Célio Pires, 35 anos, construtor e músico de gaita-de-foles, nasceu ali em Constantim, no planalto mirandês, numa família que ao trabalho nos campos juntou sempre a paixão pelos sons mirandeses, fosse a tocar bombo, realejo ou caixa, como no caso do pai, fosse a construir material musical, como no caso do seu tio avô, o Tiu Argana, de quem Célio herdou um velho e precioso torno em madeira, movido a pedal, que é hoje o ex-libris, a jóia da coroa da sua oficina.
No planalto, onde cada estrada transversal à direita pode ir dar a Espanha, o vento invernal não perdoa. Varre o asfalto desértico de um lado ao outro sem piedade, enregelando-nos os ossos, obrigando os últimos pastores a vestirem roupa grossa e munirem-se de um alforge de vinho para aquecer a alma e o corpo.
Eu caminhara desde Miranda do Douro por Palancar, Pena Branca e Ifanes, atento às placas bilingues, em português e mirandês, em direcção a Constantim, a aldeia onde Célio vive e mantém a sua oficina, uma povoação mais próxima da fronteira do que de Miranda. Mas, como em todas as caminhadas, levei o meu tempo. Em Palancar, perguntei a uma idosa se a podia fotografar. De lenço a proteger-lhes as faces da rispidez fria do vento da raia e uma mão firme na corda do burro, disparou: «Não, fotografe a cegonha que é o que todos fotografam quando aqui passam». De nada valeria explicar que já vinha a fotografar cegonhas desde as planícies amareladas do Alentejo. Apontei a mira à cegonha empoleirada num enorme carvalho do outro lado da estrada e segui.
Em Ifanes, abrandei de novo para conversar com Albino Esteves, um pastor e o rebanho, sempre a querer fugir para estrada. Foi quando liguei a Célio Pires: «Ah, você é um tipo que anda de mochila azul nas costas? Já passei por si de carro. Apareça...» Célio é GNR em Miranda do Douro e todo o tempo, passa-o na oficina de Constantim.
Quando finalmente cheguei à pequena aldeia de uns 140 habitantes, o construtor de gaita-de-foles já estava à minha espera, junto à estatueta de um gaiteiro, em frente à moderna oficina em pedra. Eu tinha estado na pequena oficina do mestre Ângelo Arribas, em Bemposta e fiquei naturalmente impressionado com a oficina mais apetrechada de Célio. «E é para crescer», explicou-me, «vai ter uma espécie de museu».
Célio começou por dar uns toques de flauta aos 10 anos e aprender sozinho a tocar gaita-de-foles aos 13, numa época em que os jovens da sua idade não se interessavam pela música mirandesa nem esta tinha ganho o cunho prestigiante que tem hoje. «Era o único e era um bocado gozado pela malta da minha idade. Mudou tudo nos últimos 20 anos. Agora a gaita-de-foles é um símbolo prestigiante, como a língua mirandesa, é um símbolo de orgulho». De pertença, acrescentaria eu, com os meus botões.
Na bola de neve de crescente interesse pela música regional dos últimos 20 anos, Célio ensinou muita gente nova e preocupou-se em melhorar os instrumentos. Aos 16 anos, já vivia frustrado com as gaitas pouco sofisticadas que circulavam pelo planalto. «Havia mais preocupação com os desenhos exteriores do que com a qualidade do som». Foi aprendendo, aperfeiçoando e em 2007 abriu então a oficina, já com maquinaria moderna, onde fabrica gaitas mas também zabumbas, tambores e sanfonas. «Ui, a sanfona dá muito trabalho».
Os sopretes, roncos e ponteiras da gaita são construídos em madeira de anguelgue, buxo ou urze e os foles em pele de cabrito curtida. Célio também constrói gaitas galegas mas bate-se pela gaita-de-foles mirandesa: «A nossa escala é diferente, os buracos na ponteira têm posições diferentes e isso torna o som mais grave, basta escutar».
Além construir instrumentos e de tocar, Célio Pires também compõe: «O que mais gosto é de tocar temas compostos por mim, fiéis à tradição local mas feitos por mim. Há por aí muita rapaziada nova a tocar músicas feitas por mim».
Apesar de tocar com o seu próprio grupo, «Trasga», Célio está sensível ao problema da dispersão de gaiteiros, músicas e talento, um pouco por todo o planalto. «O ideal era existir um conservatório em Miranda do Douro que concentrasse o reportório, o transcrevesse para pautas. Não existindo, acabam por ser as associações de cada aldeia a ensinar. A difusão acaba por ser mais isolada, espalhada pelo planalto».
in:cafeportugal.net
(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».
No planalto, onde cada estrada transversal à direita pode ir dar a Espanha, o vento invernal não perdoa. Varre o asfalto desértico de um lado ao outro sem piedade, enregelando-nos os ossos, obrigando os últimos pastores a vestirem roupa grossa e munirem-se de um alforge de vinho para aquecer a alma e o corpo.
Eu caminhara desde Miranda do Douro por Palancar, Pena Branca e Ifanes, atento às placas bilingues, em português e mirandês, em direcção a Constantim, a aldeia onde Célio vive e mantém a sua oficina, uma povoação mais próxima da fronteira do que de Miranda. Mas, como em todas as caminhadas, levei o meu tempo. Em Palancar, perguntei a uma idosa se a podia fotografar. De lenço a proteger-lhes as faces da rispidez fria do vento da raia e uma mão firme na corda do burro, disparou: «Não, fotografe a cegonha que é o que todos fotografam quando aqui passam». De nada valeria explicar que já vinha a fotografar cegonhas desde as planícies amareladas do Alentejo. Apontei a mira à cegonha empoleirada num enorme carvalho do outro lado da estrada e segui.
Em Ifanes, abrandei de novo para conversar com Albino Esteves, um pastor e o rebanho, sempre a querer fugir para estrada. Foi quando liguei a Célio Pires: «Ah, você é um tipo que anda de mochila azul nas costas? Já passei por si de carro. Apareça...» Célio é GNR em Miranda do Douro e todo o tempo, passa-o na oficina de Constantim.
Quando finalmente cheguei à pequena aldeia de uns 140 habitantes, o construtor de gaita-de-foles já estava à minha espera, junto à estatueta de um gaiteiro, em frente à moderna oficina em pedra. Eu tinha estado na pequena oficina do mestre Ângelo Arribas, em Bemposta e fiquei naturalmente impressionado com a oficina mais apetrechada de Célio. «E é para crescer», explicou-me, «vai ter uma espécie de museu».
Célio começou por dar uns toques de flauta aos 10 anos e aprender sozinho a tocar gaita-de-foles aos 13, numa época em que os jovens da sua idade não se interessavam pela música mirandesa nem esta tinha ganho o cunho prestigiante que tem hoje. «Era o único e era um bocado gozado pela malta da minha idade. Mudou tudo nos últimos 20 anos. Agora a gaita-de-foles é um símbolo prestigiante, como a língua mirandesa, é um símbolo de orgulho». De pertença, acrescentaria eu, com os meus botões.
Na bola de neve de crescente interesse pela música regional dos últimos 20 anos, Célio ensinou muita gente nova e preocupou-se em melhorar os instrumentos. Aos 16 anos, já vivia frustrado com as gaitas pouco sofisticadas que circulavam pelo planalto. «Havia mais preocupação com os desenhos exteriores do que com a qualidade do som». Foi aprendendo, aperfeiçoando e em 2007 abriu então a oficina, já com maquinaria moderna, onde fabrica gaitas mas também zabumbas, tambores e sanfonas. «Ui, a sanfona dá muito trabalho».
Os sopretes, roncos e ponteiras da gaita são construídos em madeira de anguelgue, buxo ou urze e os foles em pele de cabrito curtida. Célio também constrói gaitas galegas mas bate-se pela gaita-de-foles mirandesa: «A nossa escala é diferente, os buracos na ponteira têm posições diferentes e isso torna o som mais grave, basta escutar».
Além construir instrumentos e de tocar, Célio Pires também compõe: «O que mais gosto é de tocar temas compostos por mim, fiéis à tradição local mas feitos por mim. Há por aí muita rapaziada nova a tocar músicas feitas por mim».
Apesar de tocar com o seu próprio grupo, «Trasga», Célio está sensível ao problema da dispersão de gaiteiros, músicas e talento, um pouco por todo o planalto. «O ideal era existir um conservatório em Miranda do Douro que concentrasse o reportório, o transcrevesse para pautas. Não existindo, acabam por ser as associações de cada aldeia a ensinar. A difusão acaba por ser mais isolada, espalhada pelo planalto».
in:cafeportugal.net
(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».
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