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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

...quase poema...ou memórias do nordeste

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Ao fim da tarde regressamos à casa das nossas memórias, dum tempo onde todos os sonhos eram possíveis materializáveis nas prendas dum Cristo antiquíssimo que todos os anos nascia à beira do nosso Presépio pobre, construído à imagem e semelhança da pobreza da nossa aldeia transmontana.

Vamos acender lume que aqueceu mil Invernos para esquecermos a geada e a neve buraqueira que teimosamente tenta entrar em casa por entre as telhas velhas que abrigaram muitas gerações. 
Já matamos o porco, fizemos as alheiras, os chouriços, os salpicões e os botelos. Salgamos os presuntos e gastamos as noites à espera que o calor da lareira seque o fumeiro que será o aconchego de muitos dias.
Esta noite não veio ninguém para a nossa velada e ainda sobrou meia alheira que assamos em lume brando. Por isso, aqui estamos às voltas com os nossos pensamentos, pensando esta terra brava onde os homens obrigam as fragas a dar trigo, azeite, vinho, como quem troca suor pelos melhores produtos da natureza.
O Nordeste transmontano é sem dúvida esta rusticidade de têmpera velha, onde o tempo parou avaro duma cultura ímpar, cheia de mitos, de lendas, dum saber fazer ancestral onde o milagre da mão tece o linho, fia a lã, molda o barro, coze o pão, vai à novena da Senhora da Serra, consulta a bruxa guardadora de mistérios e esconjuros para as doenças da alma.
Ligamos a Televisão e o mundo é grande e orgulha-se do conhecimento científico, das novas tecnologias, do poder da engenharia genética. Os ricos combatem outros ricos e os pobres continuam a ser cada vez mais pobres. Contemplamos o Planeta sentados no escano da nossa casa, onde o nosso avô dormiu regalado no aconchego da manta velha, e sem saber porquê temos saudades de nós, temos saudades desta Terra a Nordeste que tem que preservar o passado e ao mesmo tempo conquistar o futuro.
Fala-se muito em desenvolvimento sustentado e ainda bem, pois temos que travar um certo crescimento saloio que nos envergonha, que transforma o nosso espaço urbano, cheio de riquezas arquitectónicas e paisagistas, numa amálgama de cimento, de rotundas, de semáforos, de prédios sem alma na ausência do vagar do pedreiro que morreu e levou consigo a delicadeza de afagar as pedras.
Por isso, é urgente ir a Freixo de Espada à Cinta, mergulhar fundo no abismo do Penedo Durão e pressentir a dança dos abutres que cruzam os céus num voo largo e solene. Temos que revisitar Miranda e descortinar as memórias de Bispos velhos, enquanto os Celtas dançam para amaciar a guerra. É necessário adoçar a vida com as amêndoas de Moncorvo, com as cerejas de Alfândega, com o vinho fino de Carrazeda, com o fumeiro de Vinhais. Temos que percorrer os caminhos dos comerciantes judeus de Vimioso, ir à feira dos Gorazes de Mogadouro, espreitar Dom Dinis versejando os encantos de Vila Flor, gastar os olhos nos remansos do rio Tua de Mirandela e na beleza da novíssima praia do Azibo de Macedo, para finalmente chegarmos a Bragança à velha Domus dos homens bons e ficarmos comovidos com a lenda da torre da princesa que eternizou amores proibidos dando alma e emoção às velhas pedras do monumental castelo.
As gentes transmontanas vivem outras emoções numa partilha da Democracia que herdou dos velhos comunitarismos. Sai à rua, convence o vizinho, diz meia dúzia de palavrões, luta pelo seu Presidente da Junta, bate-se pelo Presidente da Câmara, ignora os Partidos e revê-se em rostos conhecidos, em sentimentos de honestidade de gente que promete e tem que cumprir porquê os transmontanos têm a sabedoria da honra, a grandeza da palavra dada, e uma sagueza política que não se aprende nos livros mas sim nas regras da boa vizinhança.
Contudo, este relicário transmontano não pode ser o último reduto para estudo duma antropologia que tragicamente vem participar na morte anunciada duma cultura que resiste dolorosamente à avassaladora cultura de massas. O Nordeste tem que renascer das cinzas e não podemos assistir serenamente à morte de tantas aldeias, onde há casas, fontanários, caminhos, mas onde o último habitante partir há muito e para sempre.
O drama do Nordeste transmontano é sem dúvida a desertificação. O Distrito de Bragança envelhece drasticamente, não há crianças, em breve os adultos serão poucos e se não formos capazes de inverter este fenómeno, se hoje encerramos escolas e aldeias, em breve encerraremos Concelhos.
O Distrito de Bragança está a atravessar uma profunda crise de sobrevivência e contudo quando lemos determinadas teorias ficamos com a impressão que ainda é aqui que encontramos a dignidade perdida da humanidade, porque existem sinais de esperança, de que ainda é possível encontrar o homem ético capaz de viver em sociedade.
Pela constatação de alguns paradigmas sociais, parece-nos que a nostalgia dum paraíso perdido regressa aos horizontes das nossas vidas. Sonhamos de novo com o homem comunitário, que não se reduz ao sonho perdido das aldeias de Rio de Onor ou Guadramil, mas que finalmente tem a dimensão da permanência no nosso quotidiano. Para este homem comunitário o bem estar da sua comunidade estava em primeiro lugar e o seu próprio bem estar era relegado para segundo plano. 
Remexemos memórias e de novo encontramos o homem solidário respeitador dos valores, das crenças, dos mitos, que em comunidade administra a sua propriedade e em comunidade define regras de comportamento e perspectivava o desenvolvimento em função de padrões comunitários.
Contudo, quando olhamos para a sociedade contemporânea onde impera um capitalismo liberal, no pior sentido do conceito, onde o dinheiro se sobrepõe ao homem, onde há cada vez maior pobreza e maiores riquezas, aonde existe a exploração do homem e o apelo ao consumismo é constante, ficamos com dúvidas se o homem comunitário das nossas memórias transmontanas não será um paradigma perdido.
Mas, sem dúvida, é necessário agarrar a esperança, nem que seja a última esperança para que o homem transmontano ainda possa viver numa região de velhos comunitarismos, com dignidade e com moralidade.
Em verdade, enquanto não surja o homem novo mais preocupado com a moralidade do que com o consumismo e o bem estar individualista, o sonho do homem comunitário nascido na rudeza das terras bravas do nordeste transmontano, será o paraíso do desejo que aguarda uma discriminação positiva por parte dos mais ricos que têm que pensar nos mais desprotegidos e naqueles que vêm os seus filhos partir pelo mundo à procura de níveis de vida que a sua terra não lhe pode oferecer.


Fernando Calado
nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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