(D. José), bispo de Bragança – Faleceu em Vinhais, repentinamente, vitimado por uma congestão, a 23 de Agosto de 1927. Muito tínhamos escrito, para sair neste volume, respeitante à sua acção prelatícia e à episcobite, que, queimando-lhe o cérebro, o matou; ficará, porém, para o seguinte, a fim de não avolumar demasiado este, pois também consagraremos duas palavras, visto assim o quererem, ao pataratíca do Zé Rabugento e ao seu Carroço-Mota das sandices conferencistas, feliz rival nos preciosismos devocionários amaneiradinhos, embora seja para lamentar o desperdício da cera gasta com tão ruins defuntos e apagadinhas figurinhas. Poverelo, inchado como a rã da fábula com as suas tuautas congeminências clerizáceas, julga resolver com bizantinices de cágado o magno problema da sólida e máscula orientação católica. Insensato, não vê que as jactanciosas afectações ou irritam, provocando nos espíritos as terríveis reacções, tão tragicamente memoradas na História, ou enojam pela insolente pretensão do sapateiro que
quer tocar rabecão sem saber onde se lhe põe a mão – ne sutor ultra crepidam e que Deus, superbos resistit!... O outro, o Rabugento, é menos dado a espalhafatoses teatrais; contenta-se com uma correcção insólita, na certeza de que o hábito faz o monge e não o contrário, como diz a sabedoria das nações, e que tudo depende de tirar ou pôr, por exemplo, a sobrepeliz por cima dos ombros nesta ou naquela parte da igreja, e em nénias semelhantes. É que lá diz o lírico: «um génio que nasceu de encolhas não se meta a redactor de folhas».
Entendes o verso, Delfina? De quando em vez é necessário alfinetar este odre de vento e observar o conselho: responde stulto juxta stultitiam suam ne sibi sapiens esse videatur, um pouco de longe, é claro, ne efficiaris ei similis.
Convém desde já frisar que o Zé Rabugento é bom homem; porém, incapaz de tratar com gente, devido ao seu génio irascível, que o leva a ralhar constantemente, a propósito e despropósito de tudo, e às chinesices que lhe ficaram da incipiente paroquialidade entre cafres e orientais. Pelo contrário, o Carroço-Mota tem apenas aparência de bom, mas é péssimo e mais venenoso que uma víbora pequenina, que morde o próprio rabo por não poder envenenar os outros.
Não podemos deixar de aludir desde já à campanha que D. José Lopes Leite de Faria levantou contra o conselheiro José Fernando de Sousa (Nemo), director de A Voz, e doutor Alfredo Pimenta. As causas dessa campanha são complexas, mas no fundo trata-se apenas da administração de um jornal católico e do suposto desafecto do clero aos bispos. Na verdade, os católicos andam a malbaratar energias mentais, físicas e pecuniárias em jornalecos, revistecas e quejandas publicações, que nenhuma influência exercem fora dos escaninhos sacristânicos; não actuam onde deviam actuar; não formam corrente que influa na opinião pública; não satisfazem, enfim, as exigências da vida moderna, necessitada de andar em dia com todo o movimento social nos seus múltiplos aspectos, de onde resulta que os próprios católicos, por melhor boa vontade que tenham, precisam de ler outros jornais para bem se orientarem dos assuntos que lhes interessem.
Parece fadário triste! Quando algum jornal católico progride e vai atingindo a meta desejada, surgem as vaidades grafómanas, as vaidades dos mestres orientadores, as vaidades do penacho e lá se vai tudo... Haja vista o Correio Nacional e seus sucessores e anteriormente as Novidades.
Dois exemplos passados connosco bastarão para se fazer ideia do que deixamos dito. As freguesias da raia – e são muitíssimas as de Portugal – têm largo comércio com Espanha e precisam de andar em dia com as oscilações cambiais; pois longas cartas escrevemos a um jornal católico de há quarenta anos, pedindo-lhe que as indicasse e, antes de o conseguir,muitas vezes nos disseram que essas informações nada interessavam ao clero!...
Os dados cronológicos são o nervo da História; mas não há levar um jornal católico a indicar num necrológio, por exemplo, o dia, mês e ano do nascimento e óbito de um indivíduo, lugares onde viveu, cargos que desempenhou, acompanhados das datas dos despachos, e o mais que pode interessar à biografia desse morto. Amontoará mil adjectivos campanudos sobre o homem; mas facto positivo, concreto, que se aproveite em condições, raro o indicará. Muitas vezes experimentámos esta triste realidade durante a coordenação das notícias para esta obra. No mais, é o mesmo, à excepção dos assuntos de carácter teológico, filosófico e mesmo social que, em regra, algumas vezes tratam magistralmente, de onde o perdermos estupidamente a maior e quase única alavanca moral do nosso tempo, capaz de impulsionar a sociedade, qual é a imprensa.
Muitas vezes temos dito aos senhores dessas revistecas que tais informações são indispensáveis; que ninguém leria hoje as crónicas monásticas, a mais literatura de igual teor e todos os seus considerandos de ordem moral, se não fosse à cata das notícias históricas que trazem, sendo até fina política religiosa o aproveitamento deste veículo para insinuar sua doutrina.
A nada se move o Deus hoec otia nobis fecit da peculiar preguiça. É que a compilação das notícias dá trabalho, demanda despesas e as larachas retóricas mesmo na cama se engendram, se não é que Deus dementat quos vult perdere, e lucros sem dispêndios é que se querem. Ver adiante os artigos Martins Júnior e Matos Botelho.
Não nos parece que exista no clero-povo corrente antiepiscopal, nem sequer desafecta; mas, na verdade, ver-se o padre, após dez anos de estudos seminaristas – que, melhor orientados, lhe garantiam vida desafogada noutra carreira –, onde consumiu o sangue dos seus, privados muitas vezes do essencial à sua mantença, reduzido a uma freguesia pobre, e nem tão mal, que rende, em média, três contos de réis anuais, onde só por milagre ou prodígios de economia não morre de fome; ver-se, após uma vida afanosa, cheia de omnímodos trabalhos, exigências e obrigações, empurrado dela para fora, sem garantias de subsistência, quando se inutiliza, empurrado como caco inútil ou besta esgotada para serviço lançada ao muradal, é triste, é desoladoramente triste, bárbaro mesmo, sendo aliás fácil, pelo sistema dos montepios, sindicatos ou caixas económicas, remediar o mal.Mas não se remedeia, porque hominem non habemus; porque o clero pobre parece ser o ideal de alguns, que não sabendo conquistar corações, querem dominar pelo terror famélico. Pura ilusão! A reacção da miséria é pavorosa, e a sua obediência infrutífera, porque é inconsciente.
Como exigir tantos e tão complexos serviços, sem o incentivo, não diremos do autêntico carinho paternal – que esse não chega para as fórmulas no final das cartas – mas pelo menos da estima, dedicação e trato lhano, despido de formalismos protocolares medievais, a quem vê cheio de trevas caliginosas o dia de amanhã, sem recear a sofismação dos mesmos, a reacção activa ou passiva?!
Como exigir que o clero não procure, fora da sua missão, granjear meios de subsistência para a velhice?! E há pseudo-teólogos bem comidos e bem bebidos, com o futuro garantido, que, bem instalados na vida, quais insofridos Jonas à sombra da fresca olaia, pregam a vedação do trabalho manual ao padre; que barafustam contra os que procuram fugir à ardência dos raios solares, mesmo à custa desse trabalho, como se ele não fosse a incude básica da virtude, o orgulho de S. Paulo, o grande lábaro que impôs à pública consideração as ordens monásticas primitivas, como se a sua decadência não viesse depois que dele se esqueceram!...
Ver-se o clero-povo privado de personalidade jurídica no direito canónico, reduzido, a bem-dizer, à triste condição de hilota ou servo de gleba, porque a seu tempo não houve quem por ele fosse – hominem non habemus.
É triste muito triste!
Durante o regime concordatário os governos e os seus jurisconsultos impunham o veto a certas soluções menos harmónicas com os direitos humanos, mesmo no tempo da maior piedade, como sucedeu entre nós com alguns cânones do Concílio de Trento; os oprimidos recorriam a ele quando lhe minguava justiça; e agora? – hominem non habemus.
O clero-povo ainda é castigado sem processo, sem admissão de defesa sem limitação de tempo, dependendo apenas do quero, posso e mando, ciência certa e poder absoluto do bispo, sem apelação nem agravo, porque o recurso ao metropolita, nos poucos casos em que o toleram, e nunca sem rancor que jamais se extingue, determinante da irremediável desgraça do infeliz recorrente, não oferece garantias eficazes.
Falam ao clero-povo de estima, muita consideração, mas lembram-lhe logo a necessidade de guardar as distâncias, o afastamento, como aos sudras das castas indianas, e por isso, de quando em vez, estala o pavor do ameaço com as determinações postas em letra redonda, condimentado com o irritante ipso facto, como há anos trovejava um ante setenta sacerdotes que dele se iam despedir após uma semana de exercícios espirituais!
É claro que, felizmente, são poucos os que assim mandam e nunca conseguem os afectos do coração, tendo portanto razão para dizerem que lhes foge a estima do seu clero; não formam um todo harmónico com os dirigidos em ordem a um plano de fomento apreciável; não conquistam a obediência livre e consciente, que dá a vitória, mas sim a hipócrita e arranjista, que trata apenas de se governar, fazendo o mínimo possível sob aparências de afeição, que desaparece mal se vêem governados, volvendo-se quase sempre em má-vontade, senão em ódio, como revindicta das opressões passadas.
Em conclusão: se o episcopado quer o amor do seu clero, olhe por ele, garanta-lhe a independência diocesana, canónica e jurídica, procure remediar-lhe a precária situação, o que é facílimo – e só o não faz senão quiser; estime-o e olhe-o como irmão e não do alto da sobranceria de senhor feudal; conviva com ele fraternalmente,mas de facto e não com o irritante e deprimente Paternal afecto; dispense-lhe esses salamaleques dos ajoelhamentos e beija-mãos, que já passaram de moda e que degradam em vez de levantar; acabem com a hospedagem em casa dos párocos aquando da visita pastoral, porque, além de ser pouco moral aceitarem gasalhado em casa dos sindicados, esgotam o clero com despesas superiores à sua capacidade económica.
Comam por seus dinheiros! – é o grito de todo o povo medieval contra as aposentadorias dos grandes, a cada passo exarado na documentação foralenga e similar, e o povo leigo foi atendido alfim,mas o povo-clero continua ainda debatendo-se exangue no ecúleo. Nem colhe o dizer-se que muitos empregados públicos, inspectores de serviços de aldeia em aldeia, percebem ajudas de custo, porque até há bem pouco os prelados eram remunerados principescamente, e, contudo, não prescindiam das aposentadorias e comedorias esfalfantes. Aligeirem essas visitas, suprimindo minúcias protocolares, que nada prestam, e sujeitem-se às consequências dos ossos do ofício e à mesa frugal. Dispensem de exame o clero de sessenta anos para cima, bem como das conferências eclesiásticas, porque nesta idade já não se aprende. Acabem com esse vexame de exigir, ainda para cúmulo,meios de transporte para suas pessoas, comitiva e guarda-avançada de batedores em exploração. Dispensem os de sessenta e cinco anos para cima dos Exercícios Espirituais, para evitar os desastres pouco edificantes de lá morrer um cada ano, porque nesta idade os estômagos já não estão para refeições de caldeirada. Consultem todo o clero nas medidas administrativas a tomar e não apenas os apaniguados e palacianos, porque estes, em geral, são aves de arribação – comem o isco e...mercenarius autem figit. Não esqueçam a lição da história e, recentemente e localmente, a do bispo Mariz, abandonado por todos e apenas defendido com perigo de vida mesmo por quem só lhe devia más-vontades. Convença-se que com vinagre não se apanham moscas; que o servilismo é incompatível com a verdadeira dedicação e que o clero representa ainda uma enorme força, capaz de prestigiar vantajosamente a classe, mas que é uma força perdida, porque nemo nos conducit, porque hominem non habemus.
Na verdade, há coisas que não se compreendem a não ser pelo aforismo de Hobbes: humo, homini, lupus – parafraseado – sacerdos, sacerdoti, lupissimus.
Conhecemos um bispo que era afável, lhano e risonho com os padres fora da sua diocese, e brusco, ralhador e intratável nela. Consta que a maior parte são deste teor ou, pelo menos, de aspecto carrancudo, blindados por uma couraça de noli me tangere hiperexcessiva. O falecido bispo do Porto, D. António Barroso, passava geralmente por extremamente bondoso; no entanto, o seguinte caso, que é autêntico, como nos afirmou o paciente (padre trasmontano, professor de inglês e alemão dos mais distintos do liceu do Porto, autor de alguns livros impressos), que lhe requereu licença para celebrar missa, obtendo este despacho, prova o que acima dizemos: «Informe o seu pároco àcerca do comportamento moral». «Não é conhecido», disse este.
Desgostoso um pouco com a seca do pároco, que não conhecia as suas ovelhas, o requerente tencionava desistir do intento, quando, por mero desabafo acidental, referiu o caso a um amigo, que, sem ele o saber, o era também do bispo. «Estás enganado: o Barroso é um santo.Vamos lá os dois e verás», lhe disse o amigo.
Foi, mais por condescendência do que por vontade própria, e mal o bispo viu o apresentante, rompeu risonho, de braços abertos: «Ó meu caro F..., por aqui! Que quer? que deseja? Em que lhe posso ser agradável?». Nisto, reparou no padre, que, modesto já de seu natural, ficara um pouco atrás, quase na sombra, e mudando rapidamente de aspecto, com ar sereno de senhor feudal, lhe perguntou em voz alta: «E V. que é que quer daqui?» «Ia para responder – disse o nosso informador – uma destas frases trasmontanas incisivas, cortantes, que, apesar de grosseiras, com laivos obscenos, dizem tudo nos momentos críticos, pelo teor da de António da Silveira no cerco de Diu – “Eu quero que V. se... e vá à... e p’ro…”– voltando-lhe as costas e retirando-me, mas o amigo não deu tempo, explicou quem eu era e o bispo, talvez vendo quão facilmente podia escapar-lhe, mudou de rumo, despachando rapidamente, sem precisar da informação do pároco».
Tão rápidas mudanças virão do carácter ou do ofício, à semelhança do juiz e do comissário de polícia, inclinados a ver naturalmente um criminoso em cada acusado, ou do tal sacerdos, sacerdoti...?
Como esquecer pequenos nadas, que, custando pouco, cativam muito?!
Como não lembrar o gesto do bispo Feijó?!... (Ver tomo II, pág. 121, destas Memórias).
O clero está obrigado a ir aos exercícios espirituais, pelo menos, de três em três anos. Para que violentá-lo a isso de dois em dois, sabendo-se que muitos não conseguem realizar economias para pagar as despesas feitas nos anteriores? Nem os exercícios pelo sistema de Santo Inácio são indispensáveis para a salvação, nem todas as almas se dão bem com eles, pois a algumas – e nem por isso deixam de ser boas –, repugnam-lhe completamente, a nada os movem, não os toleram, achando aliás prazer na leitura de outras obras espirituais, como as de Bernardes, S. Francisco de Sales e outros.
Há anos havia em Bragança seis ou mais padres suspensos por uma ridicularia: um não apresentou atestado do pároco; este não o coadjuvava e aquele não fazia a catequese. Eram dignos, morigerados, categorizados e desempenhavam cargos de relevo social – advogados, professores do liceu e capelães militares aposentados. Para que não prescindir de banais formalismos protocolares, captando por gestos nobres almas que, pelo teor da sua vida, bem o mereciam (nem a classe anda tão abonada de valores mentais que possa jogar de barato os que aparecem) e não podiam prestar serviços exigíveis de modo especial ao cura de almas?
Os dirigentes não se cansam de recomendar ao clero que empregue todos os meios para atrair os fiéis. Ainda há pouco o Boletim da Diocese de Bragança repetia a instância; e não estará nas mesmas condições o superior para atrair os seus irmãos no sacerdócio? Exemplum venit ab alto.
Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança
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