Ilustração: Susa Monteiro |
Um oficial cubano que esteve em Angola depois de nós disse-me uma tarde que nunca viu soldados tão corajosos como os portugueses e eu fiquei desvanecido. Como não ficar? Sou daqui, e vários inquéritos internacionais provam que nenhum outro povo do mundo tem mais amor à sua Pátria do que nós. Claro que podemos dizer mal da nossa terra mas não toleramos que um estrangeiro o faça. Uma ocasião estava em França, para receber uma condecoração do Presidente da República deles, um alto funcionário disse-me
– Você é português? Tem piada. A minha porteira também.
E pedi a Mitterrand para o pôr na rua se não queria que me fosse embora. Mitterrand falou ao Ministro da Cultura, Jack Lang, Jack Lang chamou o sujeito à parte e ele saiu com um olhar sangrento na minha direção enquanto eu lhe chamava filho da puta. Mas pediram-me desculpa, vá lá, e aceitei o penduricalho. Tive outras pequenas vinganças assim, por exemplo quando me deram, em Viena, o prémio europeu de Literatura e me vi, à entrada da Chancelaria, cercado de portugueses que lá trabalhavam, alguns a chorarem de emoção porque era a primeira vez que a nossa bandeira estava no mastro da Chancelaria. Ou quando fui convidado de honra do Festival de Salzburgo. Ou etc., não vou começar para aqui com gabarolices. O que me interessa dizer é o imenso amor que temos pelas nossas coisas. Carlos Lopes, por exemplo, ao ganhar a Maratona nos Estados Unidos, fez- me chorar de emoção. Gosto tanto da minha Terra, acho, do coração, que não há ninguém como nós. Eu conheci os portugueses na guerra, por exemplo. Foram extraordinários de coragem, de generosidade, de camaradagem. Na companhia onde estive mais tempo, dos quatro oficiais atiradores dois deles eram rapazes
(rapazes porque andávamos todos na casa dos vinte)
excepcionais de coragem e valor, para além de seu grande carácter. O Zé Jorge não tinha medo de nada. O Zé Luís era um homem superior. Ambos eram modestos, alegres apesar da nossa situação horrível, e de uma bondade imensa. Os soldados adoravam-nos, eu adorava-os. Fizeram actos de excepcional valor, com uma modéstia exemplar. Ambos morreram depois, ambos me fazem muita falta. Meus camaradas, meus irmãos. Olharam sempre a morte nos olhos. O terceiro era assim assim, o quarto um cobarde absoluto, quando havia um ataque metia-se debaixo da cama a chorar. Deu um tiro num GE que não obedeceu a uma ordem sua, o camelo. Eu pensava que a expressão borrar -se de medo fosse uma figura de retórica: não era. As castanhas começavam a cair e borrava-se literalmente de medo. E forçava miúdas de onze ou doze anos a terem sexo com ele. Quando havia problemas escrevia ao pai, que tinha influências no Exército e na Pide. Um cagado total que desprezei sempre e impediu um soldado heróico, o Cabo Sota, apontador de metralhadora que desfez, sozinho, mais de um ataque, mais de uma emboscada, de receber a cruz de guerra que queria para ele, o estafermo. Ninguém o respeitava apesar do seu camuflado de paraquedista, ele que nunca saltou de paraquedas nenhum, e do emblema do MPLA que encontrei na picada, depois de um ataque, e lhe ofereci por ironia. Usava-o ao peito e a gente ria-se. Nenhum subordinado o levava a sério. Mentia o tempo inteiro, era um merdas, até os soldados lhe ralhavam. Lembro-me de um ataque em que ele se enfiou debaixo da Mercedes, a gemer, e tiraram-no de lá a pontapé, cheio de lágrimas e merda. Morreu depois de virmos, sei lá de quê. Era um verme pomposo, uma criatura que me dava vergonha. Nos destacamentos que comandou reinava a confusão e a anarquia. Se dependesse de mim despromovia-o, arrancava-lhe os galões e punha-o a desentupir as latrinas, cheio de cócó até ao pescoço. Não conseguia ter pena dele, sentia só desprezo. Nunca vi um oficial tão indigno e tão reles. Havia um outro cobarde, um soldado, que antes de uma saída vinha pôr-se de joelhos diante de mim, a tentar beijar-me a mão enquanto choramingava
– Não me mande para a mata que tenho tanto medo
ou
– Eu não aguento eu não aguento
a rastejar-me aos pés. Os soldados riam-se, divertidos. E lá o deixava ficar, todo molhado de ranho, não por pena, por desprezo. Ainda deve andar por aí, esse, em paz com a sua cobardia. E ao falar nele, agora, lembrei-me de um outro soldado morto que mandei deitar na minha cama
– Ele está só a dormir
e impedi quanto pude que o metessem num caixão. Cada um de nós tinha já escolhido o dele. O meu voltou vazio e eu, mais ou menos vivo, a olhá-lo. Devia ter ficado com essa caixa para mais cedo ou mais tarde me despejarem no pau, é uma questão de tempo. Que nunca será muito. Raios partam os vinte e sete meses que andei a fintá-lo. Zé Luís, Zé Jorge: esperem mais um bocadinho que já vou.
António Lobo Antunes
Revista Visão
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