D. Manuel II tinha um plano de visitas que privilegiava os contactos com as populações. O Rei, com esta estratégia, pretendia melhorar a imagem da realeza e da Monarquia e, assim, conquistar, com uma “política de proximidade”, um maior apoio dos súbditos. Os périplos, as “deslocações festivas” e as visitas de D. Manuel tinham objetivos que podemos definir como políticos e “propagandísticos”. Entre “vilegiaturas”, visitas e deslocações formais, o chefe de Estado jornadeou, no curto período do seu reinado, por várias regiões do País.
A 25 de novembro de 1908, o jornal republicano brigantino A Pátria Nova refere, com sarcasmo, as viagens e as visitas reais. O tom é desabrido e a literatura é de boa qualidade. “Festas, festas” – os jornais do Porto inserem “noticiário berrante sobre a permanência nesta Cidade da radiosa mocidade do Senhor Manuel II, por graça de Buíça e Costa, Rei deste jardim da Europa à beira-mar plantado de louros e acácias olorosas… Sua Majestade não para, anda daqui para ali, dali para acolá, num rodopio”. S. M. F. continuará a ser aclamado nas ruas da Cidade Invicta pelas damas admiradoras da sua radiosa mocidade, continuará a presidir a sessões e ouvir ler extensas e fatigantes mensagens de coletividades que agradecem e se congratulam pela honra da real visita…, pelo ar continuarão a estralejar foguetes de três respostas, pelas ruas embandeiradas bandas e filarmónicas continuarão [a tocar] a primor escolhidas peças dos seus magníficos reportórios”.
“Neste ano da graça de 1908, em meio de todas estas festas, a Pátria geme ao peso duma agonia lenta, num caminhar seguro e firme para a derrocada final… No Porto continua a ser aclamada entre festas a radiosa mocidade e, se a República não vier salvar-nos, em festa viveremos até que isto tudo se subverta. Como o cisne da fábula ou os tenores de ópera lírica, ao menos morremos a cantar. Valha-nos isso. Do mal o menos. Siga a festa”.
Com o auxílio de alguns órgãos de informação, de âmbito sobretudo local, é possível ter informações sobre esta projetada visita do Rei ao norte do País – e muito especialmente a Trás-os-Montes – que acabou por não se realizar. No Diário de Notícias de 4 de outubro de 1910, ao lado de notícias sobre “Os acontecimentos desta madrugada. Movimento militar” –, ainda se refere a viagem, informando que para “as diversas terras do norte que vão ser visitadas por el-Rei, têm seguido do Porto pessoal e aprestos de ornamentações e iluminações”. O Rei chegaria na quarta-feira, dia 5, à estação de Campanhã, seguindo para Vila Real, e em seguida, para Bragança.
Contudo, acrescenta-se ser “natural que em face dos acontecimentos de ontem, a partida seja ainda transferida”.
De facto, dos acontecimentos dos dias 4 e 5 vai resultar o cancelamento da jornada real.
Na capital do Nordeste Trasmontano, a visita do Rei despertou uma extraordinária expectativa. A Gazeta de Bragança, folha regeneradora, vai dar particular relevo, nos números de 25 de setembro e de 2 de outubro, a esta visita. Pelo seu posicionamento ideológico, era o órgão de informação que mais razões teria para, com mais entusiasmo, falar da vinda de Sua Majestade; além do mais, o Presidente do Ministério era o chefe do Partido Regenerador, Teixeira de Sousa, oriundo do Concelho de Sabrosa. Assim, A Gazeta de Bragança foi o jornal que mais bem publicitou tão surpreendente acontecimento, o que mais alegremente anuiu à projetada visita régia a Trás-os-Montes.
O entusiasmo no burgo era enorme. Para começar, tratava-se de uma estreia digna de registo: pela primeira vez, um monarca dos Braganças, da dinastia reinante há 270 anos, visitava a Cidade que era “solar” da dinastia.
Para que as festividades fossem participadas e vividas tinham que ser publicitadas. Para celebrar com a dignidade e o brilho que eram devidos ao Rei, devia realizar-se um grande investimento na encenação dos espaços e na promoção dos “ruidosos” festejos, a lembrar o que tinha sido feito aquando da visita de Pedro V.
O monarca – símbolo supremo da Nação – continuava a ter grande popularidade. É até provável que, após o regicídio, a figura do soberano passasse a ser alvo de uma maior aceitação. E se estamos longe dos reis “taumaturgos”, os monarcas ainda continuavam a manter uma aura sagrada. Eram vistos como figuras tutelares, a quem se podia recorrer em última instância. E se não operavam milagres, eram capazes de, pelo seu poder e pelo prestígio de que gozavam no imaginário dos povos, provocar o que se afigurava serem autênticos prodígios. Mas, por outro lado, talvez se aplicasse, a grande parte do espaço nacional, o que um periódico açoriano, de feição republicana dizia, em 1901, aquando da visita do Rei D. Carlos aos Açores: “O povo ignora tanto o prestígio da Monarquia, como a razão de ser de uma República”. Além do mais, estamos numa região em que, pelas características da formação social – onde as inércias e os arcaísmos muito pesavam – ainda se reverenciavam e veneravam as supremas majestades. Mantinham-se por estas bandas, como o agitado século XIX havia demonstrado, muitos e bons amigos do trono e do altar.
Por outro lado, sentiam-se grandes ânsias no aglomerado urbano – cabeça e centro de um vasto espaço de progresso. Não é de estranhar, por isso, que se aproveitassem todas as oportunidades para, numa região que se dizia e sentia tão abandonada e necessitada, mostrar feridas e lamuriar necessidades. A vinda de um Rei seria um ótimo ensejo para projetar a Cidade e a Região – Bragança ia ter visibilidade – e fazer sentir, aos governantes e ao País, as mazelas de que padeciam estas terras e as suas gentes.
A sua alteza oferecia-se a proverbial hospitalidade, a galhardia dos seus habitantes e a “salubridade” das terras transmontanas. Na Gazeta de Bragança de 25 de setembro, na notícia “El-Rei em Trás-os-Montes”, lê-se:
“Consta com fundamento que lá para 4 ou 5 de outubro próximo irá D. Manuel acompanhado do senhor conselheiro Teixeira de Sousa fazer uma encantadora diversão pelo norte do País, visitando os povos até Vidago, Chaves, Vila Real, e seguindo até Bragança… Em Vidago, já estiveram os seus pais e avós; agora, na Cidade Episcopal, capital do Distrito, fundada por D. Sancho I em 1187, a 402 quilómetros de Lisboa, vão os nossos queridos patrícios receber a honra da visita régia de D. Manuel II, Rei de Portugal, com um luzimento, entusiasmo e carinho, como é próprio da galhardia de nossos compatrícios”.
Uma breve referência ao séquito: “acompanhado pelo nobre Presidente do Conselho [de Ministros], e uma pequena comitiva da sua corte, será feliz el-Rei junto do seu povo como em parte alguma da Nação. Dizemos isto com orgulho, porque o sentimos.” E um desejo: “que as terras do trigo e centeio, e que a alma apreciável daqueles povos hospitaleiros, gravem fundas saudades no coração de D. Manuel II, são os nossos ardentes votos”.
A visita real tornou-se possível pela existência da linha férrea, e aproveitava-se para se sublinhar que este importante melhoramento se devia à ação dos regeneradores, tendo-se congraçado, neste desiderato, o empenho do chefe local, Abílio Beça – tragicamente desaparecido, em abril de 1910, num acidente ferroviário – e a vontade do chefe do Partido. “Finalmente, esta grata resolução da visita régia a Bragança é fora de dúvida que se deve à existência da linha férrea já construída a esforços do ilustre deputado deste Distrito, como foi o desventurado Abílio Beça, de saudosa memória, e ao digno chefe do Partido Regenerador e atual presidente do gabinete ministerial, conselheiro Teixeira de Sousa, que tanta honra dão a toda a província”. Antevia-se “uma receção imponentíssima”.
Ficamos a saber que “a instalação dos seus aposentos será no Grémio de Bragança”: “não há tempo a perder, mãos à obra e que cada um dos brigantinos disponha do que possa para carinhosamente receber quem tão alta honra nos dá com a sua visita”. Ainda relacionado com a deslocação régia, no editorial intitulado “Antigo Paço do Concelho”, em que se celebra o “notabilíssimo monumento” e se recrimina o abandono a que foi votado, depositam-se sérias esperanças na intervenção real: “sua majestade el-Rei por certo não deixará de visitar o velho Paço, pois que haja alguém que dele solicite a recomendação ao Governo para que o venerável monumento seja devidamente restaurado, visto que as finanças da nossa edilidade não lhe permitem entrar nessa despesa tão necessária e útil”.
O número seguinte de A Gazeta de Bragança, de 2 de outubro, é praticamente consagrado ao programa e aos preparativos da visita real. No editorial “A viagem de El-Rei”, fica-se com a sensação de que o monarca vinha a Bragança e a outras localidades. Ora, a razão principal do périplo parece ter sido a inauguração do hotel Palace em Vidago e a estadia no Porto, cidade que era preciso manter congraçada com a realeza – embora, no programa definitivo, o monarca nem pernoitasse em Bragança, e o Palace acabaria por ser inaugurado sem a presença real.
Eis o que se escreve: “Está fixada para breves dias a viagem régia a esta Cidade e a outras terras trasmontanas.
Sua Majestade el-Rei vem honrar-nos com a sua visita, quer conhecer Bragança, a Cidade que deu o nome à dinastia de que o sr. D. Manuel II é hoje o legítimo representante”.
A iniciativa, como se diz, é fruto da disponibilidade do monarca e do apreço que ele sente por estas terras, até porque o pretexto para a visita não era nenhuma comemoração especial, nem a celebração de um acontecimento importante: “Não temos festas a fazer e portanto mais íntimo e entusiástico deve ser o agradecimento do povo brigantino para o monarca querido, pela honra da sua visita espontânea a Bragança”. Mais uma razão para sublinhar as excelsas qualidades dos trasmontanos e do soberano que se decide, abandonando comodidades, a visitá-los e a ouvi-los: “Todas as cidades e vilas deste recanto do País, por onde Sua Majestade tenciona fazer itinerário, se estão preparando para o receber com galhardia, como é próprio do povo trasmontano. É assim que nós compreendemos um Rei que será grande pela orientação que está imprimindo ao seu viver de monarca inteligente e liberal. É assim que compreendemos o viver do nosso Rei que, abandonando o fausto, o conforto e comodidades dos seus palácios, vem ouvir os queixumes da miséria que lhe soarão aos ouvidos no longo trajeto da linha transmontana”.
Para realçar as virtudes deste rincão, incensam-se as qualidades das suas gentes, procede-se à apologia da pax ruris que aqui se vive e acentua-se a oposição campo cidade, carregando de tintas negras a vida agitada, insalubre, dissoluta e “efeminada” dos grandes centros, em contraste com a calma a tranquilidade e com o ambiente moralmente saudável que se fazem sentir nestas terras. Não podiam ser maiores as graças e os dons de tais gentes. Por aqui, os sentimentos eram nobres e autênticos e sentia-se um acrisolado amor ao soberano.
Reforçavam-se os agradecimentos ao monarca pelo seu espírito de sacrifício. “É assim, finalmente, que compreendemos a educação do moço Rei que, habituado às grandezas da Corte, as abandona para vir aos povoados, aonde não se encontram essas grandezas nem as orientações das opulentas capitais, mas em substituição de tudo isso encontra, o que é mais, o carinho, a simplicidade e a sinceridade das aclamações unânimes, desde o nosso modesto industrial ao abastado capitalista. Venha, venha, pois, Sua Majestade El-Rei identificar-se com a modéstia do nosso viver; venha pôr em paralelo o nosso carinho, a nossa lealdade e a pureza dos nossos costumes, com a vida febril, efeminada, dúbia, fictícia e asfixiadora dos grandes centros. Venha e terá ocasião de se certificar que em Trás-os-Montes, e muito particularmente nesta capital do Distrito, não há atmosferas pesadas nem existem as fantasias ambiciosas e deletérias. Não há ódios nem rancores para a Monarquia, há corações lealíssimos, almas generosas, expansões nobres e um respeito profundo pelo Chefe do Estado. Venha que não encontrará entre este povo, que tão altas lições de civismo tem dado, a hipocrisia das sociedades libertinas, mas sim verá em toda a sua plenitude a cor brônzea das nossas faces sacudidas rijamente pelas nortadas. Venha e verá como este povo de braços musculosos e mãos endurecidas pelo cabo rugoso do pesado alvião tem o aspeto de heróis e a alegria de vassalos fiéis e convictos para estreitar o seu Rei, que tão subida honra lhe dá com a sua visita.”
Eram estes os “brasões” que, num estilo grandiloquente – à mistura com um bucolismo hiperbólico –, se apresentavam orgulhosamente ao monarca; eram estas as razões, mais do que suficientes, para o soberano se dignar visitar estas paragens. Para além do tom laudatório com que se celebram terras de tanta “pureza” e tão devotadas à realeza, o discurso, de matriz conservadora, acentua a dissolução de costumes que se teria instalado nas grandes urbes.
Era fundamental mobilizar aqueles a quem o jornal iria chegar: leitores e ouvintes. Mas, como é óbvio, a visita teria sido publicitada por outros agentes, canais e meios, para além da imprensa, autoridades civis e eclesiásticas, programas, comunicados. E num apelo final, puxava-se pelo brio dos bragançanos. “Vamos, pois, brigantinos, todos unidos na mesma ideia e pensamento, preparar uma receção carinhosa e tocante pela sua singeleza ao monarca nosso amigo e querido do povo, para que não se diga lá fora que Bragança é indolente e indiferente à visita régia que nos dá honra e importância. É do nosso brio não ficarmos aquém das outras terras que têm a honra da visita do monarca, antes devemos primar por ir além… Nisto nos devemos empenhar todos, como bons trasmontamos… em cujos corações se abriga o mais acrisolado e puro patriotismo. Avante, pois, brigantinos pelo nosso Rei e pelas festas em sua honra”. Pelo significado, pela importância e pelo simbolismo que se atribuía a esta visita, devia ser grande, na realidade, o entusiasmo. Vinha aí a festa da aristocracia e do povo.
A comitiva real integrava responsáveis governativos e jornalistas. “Sua Majestade el-Rei com a sua comitiva que é composta dos srs. Presidente do Conselho, ministro dos Estrangeiros, camaristas de serviço, oficiais às ordens, médico e secretários particulares, chega às 4 horas da tarde do dia 8 do corrente a Mirandela, onde janta e pernoita, dando o monarca receção. No dia 9 partirá Sua Majestade com a comitiva em comboio especial em direção a Bragança, dando receção na estação do caminho-de-ferro de Macedo de Cavaleiros. Pelas 11 horas da manhã chegará a esta Cidade, sendo esperado na gare da estação por todo o elemento oficial e representantes dos diversos concelhos o Distrito que virão tomar parte da ruidosa festa que se está preparando.”
Festas como “ainda Bragança não teve”. “A chegada da locomotiva real será anunciada por salvas de foguetões e as músicas tocarão na gare da estação, no trajeto do cortejo, na Praça da Sé, e em frente do edifício do Governo Civil. Sua Majestade seguirá em automóvel, da estação à Rua do Conselheiro Eduardo Coelho, Alexandre Herculano, Praça da Sé, Rua Direita, até aos Paços do Concelho, onde o sr. Presidente da Câmara lhe lerá a mensagem de boas-vindas e em seguida continuará pela Rua Direita, Rua Engenheiro José Beça, até ao edifício do Governo Civil, onde dará receção. Terminada esta, seguir-se-á o almoço de setenta talheres, no salão nobre do edifício. Sua Majestade, acompanhado da comitiva, irá visitar os quartéis regimentais e alguns edifícios públicos e hospitais e percorrerá as principais ruas da Cidade, seguindo depois para Murça”.
“Pelas ruas haverá músicas, bandeiras, colgaduras pelas janelas, flores e arcos triunfais; milhares de forasteiros percorrerão a Cidade, aclamando o monarca pela honra da sua visita a esta Cidade. Haverá grupos com descantes populares, que é sem dúvida uma das partes da festa mais atraente. Os foguetes estralejarão no ar a cada momento. Será finalmente uma festa como Bragança ainda não teve, pela ostentação, pela afluência de povo dos diferentes pontos do Distrito e sobretudo pelo Régio Hóspede com a sua notável comitiva”.
Destaque para os “atraentes” grupos de “descantes populares” que integravam o programa das “ruidosas festas”.
Reinava uma azáfama nunca vista: sente-se por toda a Cidade “uma atividade desusada, trabalha-se de dia e noite e faltam operários. Em tudo isto se manifestam as alegrias do povo de Bragança, que pela primeira vez tem a honra da visita de um monarca, pelo menos da dinastia atual, que já conta 270 anos. É pois justificável tudo o quanto se está fazendo para a galhardia da receção do sr. D. Manuel II”.
Até a informação “Bispo de Bragança”, que refere o regresso do prelado, D. José Alves Mariz, à Cidade – o bispo ausentava-se muito –, está relacionada com a visita do Rei. O pastor da Diocese também devia estar no seu posto, à frente das ovelhas, para participar nos luzidios festejos. E há, ainda, um breve anúncio, “Bandeiras”, que tem que ver com a receção ao Rei, “com as armas portuguesas, muito lindas, para ornamentação de janelas”.
O Jornal de Bragança de 5 de outubro, “semanário independente”, tendo como proprietário e diretor Raul Teixeira, alude, como não podia deixar de ser, à visita do Rei. O texto deixa transparecer, contudo, um tom crítico e um lamento acerca da fugacidade da estadia. Em “A visita régia” – com toda a probabilidade, da autoria do diretor –, depois de se informar que no próximo domingo, 9 de outubro, a Cidade recebe a visita de Sua Majestade, afirma-se: “ durante poucas horas é nosso hóspede o Chefe de Estado. Não pode, por isso, o monarca estudar os males que os povos de Trás-os-Montes sofrem, observar as suas necessidades, ouvir as suas reclamações, não se justificando, desta maneira, a viagem régia; por isso que o pretexto para as reais viajatas, segundo a falsa linguagem protocolar, sempre foi o do referido estudo e observação”.
Ora, na vinda a Bragança, “rapidamente vai o soberano atravessar as ruas desta velha Cidade, entre as aclamações de uma multidão curiosa, sob arcos triunfais e abadas de flores. Mais incompletamente, por isso, Sua Majestade ficará conhecendo Bragança: Cidade pobre em haveres e parca em entusiasmos, que a vida torturada que sofre no cruciante labutar quotidiano, desamparada, abandonada, não lhe deixa abrir a boca num sorriso franco de felicidade, mas apenas numa expressão magoada de artificial contentamento. Assim, as festas que Bragança prepara ao senhor D. Manuel têm um aspeto todo cenográfico: deixarão agradável impressão no espírito do jovem soberano, porque são vistas de longe e em fugidios momentos. Que El-Rei seja bem-vindo e que encontre nesta Cidade as provas de simpatia e dedicação devidas àquele moço que, numa tarde de fevereiro, viu, numa trágica alucinação, a sua coroa de Rei entre nuvens de sangue querido. Seja bem-vindo o senhor D. Manuel II”.
Um certo distanciamento irónico, pincelado com notas dramáticas sobre a “vida torturada” dos brigantinos.
Excelente prosa que, num ilustrativo “flash”, concluiu que, em face das condições dramáticas da existência dos habitantes, a Cidade só poderá abrir a boca “numa expressão magoada de artificial contentamento”. De pouco servirá a visita, uma vez que o Rei não terá tempo para ver o que devia ser visto. Não se saúda a deslocação, embora se saúde o monarca.
Neste mesmo número, perante um telegrama que é do conhecimento do jornal, formula-se, numa sucinta nota informativa, bem destacada – em letras garrafais e a negrito – a intrigante pergunta: “O que haverá?” “À hora a que fechávamos a nossa primeira página, oito horas da noite de terça-feira (por conseguinte, no dia 4) foi recebido pelo Administrador do Concelho, sr. António Beça, o seguinte telegrama: Lisboa... Peço que considerem sem efeito comunicação sobre viagem de El-Rei ao Norte porque já não se realizará. Teixeira de Sousa”.
Também para Bragança – e com certeza para as outras localidades que deviam receber o Rei – foi telegrafada, no dia 4, a anulação da visita, embora se ocultassem as verdadeiras causas. Era urgente avisar as autoridades locais. Bragança soube neste dia que algo de anormal ocorria, tão grave que impedia a viagem de el-Rei ao Norte e implicava o cancelamento de uma jornada real tão pormenorizadamente delineada. Autoridades, militantes políticos e cidadãos atentos deviam ter ficado muito apreensivos. Muito em breve se satisfariam curiosidades.
Em suma, quando se dá o cancelamento, os preparativos já estavam numa fase muito adiantada. Esperavam-se festividades como a Cidade “nunca teve”. Uma boa parte dos investimentos já tinha sido feita... Por tudo isto, o abortar da deslocação régia teria provocado, muito provavelmente, sentimentos de frustração em muita gente.
A República bem poderia ter esperado um pouco mais...
A 25 de novembro de 1908, o jornal republicano brigantino A Pátria Nova refere, com sarcasmo, as viagens e as visitas reais. O tom é desabrido e a literatura é de boa qualidade. “Festas, festas” – os jornais do Porto inserem “noticiário berrante sobre a permanência nesta Cidade da radiosa mocidade do Senhor Manuel II, por graça de Buíça e Costa, Rei deste jardim da Europa à beira-mar plantado de louros e acácias olorosas… Sua Majestade não para, anda daqui para ali, dali para acolá, num rodopio”. S. M. F. continuará a ser aclamado nas ruas da Cidade Invicta pelas damas admiradoras da sua radiosa mocidade, continuará a presidir a sessões e ouvir ler extensas e fatigantes mensagens de coletividades que agradecem e se congratulam pela honra da real visita…, pelo ar continuarão a estralejar foguetes de três respostas, pelas ruas embandeiradas bandas e filarmónicas continuarão [a tocar] a primor escolhidas peças dos seus magníficos reportórios”.
“Neste ano da graça de 1908, em meio de todas estas festas, a Pátria geme ao peso duma agonia lenta, num caminhar seguro e firme para a derrocada final… No Porto continua a ser aclamada entre festas a radiosa mocidade e, se a República não vier salvar-nos, em festa viveremos até que isto tudo se subverta. Como o cisne da fábula ou os tenores de ópera lírica, ao menos morremos a cantar. Valha-nos isso. Do mal o menos. Siga a festa”.
Com o auxílio de alguns órgãos de informação, de âmbito sobretudo local, é possível ter informações sobre esta projetada visita do Rei ao norte do País – e muito especialmente a Trás-os-Montes – que acabou por não se realizar. No Diário de Notícias de 4 de outubro de 1910, ao lado de notícias sobre “Os acontecimentos desta madrugada. Movimento militar” –, ainda se refere a viagem, informando que para “as diversas terras do norte que vão ser visitadas por el-Rei, têm seguido do Porto pessoal e aprestos de ornamentações e iluminações”. O Rei chegaria na quarta-feira, dia 5, à estação de Campanhã, seguindo para Vila Real, e em seguida, para Bragança.
Contudo, acrescenta-se ser “natural que em face dos acontecimentos de ontem, a partida seja ainda transferida”.
De facto, dos acontecimentos dos dias 4 e 5 vai resultar o cancelamento da jornada real.
Na capital do Nordeste Trasmontano, a visita do Rei despertou uma extraordinária expectativa. A Gazeta de Bragança, folha regeneradora, vai dar particular relevo, nos números de 25 de setembro e de 2 de outubro, a esta visita. Pelo seu posicionamento ideológico, era o órgão de informação que mais razões teria para, com mais entusiasmo, falar da vinda de Sua Majestade; além do mais, o Presidente do Ministério era o chefe do Partido Regenerador, Teixeira de Sousa, oriundo do Concelho de Sabrosa. Assim, A Gazeta de Bragança foi o jornal que mais bem publicitou tão surpreendente acontecimento, o que mais alegremente anuiu à projetada visita régia a Trás-os-Montes.
O entusiasmo no burgo era enorme. Para começar, tratava-se de uma estreia digna de registo: pela primeira vez, um monarca dos Braganças, da dinastia reinante há 270 anos, visitava a Cidade que era “solar” da dinastia.
Para que as festividades fossem participadas e vividas tinham que ser publicitadas. Para celebrar com a dignidade e o brilho que eram devidos ao Rei, devia realizar-se um grande investimento na encenação dos espaços e na promoção dos “ruidosos” festejos, a lembrar o que tinha sido feito aquando da visita de Pedro V.
O monarca – símbolo supremo da Nação – continuava a ter grande popularidade. É até provável que, após o regicídio, a figura do soberano passasse a ser alvo de uma maior aceitação. E se estamos longe dos reis “taumaturgos”, os monarcas ainda continuavam a manter uma aura sagrada. Eram vistos como figuras tutelares, a quem se podia recorrer em última instância. E se não operavam milagres, eram capazes de, pelo seu poder e pelo prestígio de que gozavam no imaginário dos povos, provocar o que se afigurava serem autênticos prodígios. Mas, por outro lado, talvez se aplicasse, a grande parte do espaço nacional, o que um periódico açoriano, de feição republicana dizia, em 1901, aquando da visita do Rei D. Carlos aos Açores: “O povo ignora tanto o prestígio da Monarquia, como a razão de ser de uma República”. Além do mais, estamos numa região em que, pelas características da formação social – onde as inércias e os arcaísmos muito pesavam – ainda se reverenciavam e veneravam as supremas majestades. Mantinham-se por estas bandas, como o agitado século XIX havia demonstrado, muitos e bons amigos do trono e do altar.
Por outro lado, sentiam-se grandes ânsias no aglomerado urbano – cabeça e centro de um vasto espaço de progresso. Não é de estranhar, por isso, que se aproveitassem todas as oportunidades para, numa região que se dizia e sentia tão abandonada e necessitada, mostrar feridas e lamuriar necessidades. A vinda de um Rei seria um ótimo ensejo para projetar a Cidade e a Região – Bragança ia ter visibilidade – e fazer sentir, aos governantes e ao País, as mazelas de que padeciam estas terras e as suas gentes.
A sua alteza oferecia-se a proverbial hospitalidade, a galhardia dos seus habitantes e a “salubridade” das terras transmontanas. Na Gazeta de Bragança de 25 de setembro, na notícia “El-Rei em Trás-os-Montes”, lê-se:
“Consta com fundamento que lá para 4 ou 5 de outubro próximo irá D. Manuel acompanhado do senhor conselheiro Teixeira de Sousa fazer uma encantadora diversão pelo norte do País, visitando os povos até Vidago, Chaves, Vila Real, e seguindo até Bragança… Em Vidago, já estiveram os seus pais e avós; agora, na Cidade Episcopal, capital do Distrito, fundada por D. Sancho I em 1187, a 402 quilómetros de Lisboa, vão os nossos queridos patrícios receber a honra da visita régia de D. Manuel II, Rei de Portugal, com um luzimento, entusiasmo e carinho, como é próprio da galhardia de nossos compatrícios”.
Uma breve referência ao séquito: “acompanhado pelo nobre Presidente do Conselho [de Ministros], e uma pequena comitiva da sua corte, será feliz el-Rei junto do seu povo como em parte alguma da Nação. Dizemos isto com orgulho, porque o sentimos.” E um desejo: “que as terras do trigo e centeio, e que a alma apreciável daqueles povos hospitaleiros, gravem fundas saudades no coração de D. Manuel II, são os nossos ardentes votos”.
A visita real tornou-se possível pela existência da linha férrea, e aproveitava-se para se sublinhar que este importante melhoramento se devia à ação dos regeneradores, tendo-se congraçado, neste desiderato, o empenho do chefe local, Abílio Beça – tragicamente desaparecido, em abril de 1910, num acidente ferroviário – e a vontade do chefe do Partido. “Finalmente, esta grata resolução da visita régia a Bragança é fora de dúvida que se deve à existência da linha férrea já construída a esforços do ilustre deputado deste Distrito, como foi o desventurado Abílio Beça, de saudosa memória, e ao digno chefe do Partido Regenerador e atual presidente do gabinete ministerial, conselheiro Teixeira de Sousa, que tanta honra dão a toda a província”. Antevia-se “uma receção imponentíssima”.
Ficamos a saber que “a instalação dos seus aposentos será no Grémio de Bragança”: “não há tempo a perder, mãos à obra e que cada um dos brigantinos disponha do que possa para carinhosamente receber quem tão alta honra nos dá com a sua visita”. Ainda relacionado com a deslocação régia, no editorial intitulado “Antigo Paço do Concelho”, em que se celebra o “notabilíssimo monumento” e se recrimina o abandono a que foi votado, depositam-se sérias esperanças na intervenção real: “sua majestade el-Rei por certo não deixará de visitar o velho Paço, pois que haja alguém que dele solicite a recomendação ao Governo para que o venerável monumento seja devidamente restaurado, visto que as finanças da nossa edilidade não lhe permitem entrar nessa despesa tão necessária e útil”.
O número seguinte de A Gazeta de Bragança, de 2 de outubro, é praticamente consagrado ao programa e aos preparativos da visita real. No editorial “A viagem de El-Rei”, fica-se com a sensação de que o monarca vinha a Bragança e a outras localidades. Ora, a razão principal do périplo parece ter sido a inauguração do hotel Palace em Vidago e a estadia no Porto, cidade que era preciso manter congraçada com a realeza – embora, no programa definitivo, o monarca nem pernoitasse em Bragança, e o Palace acabaria por ser inaugurado sem a presença real.
Eis o que se escreve: “Está fixada para breves dias a viagem régia a esta Cidade e a outras terras trasmontanas.
Sua Majestade el-Rei vem honrar-nos com a sua visita, quer conhecer Bragança, a Cidade que deu o nome à dinastia de que o sr. D. Manuel II é hoje o legítimo representante”.
A iniciativa, como se diz, é fruto da disponibilidade do monarca e do apreço que ele sente por estas terras, até porque o pretexto para a visita não era nenhuma comemoração especial, nem a celebração de um acontecimento importante: “Não temos festas a fazer e portanto mais íntimo e entusiástico deve ser o agradecimento do povo brigantino para o monarca querido, pela honra da sua visita espontânea a Bragança”. Mais uma razão para sublinhar as excelsas qualidades dos trasmontanos e do soberano que se decide, abandonando comodidades, a visitá-los e a ouvi-los: “Todas as cidades e vilas deste recanto do País, por onde Sua Majestade tenciona fazer itinerário, se estão preparando para o receber com galhardia, como é próprio do povo trasmontano. É assim que nós compreendemos um Rei que será grande pela orientação que está imprimindo ao seu viver de monarca inteligente e liberal. É assim que compreendemos o viver do nosso Rei que, abandonando o fausto, o conforto e comodidades dos seus palácios, vem ouvir os queixumes da miséria que lhe soarão aos ouvidos no longo trajeto da linha transmontana”.
Para realçar as virtudes deste rincão, incensam-se as qualidades das suas gentes, procede-se à apologia da pax ruris que aqui se vive e acentua-se a oposição campo cidade, carregando de tintas negras a vida agitada, insalubre, dissoluta e “efeminada” dos grandes centros, em contraste com a calma a tranquilidade e com o ambiente moralmente saudável que se fazem sentir nestas terras. Não podiam ser maiores as graças e os dons de tais gentes. Por aqui, os sentimentos eram nobres e autênticos e sentia-se um acrisolado amor ao soberano.
Reforçavam-se os agradecimentos ao monarca pelo seu espírito de sacrifício. “É assim, finalmente, que compreendemos a educação do moço Rei que, habituado às grandezas da Corte, as abandona para vir aos povoados, aonde não se encontram essas grandezas nem as orientações das opulentas capitais, mas em substituição de tudo isso encontra, o que é mais, o carinho, a simplicidade e a sinceridade das aclamações unânimes, desde o nosso modesto industrial ao abastado capitalista. Venha, venha, pois, Sua Majestade El-Rei identificar-se com a modéstia do nosso viver; venha pôr em paralelo o nosso carinho, a nossa lealdade e a pureza dos nossos costumes, com a vida febril, efeminada, dúbia, fictícia e asfixiadora dos grandes centros. Venha e terá ocasião de se certificar que em Trás-os-Montes, e muito particularmente nesta capital do Distrito, não há atmosferas pesadas nem existem as fantasias ambiciosas e deletérias. Não há ódios nem rancores para a Monarquia, há corações lealíssimos, almas generosas, expansões nobres e um respeito profundo pelo Chefe do Estado. Venha que não encontrará entre este povo, que tão altas lições de civismo tem dado, a hipocrisia das sociedades libertinas, mas sim verá em toda a sua plenitude a cor brônzea das nossas faces sacudidas rijamente pelas nortadas. Venha e verá como este povo de braços musculosos e mãos endurecidas pelo cabo rugoso do pesado alvião tem o aspeto de heróis e a alegria de vassalos fiéis e convictos para estreitar o seu Rei, que tão subida honra lhe dá com a sua visita.”
Eram estes os “brasões” que, num estilo grandiloquente – à mistura com um bucolismo hiperbólico –, se apresentavam orgulhosamente ao monarca; eram estas as razões, mais do que suficientes, para o soberano se dignar visitar estas paragens. Para além do tom laudatório com que se celebram terras de tanta “pureza” e tão devotadas à realeza, o discurso, de matriz conservadora, acentua a dissolução de costumes que se teria instalado nas grandes urbes.
Era fundamental mobilizar aqueles a quem o jornal iria chegar: leitores e ouvintes. Mas, como é óbvio, a visita teria sido publicitada por outros agentes, canais e meios, para além da imprensa, autoridades civis e eclesiásticas, programas, comunicados. E num apelo final, puxava-se pelo brio dos bragançanos. “Vamos, pois, brigantinos, todos unidos na mesma ideia e pensamento, preparar uma receção carinhosa e tocante pela sua singeleza ao monarca nosso amigo e querido do povo, para que não se diga lá fora que Bragança é indolente e indiferente à visita régia que nos dá honra e importância. É do nosso brio não ficarmos aquém das outras terras que têm a honra da visita do monarca, antes devemos primar por ir além… Nisto nos devemos empenhar todos, como bons trasmontamos… em cujos corações se abriga o mais acrisolado e puro patriotismo. Avante, pois, brigantinos pelo nosso Rei e pelas festas em sua honra”. Pelo significado, pela importância e pelo simbolismo que se atribuía a esta visita, devia ser grande, na realidade, o entusiasmo. Vinha aí a festa da aristocracia e do povo.
A comitiva real integrava responsáveis governativos e jornalistas. “Sua Majestade el-Rei com a sua comitiva que é composta dos srs. Presidente do Conselho, ministro dos Estrangeiros, camaristas de serviço, oficiais às ordens, médico e secretários particulares, chega às 4 horas da tarde do dia 8 do corrente a Mirandela, onde janta e pernoita, dando o monarca receção. No dia 9 partirá Sua Majestade com a comitiva em comboio especial em direção a Bragança, dando receção na estação do caminho-de-ferro de Macedo de Cavaleiros. Pelas 11 horas da manhã chegará a esta Cidade, sendo esperado na gare da estação por todo o elemento oficial e representantes dos diversos concelhos o Distrito que virão tomar parte da ruidosa festa que se está preparando.”
Festas como “ainda Bragança não teve”. “A chegada da locomotiva real será anunciada por salvas de foguetões e as músicas tocarão na gare da estação, no trajeto do cortejo, na Praça da Sé, e em frente do edifício do Governo Civil. Sua Majestade seguirá em automóvel, da estação à Rua do Conselheiro Eduardo Coelho, Alexandre Herculano, Praça da Sé, Rua Direita, até aos Paços do Concelho, onde o sr. Presidente da Câmara lhe lerá a mensagem de boas-vindas e em seguida continuará pela Rua Direita, Rua Engenheiro José Beça, até ao edifício do Governo Civil, onde dará receção. Terminada esta, seguir-se-á o almoço de setenta talheres, no salão nobre do edifício. Sua Majestade, acompanhado da comitiva, irá visitar os quartéis regimentais e alguns edifícios públicos e hospitais e percorrerá as principais ruas da Cidade, seguindo depois para Murça”.
“Pelas ruas haverá músicas, bandeiras, colgaduras pelas janelas, flores e arcos triunfais; milhares de forasteiros percorrerão a Cidade, aclamando o monarca pela honra da sua visita a esta Cidade. Haverá grupos com descantes populares, que é sem dúvida uma das partes da festa mais atraente. Os foguetes estralejarão no ar a cada momento. Será finalmente uma festa como Bragança ainda não teve, pela ostentação, pela afluência de povo dos diferentes pontos do Distrito e sobretudo pelo Régio Hóspede com a sua notável comitiva”.
Destaque para os “atraentes” grupos de “descantes populares” que integravam o programa das “ruidosas festas”.
Reinava uma azáfama nunca vista: sente-se por toda a Cidade “uma atividade desusada, trabalha-se de dia e noite e faltam operários. Em tudo isto se manifestam as alegrias do povo de Bragança, que pela primeira vez tem a honra da visita de um monarca, pelo menos da dinastia atual, que já conta 270 anos. É pois justificável tudo o quanto se está fazendo para a galhardia da receção do sr. D. Manuel II”.
Até a informação “Bispo de Bragança”, que refere o regresso do prelado, D. José Alves Mariz, à Cidade – o bispo ausentava-se muito –, está relacionada com a visita do Rei. O pastor da Diocese também devia estar no seu posto, à frente das ovelhas, para participar nos luzidios festejos. E há, ainda, um breve anúncio, “Bandeiras”, que tem que ver com a receção ao Rei, “com as armas portuguesas, muito lindas, para ornamentação de janelas”.
O Jornal de Bragança de 5 de outubro, “semanário independente”, tendo como proprietário e diretor Raul Teixeira, alude, como não podia deixar de ser, à visita do Rei. O texto deixa transparecer, contudo, um tom crítico e um lamento acerca da fugacidade da estadia. Em “A visita régia” – com toda a probabilidade, da autoria do diretor –, depois de se informar que no próximo domingo, 9 de outubro, a Cidade recebe a visita de Sua Majestade, afirma-se: “ durante poucas horas é nosso hóspede o Chefe de Estado. Não pode, por isso, o monarca estudar os males que os povos de Trás-os-Montes sofrem, observar as suas necessidades, ouvir as suas reclamações, não se justificando, desta maneira, a viagem régia; por isso que o pretexto para as reais viajatas, segundo a falsa linguagem protocolar, sempre foi o do referido estudo e observação”.
Ora, na vinda a Bragança, “rapidamente vai o soberano atravessar as ruas desta velha Cidade, entre as aclamações de uma multidão curiosa, sob arcos triunfais e abadas de flores. Mais incompletamente, por isso, Sua Majestade ficará conhecendo Bragança: Cidade pobre em haveres e parca em entusiasmos, que a vida torturada que sofre no cruciante labutar quotidiano, desamparada, abandonada, não lhe deixa abrir a boca num sorriso franco de felicidade, mas apenas numa expressão magoada de artificial contentamento. Assim, as festas que Bragança prepara ao senhor D. Manuel têm um aspeto todo cenográfico: deixarão agradável impressão no espírito do jovem soberano, porque são vistas de longe e em fugidios momentos. Que El-Rei seja bem-vindo e que encontre nesta Cidade as provas de simpatia e dedicação devidas àquele moço que, numa tarde de fevereiro, viu, numa trágica alucinação, a sua coroa de Rei entre nuvens de sangue querido. Seja bem-vindo o senhor D. Manuel II”.
Um certo distanciamento irónico, pincelado com notas dramáticas sobre a “vida torturada” dos brigantinos.
Excelente prosa que, num ilustrativo “flash”, concluiu que, em face das condições dramáticas da existência dos habitantes, a Cidade só poderá abrir a boca “numa expressão magoada de artificial contentamento”. De pouco servirá a visita, uma vez que o Rei não terá tempo para ver o que devia ser visto. Não se saúda a deslocação, embora se saúde o monarca.
Neste mesmo número, perante um telegrama que é do conhecimento do jornal, formula-se, numa sucinta nota informativa, bem destacada – em letras garrafais e a negrito – a intrigante pergunta: “O que haverá?” “À hora a que fechávamos a nossa primeira página, oito horas da noite de terça-feira (por conseguinte, no dia 4) foi recebido pelo Administrador do Concelho, sr. António Beça, o seguinte telegrama: Lisboa... Peço que considerem sem efeito comunicação sobre viagem de El-Rei ao Norte porque já não se realizará. Teixeira de Sousa”.
Também para Bragança – e com certeza para as outras localidades que deviam receber o Rei – foi telegrafada, no dia 4, a anulação da visita, embora se ocultassem as verdadeiras causas. Era urgente avisar as autoridades locais. Bragança soube neste dia que algo de anormal ocorria, tão grave que impedia a viagem de el-Rei ao Norte e implicava o cancelamento de uma jornada real tão pormenorizadamente delineada. Autoridades, militantes políticos e cidadãos atentos deviam ter ficado muito apreensivos. Muito em breve se satisfariam curiosidades.
Em suma, quando se dá o cancelamento, os preparativos já estavam numa fase muito adiantada. Esperavam-se festividades como a Cidade “nunca teve”. Uma boa parte dos investimentos já tinha sido feita... Por tudo isto, o abortar da deslocação régia teria provocado, muito provavelmente, sentimentos de frustração em muita gente.
A República bem poderia ter esperado um pouco mais...
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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