No manuscrito abaixo descrito, escreveu o autor o seu nome num monograma formado por um Mem que se vê cortado ao meio o ângulo das primeiras duas pernas e a terceira semelha um C, tendo por cima de todas elas um e precedido de P, abreviatura de P.e (padre), que sai, com certa arte, do conjunto do M. O monograma diz: Pe. António Manuel Cameirão, segundo nos informa o tenente-coronel de infantaria Carlos António Leitão Bandeira (993), casado em Izeda com D. Maria do Coração de Jesus Cameirão Afonso, descendente colateral do autor, a quem o manuscrito pertencia e agora a nós, por oferta generosa do marido, que muito agradecemos.
Examinando no Museu Regional de Bragança o maço Ordinandos, não encontrámos o nome de tal padre. Aparece, sim, um padre António Afonso Cameirão, cónego, tesoureiro-mor da Sé de Miranda, que resignou o canonicato em seu sobrinho António Bernardo Afonso Cameirão; mas, como este morresse em vida do outorgante, fez segunda resignação em outro sobrinho de nome Sebastião de Morais, subdiácono, de Izeda, em 1758. Portanto, não pode ser nenhum destes.
Aparece ainda um José Maria de Morais Cameirão, também de Izeda, que recebeu ordens de missa em 1847, que igualmente não pode ser aquele pelos motivos deduzidos do contexto do códice, nem será o padre Manuel Joaquim Choa, reitor de Izeda em 1858. Entendemos que o autor do manuscrito será António Manuel Choa, de Izeda, filho de Luís de Choa, desta povoação, e de Catarina Joaquina Pereira, de Gralhós, que recebeu ordens de diácono em 1827. Este, sim: padre novo, com o sangue na guelra, é que estava em condições de se meter na aventura da guerrilha miguelista que relata.
O título do manuscrito é: Divertimento Crítico e Satírico; feito às Escuras.
Com a narração histórica da vida de um infeliz caipira [nesta altura está o monograma] demonstração de amizade, e ingratidão no tempo contrario.
Com o trágico curso de males em que a Revolução faz naufragar o homem.
Dado em lugar oculto aos 6 de Janeiro de 1837. Serdla B. 4.º de 46 folhas paginadas de frente.
O autor narra em prosa e verso os trabalhos que passou durante vinte e sete meses de prisão por vinte e nove cadeias e no exílio, devido às perseguições políticas: o abandono dos parentes que bem podiam protegê-lo, principalmente um deles – Venâncio Bernardino Ochoa – então governador civil do distrito de Bragança e grande potentado, e memora, reconhecido, os benefícios de alguns amigos, poucos, pois a maior parte voltou-lhe as costas.
A parte, porém, verdadeiramente interessante do códice é a história da guerrilha miguelista de que foi organizador, juntamente com o capitão-mor de Algoso a 1 de Maio de 1834, intitulada «Batalhão da União Restauradora dos Direitos de D. Miguel I», num total de duzentos homens, armados alguns de espingardas e a maior parte de paus e roçadouras, começando por assaltar a vila de Algoso, onde o autor servia de cura do reitor Pistolas, para se apropriarem de alguns armamentos que lá havia, «constituindo segunda vez as antigas autoridades [miguelistas], lançando por terra as governativas usurpadas, afichando as Proclamações do nosso Monarcha nos pellourinhos e portas das Igrejas com exultantes repiques de sinos, e festivas acclamações».
Marcharam seguidamente sobre Miranda do Douro, pondo-lhe cerco, que se entregou sem derramamento de sangue no dia 4 de Maio. No dia seguinte, 5, apareceu a cidade sitiada por duzentos carabineiros espanhóis e pelas tropas constitucionais de Bragança e Freixo de Espada à Cinta; houve tiroteio, de que resultou uma morte e três feridos, sendo os miguelistas postos em fuga desordenada de «salve-se quem puder», passando alguns por Santulhão, onde se acolheram em casa do «Senhor Quintanilha e Canedo», Izeda e Bagueixe, «ponto central de reunião». Os poucos que se reuniram aí ao autor do manuscrito e ao capitão-mor de Algoso, perseguidos de perto pelos constitucionais, amanheceram cercados no dia 7 de Maio e só a muito custo escaparam; o padre debaixo de uma cama e o capitão-mor na ponta de um corpulento negrilho coberto de folhagem, «sendo esta a ultima acção e onde teve fim o brioso e valleroso [sic] Batalhão». A 18 de Maio desse ano de 1834 foi o autor preso e remetido para a cadeia de Bragança, iniciando assim a tragédia dos seus... errores.
Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança
Sem comentários:
Enviar um comentário