dedo..
Lentamente, os restantes clientes da taberna levantavam-se e refaziam o círculo à volta da mesa com os dois contendores e observaram o estranho ritual.
Tiraram as sortes e  Manuel começou... era prometedor, encheu o copo e esvaziou-o. Ganhou a primeira mão e passaram à segunda, também iniciada por ele, mas foi Sarmento quem arrebatou maior pontuação. Estavam empatados e a próxima decidiria tudo. Manuel encheu o seu copo e despejou-o quase de um trago.
O forasteiro lançou os dados e na sua jogada não conseguiu mais que um dezoito. Animado, Manuel iniciou o seu jogo; o lançamento só lhe deu quinze pontos; uma quadra, duas quinas e um ás. Pegou no dado com apenas uma pinta e lançou-o. Saiu um duque; fez um gesto de contrariedade, dezasseis ainda não chegava, só tinha mais uma hipótese. Relançou o dado novamente para obter, de novo, o um. Perdeu.
Sarmento, calmamente, dobrou o papel que comprovava a propriedade do cavalo e meteu-o no bolso.
Manuel, ainda debruçado sobre a mesa, estava em transe mas, de repente, levantou-se com brusquidão atirando o banco onde estivera sentado para o chão. Deu dois murros com os punhos fechados na mesa. Sarmento recuou instintivamente mas não se levantou. O taberneiro agarrou no braço de Manuel e preparava-se para o “acompanhar” à porta quando ele mudou de atitude:
-        Senhor Sarmento, por favor. Não me faça isto... - Implorou.
-        Isto o quê, meu amigo? Jogamos ambos, de boa fé, de acordo com o que nos propusemos. Eu ganhei, você perdeu.
-        Por favor. Eu prometo que lhe pago o valor do cavalo. Só preciso de mais algum tempo.
-        Não posso. Tenho que ir embora daqui a pouco.
-        Por favor. Não me deixe assim. Dê-me mais uma oportunidade...
Havia um silencio pesado na taberna, ninguém respirava a aguardar a resposta.
-        Está bem. - O forasteiro anuiu ao mesmo tempo que se ouvia um suspiro aliviado de toda a audiência. Mas ele logo continuou. - Que mais tens para jogar?
-        Vai-te embora rapaz. - Aconselhou o Bisarma.
-        Manel, não insistas, hoje o mar não tá para peixe. - Pediu o Quim da Horta. - Deixa ficar assim. Alguma coisa se há-de arranjar.
Outras vozes faziam coro, condoídos com a situação do homem, que apesar de tudo era responsável pela sua própria desgraça.
-        A minha casa. - Manuel sentenciou de forma quase inaudível. - Quero jogar a minha casa.
-        Espera Manel! - Interveio o Fanhoso – Não faças isso! Eu ajudo-te alguma coisa, adianto-te algum dinheiro. Não jogues a casa que te desgraças, homem.
-        Ouve, Manel. - Agora era o taberneiro que insistia. - Não faças isso, esse homem não quer saber de ninguém, está a causar a tua desgraça! Mataste a tua mãe de desgosto quando perdeste as terras, deixas a família passar fome, porque gastas tudo no jogo. Agora vais deixa-los sem teto? Valha-te Deus, lembra-te que a tua mulher está grávida e que tendes já um filho. Que queres fazer da vida, celerado?
Manuel sacudiu a manápula pesada do Bisarma e insistiu com Sarmento:
-        Que me diz? - Tudo o que ganhou hoje, cavalo incluído, contra a minha casa. Não disse que está interessado em propriedades?
-        Sente-se Manel. - Sarmento permitiu-se um sorriso de escárnio enquanto tirava novamente o pequeno maço de folhas amareladas de onde tirou uma cuidadosamente dobrada. - Vamos escrever isto, sim? Eu, Manuel Bugio, declaro que este documento atesta a propriedade da minha casa e será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de de dados. Testemunha deste acordo foi o senhor António Pereira, taberneiro.
-        Eu não assino isso! - Recusou-se o Bisarma. - Não vou ajudar a desgraçar esse infeliz.
-        Porque não? - Perguntou Sarmento. - E o senhor Xico da Horta? Quer assinar? Devolvo-lhe o dobro do dinheiro que perdeu esta noite.
O homem corou e notou-se que travava uma terrível luta interior. No entanto, a necessidade de dinheiro era mais forte, aproximou-se e gemeu um quase inaudível “Desculpa Manel”.
-        Testemunha deste acordo foi o senhor Francisco... - Continuou o forasteiro após riscar o nome do taberneiro.
-        …Terroso. - Concluiu o Xico. - Eu também não sei escrever.
-        Não tem mal. - Descansou-o Sarmento. - Só preciso de uma cruz. A promessa dele é que exige sangue.
Depois de todo o ritual terminado, a mancha de sangue apensada em mais um contrato, o forasteiro define mais uma regra:
-        Apenas uma jogada cada um. Estou a ficar sem tempo. Começa o Manel.
A tremer, Manuel apertou os dados com toda a força antes de os lançar para o meio da mesa. Olhou incrédulo para o resultado. Contou por duas vezes as pintas, todos festejaram, vinte de uma mão só! Era um milagre, todos gritavam, ia recuperar tudo e ficava com lucro.
Sem perder a calma, Sarmento atirou os seus quatro dados que pareceram demorar uma eternidade a imobilizar-se e... não era possível! Dois seis, um cinco e um quatro! Vinte e um! Ele conseguiu suplantar de uma mão só uma jogada quase única, só podia ser obra do Diabo!
-        Por todos os demónios!!! - Berrou Manuel fora de si enquanto atirava com os dados contra a parede e escacava a caneca no chão.
-        Chega! - Gritou o taberneiro arrastando Manuel pelo braço. - Eu avisei-te, todos te avisamos, não vais agora fazer baderna aqui e partir-me a tasca toda. Põe-te lá fora. O frio vai arrefecer-te essa cabeçorra e pensar na grande merda que fizeste esta noite.
-        Senhor Sarmento, por favor! - Implorou Manuel enquanto era arrastado pelo gigante. - Não se vá embora! Espere um bocadinho, eu vou arranjar algum dinheiro e falamos outra vez, espere....
-        Só vou beber mais um copo e depois vou embora. - Gritou o forasteiro antes do taberneiro bater a porta na cara ao destroçado Manuel.
 Cá fora já estava escuro. Pequenos fiapos de neve esvoaçavam empurrados por um vento ainda suave mas gelado. Ele estremeceu com a mudança de temperatura mas isso não impediu que se sentasse na pedra friíssima que servia de banco.
Chorou. Chorou ali, que ninguém o via. Sozinho, no escuro, porque os homens não choram e ele não podia passar por mais essa vergonha.
Os efeitos do vinho e dos nervos produziam um zumbido irritante dentro da cabeça que tinha dificuldades em manter erguida.
Decidido, levantou-se, limpou as lágrimas com as costas da mão e caminhou em passos largos em direção a casa. À Casa que já não era sua.
Entrou porta dentro como um furacão, abrindo a porta com força, fazendo-a bater na parede.
-        Credo! Homem de Deus que me matas de susto! - Alarmou-se Maria das Virtudes, sua mulher, que se afadigava na cozinha. A barriga proeminente anunciava mais uma boca para alimentar.
Não lhe respondeu e passou por ela, como se não a visse, com um olhar alucinado e o rosto sujo das lágrimas que escorreram.
Entrou no quarto onde dormiam e começou a remexer as gavetas da mesa de cabeceira e depois nas gavetas da cómoda.
Maria aproximou-se lentamente, apavorada, sem se atrever a dizer palavra enquanto observava a revista descontrolada que estava a ser feita.
-        Que está a fazer o pai, mãe? - Uma voz fina de criança fez-se ouvir quando um menino se juntou à mulher e agarrou a borda da saia.
-        Shhh, filho, não digas nada. Vai para a tua cama, vais? - A voz tremente de Maria pediu.
Entretanto Manuel tinha atingido o seu objetivo e exibia, triunfante um cordão em ouro que retirara de um dos gavetões.
-        Que vais fazer com isso? - Ela esforçou-se por mostrar firmeza.
-        Cala-te, mulher! Isto é a nossa salvação! - Retorquiu ele.
-        A nossa salvação? Ou o resto da nossa desgraça? Há quanto tempo não entra dinheiro nesta casa, que o gastas todo na taberna e no maldito jogo? Esse é o ultimo valor que temos, tirando a casa e o cavalo. Foram os meus pais que mo deram. Não vou deixar que o leves.
-        Não vais deixar? - Ele torceu o rosto numa careta de desprezo e desafio enquanto parecia crescer em frente a ela. - Já não temos casa nem cavalo. Com este cordão vou tentar que ao menos fique a casa.
-        Ah, excomungado, maldito! - Ela começou a agredi-lo com sapatadas pouco eficazes. - Amaldiçoada seja a hora em que o diabo te pôs no meu caminho!
-        Está quieta, cabra estúpida! - Ele começou a soca-la com o cordão envolto na mão. - Está quieta ou dou cabo de ti.
Ele continuou a bater-lhe enquanto ela caía e gritava e continuou a bater-lhe depois que ela se calou. A criança chorava alto, agarrada à mãe até que ele lhe deu um estalo que a atirou ao chão, atordoada. Deu mais dois pontapés na mulher e preparava-se para sair quando irrompem pela casa o pai e a mãe de Maria que acudiam aos gritos da filha.
Depois de uns segundos de espanto, o homem atirou-se a Manuel e envolveram-se numa sequencia de murros e pontapés  que se arrastaram até à cozinha enquanto a mulher acudia à filha que jazia no chão, balbuciante. Agora era outra a mulher que gritava e chorava agarrada à filha e ao neto.
Na cozinha, Manuel tentava, sem sucesso, soltar-se do furioso homem que o agredia. Devolvia os socos e tentava defender-se como podia até que chocou contra uma banqueta de madeira que quase o fez cair.
Evitando um ultimo soco,  pegou na banqueta e começou a agredir o sogro com toda a fúria até que este se imobilizou no chão.
Largou “a arma” e saiu a correr.
Dirigiu-se para a saída da aldeia, e, quando chegava à encruzilhada, avistou Sarmento que se afastava, montado num cavalo e levando outro pela arreata.
-        Senhor Sarmento, senhor Sarmento! - Chamou.
O homem imobilizou-se e voltou-se para ver quem o chamava.
Assim que Manuel se aproximou o suficiente, com o rosto marcado e com sangue, as roupas rasgadas, o interpelado comentou do alto da montada:
-        Você não desiste, homem? Não deveria estar a procurar um lugar onde ficar? Para a semana estarei cá de novo e quero a minha casa vazia.
-        Por favor. - Implorou Manuel. - Não me faça isso. Veja, tenho aqui este cordão de ouro, pelo menos dê-me o papel da casa.
O homem desceu, pegou o cordão, examinou-o e devolveu-o ao proprietário:
-        Acha que isso é suficiente para comprar a casa?
-        Não. Eu sei que não. Mas se o aceitasse como boa-fé, para a semana terei mais dinheiro e vou pagando até ao valor que achar bem. Juro!
-        Quer jogar uma mão? - Sarmento exibiu um riso de escarninho. - Ganha e fica com a casa e o cavalo...
-        E se perder, perco o cordão também... - Concluiu o desgraçado camponês.
-        Não. Vamos apostar outra propriedade que tens.
-        Outra? - Admirou-se. - Não tenho mais nenhuma!
-        Tens sim. Tens os teus serviços... a tua vida.
Manuel olhou-o, incrédulo. O vento continuava a atirar flocos de neve que esvoaçavam entre os dois homens enquanto eles tentavam ler os pensamentos um do outro através dos olhos.
-        Os meus serviços? Que eu seja teu criado?
-        Não própriamente meu, também eu tenho um patrão. Seriamos como colegas.
-        Mesmo que eu perca... - Sentenciou Manuel – Rasgas o papel da casa?
-        Sim, pode ser. - O outro anuiu, tirando do bolso mais uma folha amarelada que começou a rabiscar na sela do cavalo enquanto dizia em voz alta: - Eu, Manuel Bugio, declaro com este documento que me entrego de corpo e alma ao serviço do Grande Comandante que será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de de dados.
Sarmento passou-lhe o papel que ele olhou, com olhos vazios, tentando perceber a enormidade do que fazia com aquele papel que não sabia ler.
-        Quem é o Grande Comandante? - Questionou.
-        Apenas uma pessoa muito importante que tem grandes exércitos de homens às suas ordens. Não gosta que usem o seu nome em vão, pelo que nunca o escrevemos e chamamo-lo sempre de Grande Comandante. Já sabes o que fazer, não é? Uma pequena gota de sangue?
-        Não há testemunhas... - Observou Manuel, ausente.
-        Não são necessárias. Este contrato não pode ser quebrado. - Rematou Sarmento pousando os dados sobre a pedra talhada que servia para as pessoas descansarem das jornadas.
-        Deixas mesmo a casa? - Perguntou uma vez mais enquanto marcava a impressão digital com sangue.
-        Está aqui o papel. Joguemos em cima dele. Se perderes podes fazer com ele o que quiseres... e se ganhares também, claro. Está aqui o do cavalo. Jogamos só uma vez cada um!
-        Joga tu primeiro. - Manuel convidou.
Sarmento atirou os dados e saíram nove pontos, Uma quadra, dois duques e um ás. Ele jogou todos menos a quadra. Obteve uma sena, um terno e outra quadra; dezassete pontos. Jogou o terno e saiu um duque... ficou-se pelos dezasseis.
Animado, Manuel jogou. Estava ali a oportunidade de recuperar tudo... finalmente a sorte iria sorrir-lhe! Só precisava de mais um ponto que ele.
Os dados rolaram, preguiçosamente, até se imobilizarem, obscenamente, em quatro horríveis senas! Vinte e quatro pontos de uma só mão! Ultrapassou os vinte e um. Perdeu uma vez mais!
Em choque, deixou-se ficar, digerindo lentamente tudo o que tinha jogado e perdido...
-        A casa fica para minha mulher? - Gemeu a pergunta de forma quase inaudível.
-        A tua mulher não passa desta noite... perdeu o vosso filho e não está nada bem... o teu sogro nunca mais vai ser o mesmo, mas viverá. A tua sogra cuidará do outro menino e ficarão bem! - Explicou Sarmento enquanto montava.
-        Como sabes tudo isso?
-        Há muita coisa que eu sei... em breve, também tu saberás. De qualquer modo essa família já não é tua, agora, pertences a outra maior. Anda, irmão, monta no teu cavalo e vamos levar a desgraça a outro lado.
Os dois cavaleiros afastaram-se na estrada batida pela neve que o vento atirava com uivos fortes. Com ela voavam também dois papeis amarelos que atestavam a condenação do vício de um homem.

Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".

É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.

Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.

Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.

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