Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
“Dois homens olham pela mesma janela. Um vê a lama.
O outro vê as estrelas!”
Frederick Langbridge
O que faria ele para te ver sorrir?... Ele, que tinha o brilho da manhã no olhar e as estrelas da noite nos gestos serenos que encantam. O que faria ele?... Hoje não o saberás, mas sabe sempre que a história em algum lugar se repete.
Ele, o velho Isaach, o ‘filho da alegria’ como o pai o chamava e que na memória carregou as palavras deste: “a luz com que vês os outros, é a luz com que os outros te veem a ti”. Um provérbio africano, contaram-lhe. Para ele, a maior verdade com que caminhou pelos dias.
Acreditava sempre que um coração nunca carrega demasiadas dores quando nasce para fazer sorrir quem encontra pelo caminho. Isaach olhava, olhava com muita atenção a alma de cada irmão e descobria no sol que ali habitava, o mundo que a fazia sorrir. E, então, sorria também, porque só assim ele sabia ser feliz.
E feliz era agora, mesmo naquela cama de hospital, de um branco mal lavado, para onde as sombras da velhice o atiraram. Ah! Mas Isaach sorria ainda! Porque mesmo no meio da escuridão, há sempre uma razão para olhar o infinito com a sabedoria que a vida carrega nos ombros. É que Isaach não estava só. Com os seus sorrisos viajava Maurício, pequeno de estatura e olhos cor de avelã por cima da pele branca. Mais maldita seria a sua sorte, pensava com pena Isaach em cada dia que passava, pois que este seu ‘irmão’ nem da cama podia levantar-se. As dores no corpo moído eram demasiadas para o seu peso leve.
Assim Isaach lhe descobriu também a alma com a magia do seu coração. E em cada tarde de nuvens ou nesga de sol, aconchegava-se na ombreira da única janela do quarto e desfiava os seus sorrisos sob os ouvidos atentos de Maurício.
- Hoje, meu amigo, vejo ali fora no jardim, uma borboleta delicada que pousa sobre um vaso de margaridas amarelas. São irmãs das rosas brancas que moram no canteiro ao lado. – Cantarolava ele, saboreando o doce de cada palavra - Parece-me que lhes conta agora um segredo… Talvez se tenha apaixonado pelo gaio de dorso rosado que ontem pela tardinha por aqui voou.
E pela aurora seguinte, as paisagens do olhar desdobravam-se em continuadas ternuras cheias daquela vida lá fora:
- Esta manhã, meu irmão, o sol espreita mais feliz! No parque ali defronte, aquele pai caminha com o filho nos ombros e a mãe, de mãos dadas com o cestinho do lanche, é toda orgulho e vaidade dos seus amores! Como dançam os carinhos que os três partilham!
Isaach espreitava o companheiro deitado no seu leito, junto à parede, de olhos fechados e um sorriso gigante, a deleitar-se no som destas imagens que tanto o faziam sorrir também por dentro…
Mas a vida tem sempre o seu desfecho. E numa tarde amarga sem rosto, Isaach não conseguiu levantar-se da sua cama. Entre um respirar delirante e uma prece de súplica, os seus movimentos presos não lhe permitiram tocar no botão que apressasse os enfermeiros em seu auxílio. Sabemos amigos, que o homem ama mas também inveja. Foi nesse sentimento mais baixo que Maurício, em silêncio, deixou partir o companheiro para que veladamente o seu lugar pudesse ocupar e, dessa forma, poder sorrir também pelo seu próprio olhar.
Na manhã de primavera que se seguiu, cama ao lado desocupada, Maurício pediu a gentileza de ser colocado junto à nobre janela do quarto. E, ali, em esforço soberbo para decifrar o mundo que apenas vivera em imaginação, apoiou-se sobre a cabeceira da cama.
Assim, também ele viu o que Isaach, tão humanamente conseguira, só para o ver sorrir: do outro lado da janela… apenas um velho muro em ruínas.
Inspirado na curta-metragem estado-unidense, The Hospital Window (SpiritClips, 2012), de Alexander Soskin, escrita por Terry Brutocao e Robert Fried.
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). .Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.
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