O dia está cinzento, cai uma chuva morrinhenta e as ruas estão vazias. As placas anunciam a chegada a Miranda do Douro, em mirandês, Miranda de l Douro, e são um lembrete imediato da hibridez linguística e cultural da cidade que faz fronteira com Zamora, Espanha. Aqui, o telemóvel confunde-se e vai alternando entre hora portuguesa e hora espanhola, mas quem procura um encontro com a natureza não vem equivocado. Miranda, «cidade-museu» de Trás-os-Montes, sempre manteve o passado bem perto do coração. Dos pauliteiros de Miranda ao burel das capas de honra, passando pela língua, a identidade da região tem saído praticamente ilesa face à passagem do tempo.
Igualmente bem preservada, mas ainda desconhecida por muitos, é a área verde protegida que envolve a cidade, um dos pontos abrangidos pelo território do Parque Natural do Douro Internacional, ou Arribas do Douro, do lado espanhol, correspondentes ao Parque Natural de Castela e Leão. São filas de íngremes rochedos de uma beleza assombrosa, entrecortados pelo Douro serpeante que parte a Península Ibérica em dois, que servem de refúgio a uma grande comunidade de aves como águias, abutres e cegonhas e que, pela primavera, se revestem de cores com a floração de espécies como a giesta, o rosmaninho e a urze.
(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI) |
Passear com um pastor
«É preciso ter sorte para apanhar as espécies no seu habitat natural e poder observá-las», diz Andreia Jorge, convidando o público a fechar os olhos, ao mesmo tempo que é emitido um ruído através de um microfone no convés para chamar as aves. Minutos depois, é devolvida ao barco «uma sinfonia natural que muda todos os dias», salienta a guia. Pelo caminho, observa-se, ainda, a Poça das Lontras, onde estas aproveitam as águas que correm pela ladeira para se refrescar e alimentar. O ponto alto do recorrido é o desembarque num pequeno socalco só acessível por barco. No regresso, há uma prova de vinho do porto à espera. Para terminar a visita, vale a pena espreitar a Douro Valley Shop, loja que vende mel, queijos, vinhos e azeites do vale do Douro.
De volta ao centro da cidade, recarregam-se energias à mesa do Miradouro, um restaurante amplo e acolhedor com serviço familiar. A regionalidade é o chamariz da casa, que tira partido da simplicidade da carta para bem servir. As entradas vão dos calamares à romana aos cogumelos salteados. Nos pratos principais, sobressaem as várias opções de bacalhau, nomeadamente o Bacalhau à Miradouro, uma posta generosa banhada em molho bechamel e servida com batata frita. Na carne, a famosa posta à mirandesa, aqui guarnecida com batata a murro e legumes. O espaço tem ainda uma das mais cobiçadas vistas da cidade, que dá simultaneamente para as arribas e, ao longe, para a Igreja de Miranda do Douro, o maior templo religioso de Trás-os-Montes.
(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI) |
De cajado na mão, Albino conduz o gado encosta abaixo, num caminho de terra batida ladeado por densa vegetação que é um verdadeiro banquete para os animais. Enquanto as cabras sobem aos troncos das árvores à procura da folhagem mais saborosa, o pastor recorda que esta é a sua rotina «desde catraio» e que, em tempos, participou «num filme que foi feito sobre a gente daqui». Refere-se a Trás-os-Montes, documentário ficcionado de António Reis e Margarida Cordeiro, de 1976, que retratava personagens típicas da Terra Fria. Enquanto responde às perguntas dos mais curiosos com um sorriso humilde, leva o grupo a um dos miradouros da aldeia. Ali, mais uma vez, a imensidão da paisagem é inacreditável, o céu espelhado no rio entre os majestosos rochedos.
Poesia mirandesa com vista
A norte de Freixiosa, para lá do centro de Miranda, está a Aldeia Nova. É da Igreja Matriz, edifício quinhentista restaurado em 2015, que arranca o percurso pedestre preparado por Domingos Raposo, professor de História e de Língua e Cultura Mirandesa. Começa por saudar os presentes com «Olá, boa tarde», seguido do «Oulá, buonas tardes» que se pode ouvir na zona, mescla linguística que marca todo o passeio. À medida que se sai da aldeia para descer em direção ao rio, o sol vai alto e o caminho sobe e desce entre os penedos, mas é um verdadeiro privilégio pisar os campos floridos que adornam as arribas.
A primeira paragem do percurso é o miradouro de Penha d’Águia ou Penha Laila, uma formação rochosa que é uma autêntica varanda para o mais estreito ponto da fronteira no nordeste transmontano. São apenas 52 metros de rio que separam Portugal e Espanha, proximidade evidenciada quando, a certa altura, se vêm ao longe pessoas do tamanho de formigas a apreciar a paisagem do lado espanhol. O grande destaque do percurso é, contudo, o miradouro de São João das Arribas. Situado junto à capela medieval inserida no castro da Aldeia Nova, povoação datada da Idade do Ferro, apresenta uma deslumbrante vista panorâmica das Arribas do Douro, tornada ainda mais especial com a leitura de poesia em mirandês a acompanhar.
(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI) |
Se a prioridade for o conforto dentro da cidade, a escolha pode passar pelo hotel e restaurante O Mirandês. Fica a dez minutos a pé do centro histórico de Miranda e tem uma decoração simples que percorre todo o edifício. Os quartos são duplos ou suítes com camas individuais e primam pela comodidade. Caraterística, aliás, realçada pela integração do restaurante que serve almoços e jantares no mesmo edifício. O espaço é conhecido pela suculenta posta à mirandesa, servida com batata frita, arroz e pimento vermelho, e pelo estaladiço bacalhau na brasa, especialmente procurado pelos espanhóis que vivem perto da fronteira. Nas sobremesas, destacam-se as especialidades da casa – torta de laranja e amêndoa. Os clientes podem usufruir ainda de vinhos regionais servidos em jarro.
A «aldeia dos pombais»
Na busca pela natureza do território, há dois desvios importantes a fazer. O primeiro é Atenor, aldeia onde se localiza o Centro de Valorização do Burro de Miranda, sede da Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino. A preservação da espécie é a prioridade, sendo organizadas visitas guiadas ao centro, passeios com burros e sessões de terapia com os animais.
A visita desta manhã está a cargo de Carolina Martin e começa logo à entrada, onde as crias recentes se passeiam. «Os nomes dos burros são dados de acordo com uma letra por ano. Este ano é O», explica, convidando o público a batizar um dos burrinhos. Mas eles são os primeiros a conquistar quem os visita, demorando-se nos afagos recebidos. Ao lado, está a «maternidade dos burros», onde são mantidas as crias e as mães e, a um passo dali, dois estábulos que opõem «os burros que estão de dieta e os que precisam de engordar». O macho não castrado de serviço parece-se com um burro meiguinho que rejubila com a atenção dos visitantes, mas chama-se Cordeiro.
(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI) |
O recorrido termina como começou. No seio das Arribas do Douro, desta feita no cais da Bemposta, em Mogadouro. É daqui que parte o cruzeiro da Naturisnor, um passeio de cerca de duas horas feito ao largo do Douro num barco a céu aberto. Esta caraterística permite, desde logo, um contacto mais próximo e direto com a fauna e flora que habitam as escarpas. Os adeptos de observação de aves podem mover-se livremente pelo barco para identificar espécies como o grifo, o abutre-do-egipto ou a águia-real. Mas esta é uma paisagem que merece ser apreciada a olho nu por todos os amantes da natureza. Aqui e agora, o vasto silêncio apenas interrompido pelo canto das aves e a rara beleza dos penhascos que moldam o rio dão uma sensação de completude para lá da realidade. E, depois de descobertos os pontos secretos deste mapa do tesouro natural, o difícil é voltar.
Maria João Monteiro
(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI)
JN Evasões
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