A matança podia acontecer ainda em Novembro como refere o rifão: no dia de S. Martinho, mata o teu porco, barra o teu vinho e corta relações com o teu vizinho. É claro que este ditado só era válido quando havia maus vizinhos. Em Novembro, com o tempo já frio, evitavam-se mais despesas com o reco e tinha-se carne fresca e enchidos. Por isso o ditado, «no dia de Santo André (30 de Novembro), agarra o porco pelo pé. Se te disser cué, cué, mata-o, que tempo já é».
Se o porco ainda não estivesse bem cebado a matança podia acontecer perto do Natal ou mesmo até Fevereiro. Depois deste mês já era considerado tempo fraco para curar as carnes, já que a temperatura subia.
A matança em Novembro estavam as mulheres mais libertas para lavarem as tripas e fazerem o fumeiro, já que em Dezembro e Janeiro eram os meses da apanha, e havia alheiras e chicha para as merendas (jantares de seco ou sem garfo – almoços para os urbanos). Na apanha, acendia-se uma fogueira no olival, para se irem aquecendo as mãos e os pés e assar-se umas alheiras, carne entremeada ou carne gorda, que, com pão e vinho, completavam a refeição.
Depois de cebar o reco marcava-se a matança para um domingo ou outro dia. Se fosse um dia de trabalho o reco era desassossegado com a luz do candeeiro a pitróleo e das estrelas e sob os pés um frígido manto branco.
Antes da matança, o grupo, que eram quase sempre cinco ou seis, desenjuava-se à luz da candêa, em volta da mesa da cozinha, com um copito ou dois de aguardente, figos secos e pão, porque o trabalho era certo e tinha de se fazer com rapidez. A conversa discorria do tamanho da ceba e de outras da aldeia ou das vizinhas e vinha sempre a comparação com a corpulência de anos anteriores.
Começava um curto e aflito bailado da guita com a lançada para o bicho enfiar nela o focinho. Mas os grunhidos de pânico do animal indicavam que ele já tinha percebido a gravidade do momento, esgueirando-se pelos quatro cantos do curral ou da loije. Até que a destreza de manejar a guita, ou a sorte, ou algum dos mais destemidos lhe agarrava as orelhas e os demais imobilizavam-no deixando-o ir encostar ao banco tosco de matar o reco.
Era só tombá-lo para cima do banco da matança. Este composto por uma tábua de prancha com cerca de sete centímetros de grossura e os pés toscos e robustos. A dona da casa chegava-se à frente com o alguidar, com vinagre e cebola picada, que ia receber o sangue da ceba.
A faca de matar o reco tinha uma folha de respeito e só era utilizada para este efeito, indo uns dias antes à pedra de afiar para ficar como uma lanceta da ponta à base da lâmina. Um bom matador de porcos tinha de ter uma boa faca.
A faca entrava na parte inferior do pescoço, antes das espadas, com uma estucada, rumo ao coração, traçando uma bissectriz de quarenta e cinco graus. Se o sangue jorrava pouco, acto imediato a folha da faca, em forma de lança, saía do corpo e entrava ligeiramente mais voltada para o lombo do porco. O jorro era absoluto como se abrisse a rolha ao pipo.
- Olha que tacho trouxe! Não vai caber o sangue todo porque o reco é valente!
Mas, pouco depois, os grunhidos lancinantes iam diminuindo de intensidade até se apagarem e o sangue estancava, bastante antes de atingir o rebordo, mesmo com a cusma provocada pela força do esguichar.
A dona da casa continuava a mexer com a mão para o sangue não tralhar e lá se iam as chouriças doces ou uma travessa de sangue cozido. Se o sangue ainda continuava a escorrer com um fio mais fraco para o alguidar, continuava a mexer, para se misturar bem com o vinagre, e devia-se continuar a segurar bem o porco.
Por vezes, os homens deixavam-no e acto contínuo o porco levantava-se e fugia com as últimas forças de querer escapar à morte. Vivia-se uma cena insólita e macabra do reco a fugir quase morto, até que era apanhado. Estas cenas eram motivo de chacota ou zombaria do resto da aldeia sobre os protagonistas ao saber do macabro.
Se a morte não queria levar o porco poderia querer marcar alguém. Às vezes, diziam que aquela casa do lavrador era «da má morte». Outras, conjecturavam que o bicho tinha «alma do Diabo» e nada de bom poderia acontecer. Havia quem sugerisse, que o melhor era chamar o padre para benzer as carnes e evitarem-se males maiores.
O nosso pai que era excelente matador, nunca foi muito de crendices, e achava que era culpa dos burranazes que o largaram sem esperarem que ele o tivesse considerado morto. Só se largava quando se não ouvia resfolgar baixinho e o animal, já com a morte no bandulho, ainda lutava pela vida.
Com o corpo do animal ainda quente, acendia-se uma fogueira com palha e pegava no fachucos de palha colmeira e facas para raspar o reco. Este trabalho e seguintes ficarão para uma próxima lavoura de letras.
Por: Jorge Lage
in:jornal.netbila.net
Número total de visualizações do Blogue
Pesquisar neste blogue
Aderir a este Blogue
Sobre o Blogue
SOBRE O BLOGUE:
Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço.
A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)
(Henrique Martins)
COLABORADORES LITERÁRIOS
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário