Para não correr o risco de má interpretação na abordagem deste tema, evitando, assim, ser acusado de motivações “animalofóbicas”, é importante que fique registada a seguinte nota prévia: gosto dos animais (cães, gatos, iguanas, hamsters, agapornis, etc.,), saúdo a criminalização dos maus-tratos e abandono dos mesmos, comovo-me com o seu sofrimento, também acho que não são “coisas”, e estendo com naturalidade o meu sentimento de partilha à espécie.
Com alguma perplexidade e preocupação, podemos constatar que a sociedade actual (ou parte dela) inverteu completamente o valor e a prioridade dos sentimentos: há hoje mais pessoas a defender os animais (nomeadamente os cães) do que crianças e idosos, que sofrem de maus-tratos, sem que ninguém lhes valha. Por mero capricho, por moda ou busca de protagonismo, a entrega à causa canina é o principal trampolim para um cidadão anónimo (ainda que moralmente pouco recomendável) ser elevado à condição de herói nacional. Para granjear tal reconhecimento, basta recolher em sua casa um cão abandonado, “postar” o feito nas redes sociais, e as televisões, sedentas de sensacionalismo, fazem o resto.
Da contradição do ser humano faz parte esta cruel realidade: muitos dos que tratam com carinho e ternura os seus animais (chegando mesmo a considerá-los como fazendo parte da família, humanizando-os), despejam autenticamente (como se de coisas se tratassem) os progenitores em lares de idosos, e, num registo de visitas pouco frequentes (por, dizem, falta de disponibilidade), nem sequer os vão buscar nos dias nomeados para a confraternização em família.
Toda esta protecção aos animais e a reclamação dos seus direitos, que os legisladores, devido a pressões lobbistas, fazem questão de verter para os diplomas legais, tem sido uma luta muito mais empenhada e eficaz do que aquela travada para garantir a protecção das crianças, das mulheres e dos idosos vitimas de violência doméstica.
Esta é, pois, uma constatação suficientemente consistente para permitir se possa rever a expressão idiomática “vida de cão”, que, fazendo parte do nosso património linguístico, remete para a ideia de vida sofrida, tingida pelas cores do infortúnio. Momentos antes de escrever este texto, entrei na loja da fruta onde vou habitualmente, e pude verificar que tal expressão tem hoje o sentido pervertido, porque completamente desactualizada: vi uma senhora às compras, com o cão ao colo, entre afagos e beijos ao dito, numa relação maternal, onde o amor para cá, amor para lá era a prova da incondicional cumplicidade entre ambos.
E o exemplo acabado de que estamos perante uma sociedade cada vez mais animalocêntrica, em que os animais estão primeiro do que as pessoas, é o facto de se verificar que os parques de diversões e os jardins públicos, concebidos para os fins e os destinatários que todos nós conhecemos, são mais frequentados pelos utentes de quatro patas (que ali se aliviam fisiologicamente, acompanhados pelos donos, com a condescendência das autoridade policiais e municipais) do que por crianças.
Mesmo sabendo da imperfeição do ser humano, manifestando ele, tantas vezes, comportamentos de animalidade, e, ao invés, reconhecermos humanidade na bicharada, só uma pessoa febril, alucinada, tomada pelo desespero, pode afirmar “quanto mais conheço os homens, mais gosto de animais”. Este é o desabafo próprio de quem, desiludido com a vida, teve o azar de se rodear das pessoas erradas, dos maus exemplos, na relação amorosa, de amizade ou parental, não tendo tido oportunidade de conviver com aqueles que representam o verdadeiro e natural virtuosismo do Homem.
Que os caninófilos me perdoem a deselegância: por muita compaixão que possa sentir por um animal que sofre, seria incapaz de fazer do sofrimento do cão ou do gato a minha causa, quando na espécie humana há motivos de sobeja, dramatismo que chegue, para cumprir essa missão glorificadora e evangélica.
António Pires
in:mdb.pt
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