Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Lembro-me como se tivesse sido ontem daquela magnífica festa de há quarenta e cinco anos que, como um bom agoiro que se lê no livro da natureza, se fez anunciar numa bonita manhã de primavera e sol nos espaços exteriores do liceu. Quase toda a malta da minha geração a acolheu de braços abertos com o idealismo, a ingenuidade, a ignorância que todos os dezoito anos costumam autorizar. A nossa perceção das coisas da política era fraquinha, para não dizer nula, e nem liberdade nem democracia nos diziam grande coisa: uns meses antes um ministro do salazar tinha sido lá recebido com discursos bajuladores e as honras do costume.
Era o que se passava com o povo em geral. Mas as festas, todas elas, são pausas saborosas no fim de longos dias de rotinas extenuantes; momentos em que os quadris se aliviam do peso desta linha produção que é a vida; intervalos em que uma ordem instituída relaxa a sua lei, ou se afasta para uma outra ordem instituir uma outra lei. Por acréscimo, aquela prometia paz a um país em guerra, pão a uma terra de fome inveterada, saúde a um povo abandonado às suas dores e moléstias, educação a uma população que não sabia ler. Se juntarmos ainda o brinde da liberdade e da democracia, compreendem-se bem os espasmos em que tudo aquilo deu.
Devia ter sido interessante para um observador vindo de fora assistir ao corrupio de ideias que flutuavam no ar por essa altura e ao frenesi de gente acotovelando-se para as apanhar. Posto que o nosso forte nunca foi pensar, aderíamos às coisas por todo o tipo de razões egocêntricas e inconscientes, isto é, mais ou menos com a mesma racionalidade com que antes tínhamos decidido ser do sporting, da académica ou da sanjoanense. Nem preciso de ir muito longe: a minha colagem imediata às esquerdas não tinha por trás nenhum conhecimento amadurecido (nem por amadurecer) do ser humano e da vida em comunidade. Simplesmente, as promessas generosas da revolução eram música para os meus ouvidos de desfavorecido.
Éramos brutos, tal como hoje, e não era difícil convencerem-nos fosse do que fosse. Porque tudo nos era servido como num self-service doses de fast food prontas a comer, comíamos do que nos punham à frente. E depois, as ideias da moda tinham o aval de filósofos, intelectuais, políticos, tudo gente de gabarito que pensava por nós. Apenas um exemplo: passámos quase todos a ser ateus empedernidos, mas, curiosamente, engolíamos com avidez o catecismo de uma nova fé, à qual não faltavam profetas, escrituras, promessas de salvação, messias, apóstolos, mártires, papas, missas, romarias. O fervor da crença chegava mesmo a proporcionar visões, individuais e coletivas.
Se não, vejamos. Uma das primeiras coisas de que nos persuadiram foi que as ideias políticas se repartem por dois grandes campos que mutuamente se excluem e combatem, esquerda e direita. Acoplado a isso, era evidente para nós que arrastados nessa luta se digladiavam também povo e burguesia, operários e patrões, pobres e ricos, explorados e exploradores. Simplista como todos os esquemas, mas tão eficaz que se mantém a funcionar e ainda nos empolga. Curioso é que os segundos termos destes pares foram rapidamente diabolizados. Ser de direita não era ser alguém que pudesse ter ideias válidas e defender modelos de sociedade. Concentrada no adjetivo fáxísta, então em voga, a categoria não só desqualificava qualquer um como tinha mesmo caráter insultuoso. Em resumo, à pobreza do pensamento maniqueísta direita-esquerda acrescentava-se a indigência do pensamento único.
Com o tempo ficámos amarrados à ideia como barcos a um cais, e tomámo-la por tão real como um pau ou uma pedra. Também é verdade que ela vai funcionando dentro do jogo democrático, ao fazer dialogar pontos de vista antagónicos e complementares de cuja síntese se constrói a vida em sociedade. Mas fraturar a vida política (e portanto as nossas mentes) em duas partes é tão arbitrário como fraturá-las em quatro ou oito, não passa de uma convenção como qualquer outra.
Direita e esquerda existem dentro de nós como duas tendências que dialogam entre si e a natureza nunca se teria lembrado de apartar: razão e coração. Cada uma delas devia ser um miradouro para contemplar o panorama antes de avançar, não uma moradia de cuja janela se olha a mesmíssima paisagem durante a vida inteira.
Era o que se passava com o povo em geral. Mas as festas, todas elas, são pausas saborosas no fim de longos dias de rotinas extenuantes; momentos em que os quadris se aliviam do peso desta linha produção que é a vida; intervalos em que uma ordem instituída relaxa a sua lei, ou se afasta para uma outra ordem instituir uma outra lei. Por acréscimo, aquela prometia paz a um país em guerra, pão a uma terra de fome inveterada, saúde a um povo abandonado às suas dores e moléstias, educação a uma população que não sabia ler. Se juntarmos ainda o brinde da liberdade e da democracia, compreendem-se bem os espasmos em que tudo aquilo deu.
Devia ter sido interessante para um observador vindo de fora assistir ao corrupio de ideias que flutuavam no ar por essa altura e ao frenesi de gente acotovelando-se para as apanhar. Posto que o nosso forte nunca foi pensar, aderíamos às coisas por todo o tipo de razões egocêntricas e inconscientes, isto é, mais ou menos com a mesma racionalidade com que antes tínhamos decidido ser do sporting, da académica ou da sanjoanense. Nem preciso de ir muito longe: a minha colagem imediata às esquerdas não tinha por trás nenhum conhecimento amadurecido (nem por amadurecer) do ser humano e da vida em comunidade. Simplesmente, as promessas generosas da revolução eram música para os meus ouvidos de desfavorecido.
Éramos brutos, tal como hoje, e não era difícil convencerem-nos fosse do que fosse. Porque tudo nos era servido como num self-service doses de fast food prontas a comer, comíamos do que nos punham à frente. E depois, as ideias da moda tinham o aval de filósofos, intelectuais, políticos, tudo gente de gabarito que pensava por nós. Apenas um exemplo: passámos quase todos a ser ateus empedernidos, mas, curiosamente, engolíamos com avidez o catecismo de uma nova fé, à qual não faltavam profetas, escrituras, promessas de salvação, messias, apóstolos, mártires, papas, missas, romarias. O fervor da crença chegava mesmo a proporcionar visões, individuais e coletivas.
Se não, vejamos. Uma das primeiras coisas de que nos persuadiram foi que as ideias políticas se repartem por dois grandes campos que mutuamente se excluem e combatem, esquerda e direita. Acoplado a isso, era evidente para nós que arrastados nessa luta se digladiavam também povo e burguesia, operários e patrões, pobres e ricos, explorados e exploradores. Simplista como todos os esquemas, mas tão eficaz que se mantém a funcionar e ainda nos empolga. Curioso é que os segundos termos destes pares foram rapidamente diabolizados. Ser de direita não era ser alguém que pudesse ter ideias válidas e defender modelos de sociedade. Concentrada no adjetivo fáxísta, então em voga, a categoria não só desqualificava qualquer um como tinha mesmo caráter insultuoso. Em resumo, à pobreza do pensamento maniqueísta direita-esquerda acrescentava-se a indigência do pensamento único.
Com o tempo ficámos amarrados à ideia como barcos a um cais, e tomámo-la por tão real como um pau ou uma pedra. Também é verdade que ela vai funcionando dentro do jogo democrático, ao fazer dialogar pontos de vista antagónicos e complementares de cuja síntese se constrói a vida em sociedade. Mas fraturar a vida política (e portanto as nossas mentes) em duas partes é tão arbitrário como fraturá-las em quatro ou oito, não passa de uma convenção como qualquer outra.
Direita e esquerda existem dentro de nós como duas tendências que dialogam entre si e a natureza nunca se teria lembrado de apartar: razão e coração. Cada uma delas devia ser um miradouro para contemplar o panorama antes de avançar, não uma moradia de cuja janela se olha a mesmíssima paisagem durante a vida inteira.
(Nordeste - jun. 2019)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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