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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 31 de julho de 2018

Nós Transmontanos, Sefarditas e Marranos - CATARINA HENRIQUES (TORRE DE MONCORVO, 1593 – COIMBRA, 1660)

Catarina Henriques nasceu em Torre de Moncorvo pelo ano de 1593, numa casa da Rua dos Sapateiros, sendo filha de Pedro Henriques Julião e Francisca Vaz. Tal como as suas duas irmãs, aprendeu a ler e escrever, o que era bastante normal entre as mulheres hebreias de Torre de Moncorvo e outras comunidades.

Casou com Manuel Francisco da Mesquita, natural de S. João da Pesqueira. O casal fixou residência “na Rua Nova de Baixo, da Vila Nova do Porto, integrando-se bem na elitista classe mercantil da Invicta, constituída, em grande parte, por gente oriunda de Trás-os-Montes, conforme ressalta da lista de quase uma centena de prisioneiros que a inquisição fez naquela cidade pelo ano de 1658, contando-se entre eles a nossa biografada.
Não sabemos muito bem qual o modo de vida do casal. Adivinhamos que fossem mercadores pois se fala de lotes de baetas recebidos de países do norte, de vendas de pólvora, de mercadorias embarcadas para o Brasil. E também de umas letras não aceites e dívidas difíceis de cobrar, indiciadoras de atividades prestamistas.
Facto é que tinham em casa uma criada cristã-velha, chamada Francisca Gramaxa, um escravo negro, um moço flamengo e um criado vindo da China, que depois que a patroa foi presa, aprendeu a sapateiro e se tornou conhecido no Porto como “o sapateiro de Lisboa”.
Dissemos já que o casal morava em Vila Nova (de Gaia), certamente em uma das “duas moradas de casas, ambas juntas, sitas na Vila Nova do Porto, que de uma banda partem com casas de Inácio de França e de outras com casas de João Garcia, ambos da cidade do Porto, as quais casas houve seu marido, Manuel Francisco da Mesquita, por título de arrecadação de uma dívida em preço de 500 mil réis, pouco mais ou menos”.
Para além disso, tinha “um armazém, sito defronte da porta da travessa de Santa Maria, igreja matriz de Vila Nova do Porto, que é livre e foi feito de novo pelo marido dela declarante, não sabe quanto vale, mas anda alugado aos ingleses”.
 E tinha também “um campo cercado de per si, com uma casa térrea pequena, sito na estrada que vem de Vila Nova do Porto para a ermida de São Roque, o qual campo chamam do Pinheiro, que de uma banda parte com terras de Bento Nunes, já defunto, que vivia de sua fazenda, e da outra banda com Madalena Francisca, que houve o marido dela declarante por arrematação de Frutuoso de Faria”. 
Para além do mais, estas notas do inventário dos bens de Catarina, terão algum interesse para o estudo da evolução urbana da Vila Nova e talvez haja registos notariais que possam ser investigados com vista à identificação do armazém construído por Francisco Mesquita que já então trazia alugado aos ingleses.
O casal teve 5 filhos, mas só uma filha, chamada Francisca Vaz, como a avó materna, chegou à maioridade, vindo a casar com António Mendes de Almeida, (1) mercador, natural de Trancoso, com casa comercial estabelecida no Porto, filho do médico Belchior Mendes. Filha e genro moravam com Catarina Henriques.
Entre os muitos familiares do santo ofício existentes no Porto havia então um que se chamava Domingos Rodrigues Chaves. Obtivera carta de familiar em março de 1656 e, desejoso de mostrar serviço, em 24 de abril de 1657, escreveu para Coimbra “advertindo que hoje são nesta cidade do Porto tanta gente da nação que são mais que os cristãos-velhos” e informando que corriam rumores de práticas judaicas, nomeadamente em casa de Catarina Henriques. Ouvido oficialmente sobre o assunto, em 7.5.657, pelo comissário Manuel Seabra e Sousa, a mando dos inquisidores, concretizou tais rumores:
- Disse que estando conversando algumas vezes com Manuel Pereira, mercador, morador no Terreiro, o dito Manuel Pereira, em presença de sua mulher, Margarida Cardosa, lhe dissera que ouvira dizer a uma criada que fora de Manuel Francisco da Mesquita, defunto, o qual é tido e havido por cristão-novo e sua mulher e sua filha, que faziam cerimónias que lhe pareciam judaicas (…) e que a dita criada referia que Manuel Francisco da Mesquita, sua mulher e filha se despiam algumas vezes nus, sem camisas e punham os braços em cruz e assim estavam orando algum espaço, o que lhe parecia mal… (2)
Estranha coincidência! No mesmo dia, no convento de S. Domingos, no Porto, uma escrava forra de Ângela Cardosa, apresentou-se perante o padre superior denunciando como judaizantes e que faziam jejuns judaicos um conjunto de 18 pessoas das relações da sua patroa, entre elas Catarina Henriques.
De seguida, foi um arraso: dezenas de pessoas foram presas e levadas para a inquisição de Coimbra, entre elas Catarina e Francisca, sua filha. A generalidade desses prisioneiros logo confessaram suas culpas e, pelo menos 33 delas, lançaram denúncias de judaísmo sobre Catarina Henriques, muitas deles dizendo que era em sua casa que se reuniam para fazer cerimónias e jejuns judaicos. António Fernandes, por exemplo, acrescentou que Catarina Henriques, na páscoa, cozia bolos de pão asmo e os mandava a casa de alguns amigos e correligionários, “por guarda da lei de Moisés”. Nicolau de Oliveira, natural de Madrid, morador no Porto, filho de Luís Oliveira, natural de Vila Flor testemunhou o seguinte:
- Disse que, haverá 5 anos, em Vila Nova, no Porto, em um quintal de Catarina Henriques, cristã-nova de Torre de Moncorvo e moradora no Porto, se achou com ela e com Francisco Brandão, de Torre de Moncorvo, cristão-novo, mercador, não sabe onde era morador porque naquele tempo tinha sido reconciliado no auto da fé de Coimbra, por ocasião de o dito Francisco Brandão pedir a Catarina Henriques que deixasse ficar em sua companhia uma filha sua, enquanto ele dali passava a Castela e, estando juntos, se declararam.
Metida no cárcere, em companhia de Maria Cardosa e Maria Ledesma, suas conhecidas e amigas do Porto, as três mulheres meteram-se ali a fazer jejuns judaicos, certamente não imaginando que eram vigiadas.
Também Catarina confessou que judaizava e que fora ensinada 20 anos atrás, no Porto, por sua comadre Ana Gomes de Morais, que depois fora para Madrid que, entre outras, lhe ensinou a seguinte oração, que devia rezar no primeiro dia de lua nova de cada mês: 
- Lua nova valerosa / pela pubeira que tendes / me alcançai de Deus / tal e tal coisa que lhe peço.
O que mais impressiona no processo é a descrição dos gestos de amor de Catarina com o marido. A criada que a denunciou disse que quando ele chegava a casa, a mulher vinha para ele “salmodiando, dizendo: meu escolhido na limpeza, meu limpo e outros nomes”. E quando saía, rezava ao Deus do céu, dizendo: “guardai-mo, trazei-mo e livrai-mo”. A própria filha “chamava a dita criada e lhe mostrava o modo como seu pai estava com sua mãe”. 
Não vamos falar dos interrogatórios e “exames da crença” a que foi submetida pelos inquisidores, dizendo ela que rezava orações cristãs em honra da lei de Moisés. Aliás, era mesmo dentro da igreja cristã que ela e outras se declaravam judias. Muitos outros factos poderíamos apontar em prova da sua forma de viver marrana. Por outro lado, as contraditas que apresentou revelam um quadro bem colorido da sociedade mercantil do Porto naquele tempo.
Ao fim de quase dois anos de cárcere, em 16.3.1660, foi-lhe comunicado que estava condenada a ser relaxada. Vomitou confissões, nomeadamente os muitos jejuns judaicos feitos pela alma de seu marido, falecido por janeiro de 1656. Tais confissões não satisfizeram os inquisidores que, em 22 de maio seguinte, confirmaram a sentença de morte, nos seguintes termos:
- E depois das confissões, a sentença não foi alterada, porque a ré não denunciou a sua filha Francisca Vaz, nem declarou os jejuns que fez no cárcere, que eram os principais fundamentos do dito assento.
Saberia a Catarina que a filha falecera em 12.11.1658, poucos meses depois de dar entrada nas masmorras da inquisição? A propósito, refira-se que o seu processo só foi despachado 25 anos depois, no auto da fé de 21.2.1683! Veja-se o teor da sentença: 
- Confisco de bens, absolvida na forma de direito, sepultura eclesiástica, ofertar a Deus por sua alma os sacrifícios e sufrágios da igreja. (3)

Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 3645, de António Mendes de Almeida, apresentado em 1667, casado em segundas núpcias com Ana Mendes de Brito.
2-IDEM, pº 7575, de Catarina Henriques.
3-IDEM, pº 1860, de Francisca Vaz, falecida aos 23 anos de idade.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com

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