terça-feira, 3 de outubro de 2017

Cassini: a máquina que apaixonou a Terra e o reino de Saturno

A 15 de Setembro, a missão internacional Cassini-Huygens conheceu o seu fim, sublinhando a atmosfera de Saturno com um fogo de artifício e uma pequena “chuva de meteoros metálicos” com a assinatura da Humanidade.
Após mais de 7,8 mil milhões de quilómetros percorridos, mais de 600 GB de dados científicos recolhidos e mais de 380000 fotografias que alimentaram mais de 3600 artigos científicos, o mergulho final da Cassini, sonda que foi construída e pensada pela NASA, ESA e ASI - Agência Espacial Italiana –foi fiel à sua eficiência ao longo de várias décadas: esteve a trabalhar para os cientistas da Terra até ao útlimo segundo, com a maioria dos seus instrumentos científicos a contarem aos cientistas tudo aquilo que conseguia medir à medida que desafiava a imensa pressão e temperatura que a atmosfera de Saturno colocava na sua entrada de foguete... 

Mais de 5000 pessoas trabalharam directamente na missão Cassini-Huygens e é sempre complicado encontrar a data de nascimento de uma missão espacial. Geralmente marcam-se duas datas: a partida da Terra e a chegada ao destino e, nesse caso, tais marcas temporais para esta missão foram os dias 5 de Outubro de 1997 e 30 de Junho de 2004. Porém, antes do lançamento, o planeamento e construção de uma missão desta envergadura dura aproximadamente 10 anos, pelo que estamos perante uma odisseia que no seu tempo total ter-se-à estendido por praticamente três décadas!

Creio, porém, que a missão ao reino de Saturno começou a preencher o imaginário dos cientistas desde que o visualizámos pela primeira vez e que o mesmo começou por nos desafiar devido aos seus vistosos sistemas de anéis... vistosos porque hoje sabemos que os 4 planetas gigantes gasosos do nosso Sistema Solar têm anéis, mas os de Saturno são claramente mais poéticos aos olhos e à curiosidade científica. E se quiseremos ser mais factuais em termos temporais, começámos a sentir cócegas de Saturno na nossa relação científica com o Cosmos quando a sonda Pioneer 11 se tornou na primeira emissária da Humanidade e em Setembro de 1979 passou (sem parar!) a 21,000 quilómetros do planeta, descobriu 2 luas (ia embatendo numa delas), sentiu a presença da sua magnetosfera e campo magnético e mostrou-nos também a primeira fotografia de uma das suas mais intrigantes luas – Titã. 

E o namoro entre terrestres e o reino do planeta dos anéis acentuou-se quando a Voyager 1 (em 1980) e a Voyager 2 (em 1981) também passaram sem parar por tal região mas encheram os cientistas com mais e outras perguntas! 

A Cassini-Huygens parecia inevitável, apesar de pouco tempo antes da sua partida da Terra a NASA ter tido a tentação de cancelar todo o projecto (por questões orçamentais) e não fosse a forte insistência dos parceiros europeus na sua continuação e esta crónica não existiria.

Que regalos científicos nos deu a Cassini? Para além da descoberta de mais de 10 luas (7 confirmadas, 3 ainda em averiguações) e da suspeita de que pelo menos mais uma estará por nascer por entre os anéis de Saturno, revelou-nos os mundos estranhos e fantásticos de luas com história e estórias tão díspares como interligadas entre si: o trânsito de poeiras entre Jápeto (e a beleza das suas cordilheiras montanhosas) e Febe, que obscurece todo um hemisfério da primeira; o gigantesco impacto que deixou uma cratera com cerca de 140 quilómetros de diâmetro e que por pouco não terá despedaçado a lua Mimas, mas que lhe deu uma aparência que qualquer fã de Star Wars reconhecerá como a Estrela da Morte; Hiperião, uma lua repleta de pó e com o aspecto de uma pedra de pomes; como as pequeníssimas luas Prometeu e Dane que esculpem gravitacionalmente os anéis mais exteriores do planeta; ou o autêntico parque geológico de Tétis...

Porém, e no que diz respeito a luas, foi em Encélado e Titã que esta missão mais nos surpreendeu e, sobretudo, deixou água na boca para futuras expedições a tais paisagens. O lander Huygens (ESA) tornou-se no primeiro artefacto terrestre a tocar outro satélite natural que não a nossa Lua; foi a 14 de Janeiro de 2005 e durante as quase 2 horas e meia de descida e 72 minutos a transmitir a partir da superfície de Titã, revelou-nos um mundo que em termos morfológicos e de constitução da sua atmosfera podia perfeitamente ser uma Terra primordial. “Lá de cima”, a Cassini mostrou-nos também lagos enormes constituídos por primos do petróleo e um ciclo hidrológico parecido com a Terra, mas sem água e baseado em hidrocarbonetos... 

Em Encélado, a Cassini atingiu o ponto mais elevado dos nossos delírios astrobiológicos, uma vez que desobriu todos os ingredientes que, na Terra, permitiram o aparecimento e evolução da vida: jactos gigantescos de vapor de água que denunciam um gigantesco oceano subterrâneo e fontes hidrotermais no seu fundo. Água, transporte de energia, nutrientes... e tudo para sonhar com criaturas mais ou menos estranhas mas, em boa verdade, qualquer biólogo ficaria contente com a descoberta em tais remotas paragens de uma simples bactéria! Ainda não foi desta, mas pelo menos sabemos que há uma espécie de jackpot em Encélado que nos estende mais convites para a sua exploração. 

Mas as surpresas continuaram mesmos nas últimas semanas da Cassini que realizou vários e cada vez mais próximos mergulhos por entre os anéis de Saturno - e encontrou um inesperado vazio entre o planeta e os seus anéis mais interiores. Contou-nos também que os anéis serão menos densos e mais recentes do que o que se pensaria: terão perto de 100 milhões de anos e tivessem os “nossos” dinossauros telescópios e podiam ter assistido em directo ao seu nascimento!

A Cassini também teve um lugar priviligiado para assistir ao espectáculo cromático da mudança das estações em Saturno e como o jogo de luz entre o Sol e o planeta afecta o brilho dos anéis e a própria cor dos sistemas meteorológicos – auroras rosas, roxas, um enorme hexágono polar que alberga no seu interior um furacão 50 vezes maior do que qualquer furacão terrestre... que maravilhosa “poesia da realidade” foi desvendada Ciência (citando Richard Dawkins) através da Cassini!

E o futuro? Infelizmente não há nenhuma outra aventura saturniana nos nossos horizontes a curto e médio prazo, falando-se cada vez mais alto em alguns corredores espaciais de missões a Urano, Neptuno, Júpiter (e à sua lua Europa), alguns asteróides, Lua, Mercúrio e Vénus. Mas a Cassini deixa-nos um legado cinetífico que será trabalhado pelos cientistas durante décadas! Ainda hoje anunciamos estudos feitos com base em dados das missões Pioneer e Voyager e acontecerá o mesmo com a Cassini que, por direito próprio, conquistou também um lugar afectivo para além da Ciência e da sua comunidade. Foi a missão que, tal como o Telescópio Espacial Hubble, soube cativar os olhos e a imaginação de todos aqueles que se deliciram com as suas fotografias num qualquer jornal ou canal de televisão. Que nos mostrou também, numa fotografia épica, um ponto azul muito pequenino – a Terra vista a partir de Saturno, um exercício de Ciência, Filosofia e, sobretudo, de Humanidade.

Foi também a missão que contribui para o nosso bem estar e evolução tecnológica e nem o sabemos... a engenharia necessária para a construção e eficiência da Cassini permitiu-nos ter sistemas de distribuição eléctrica mais eficazes e acessíveis na instrumentação ligada à qualidade do nosso ar; sistemas de gravação sem partes amovíveis que foi uma preciosa ajuda para sistemas aeronátucos terrestres bem como para a indústria do entretenimento; inovou na área dos sistemas integrados avançados com uma nova aplicação (ASIC) que conseguiu por si só substituir mais de uma centena de chips tradicionais e, asism, reduzir também a massa de certos sistemas; uma fonte de alimentação mais fiável e que aumentou a duração de vida das baterias; ou até giroscópios e outros sistemas de referência de inércia com menos riscos de falha mecânica por não conterem partes amovíveis... a Cassini foi mais uma missão que nos mostrou que ir ao Espaço dá saúde e faz crescer na Terra e que a aventura espacial da Humanidade é, para além de uma emocionante epopeia, também uma poderosa ferramenta da evolução terrena da Humanidade! No último dia da vida da Cassini, o astrónomo português Pedro Machado – que trabalha precisamente com dados dessa missão para estudar a atmosfera de Saturno – escreveu no seu Facebook em jeito de despedida: “espero que sonhes, Cassini”... 

Eu não sei se sonhou, mas quase que era capaz de jurar que ouvi naqueles últimos segundos da Cassini um gigantesco sussuro que contava assim num tom cinematográfico: “I’ve seen things you people wouldn’t believe...” 

E confesso que agradeci emocionado!

Miguel Gonçalves 
Coordenador Nacional da Sociedade Planetária Apresentador da rubrica “A Última Fronteira”, RTP 
Conteúdo fornecido por Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

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