terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Um tempo passado, um tempo presente e um tempo que virá – 3ª PARTE

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


Rua Alexandre Herculano.

Tenho nas minhas crónicas relembrado partes, secções dessa rua, pois nesse tempo tão lembrado, eu fazia a distinção da concentração da atividade desta via por secções , dada a descontinuidade que havia entre a zona até ao Pousa, depois menos atividade até à entrada para o Jardim e novamente até às Grades do Loreto e menos intensamente até à Moagem do Afonso e nada de comercial até acabar na Flor da Ponte.
Eu fazia a entrada neste núcleo vibrante da Cidade pela Rua do Norte ou pela 5 de Outubro que eram as artérias de escape para desaguarmos na cidade.
Assim entrados na 5 de Outubro que chamávamos ainda Tombeirinho, na esquina da direita estava a Taberna da Snra Branca e Senhor Amador, pais do Domingos e do Duarte. No lado oposto a Taberna da Cerdeira, onde estanciava o Padre Domingos de Rabal, estas balizavam o nosso território que na direção do N/NE era distinto do S/SE, onde começavam o que nós designávamos por "comércios".
O termo loja, se fazia parte do nosso léxico, era para designar onde se criava o reco. Chegava a haver debate acalorado para justificar que o reclame que o Arina mandou pintar por cima das portas do "comércio" era português de lei ou uma mariquice qualquer que ele houvesse importado de Lisboa. Lia-se em letras de tamanho considerável e de simetria perfeita: LOJA DO POVO! 
A gramática e a sintaxe da malta mais pequena não era por aí além e o despique não mostrava maneira de terminar. Creio que neste tempo atual vai finalmente terminar o imbróglio, pois o Zé Leão vendeu a casa e já lá vi obra grossa.
Regressemos ao princípio, com a passagem pelo Depósito de Farinhas onde pontuava o Snr Francisco, pai do Moisés e um pouco mais abaixo era o Armazém do Domingos Lopes onde trabalhava o Arlindo Barradas que morava em S. Lourenço, seguia-se a Farmácia Soeiro (da Preta) que é para mim um lugar mítico, pois fazia parte avultada das minhas congeminações, pois eu fui dos poucos garotos da Caleja a quem a D. Aurora permitia a entrada na parte interdita que começava exatamente na porta que franqueava a entrada dela e dos filhos e impedia literalmente a entrada a "Pessoas estranhas ao serviço". Ora com a condescendência da D. Aurora algumas vezes assisti ao encher das caixinhas de Deadermina perfumada e ao preparo dos pacotinhos de Bicarbonato de Sódio, que ela com destreza fazia com papel costaneira.
Daí até a minha imaginação voar até à Suiça onde, tinha eu lido algures, Paracelso fora um ilustre boticário que era o nome que davam aos farmacêuticos naquele tempo e concluir que a D. Aurora havia estudado na Suiça.
A tendência de rumo era fletir para a esquerda e passar em frente ao Domingos Lopes onde já depois de eu trabalhar o Snr. Domingos Cepeda me disse que o meu patrão se chamava Zacarias. Havia também o Snr. Domingos Lopes que de terno Príncipe de Gales e botas castanhas, bem engraxadas, cobertas com polainitos cor de café com leite, passeava de cá para lá em frente ao balcão, ou se sentava num sofá no escritório onde conversava com o Snr Marianinho, pai da D. Olema. Na casa seguinte era o "comércio "do Delfim Conde, que era do mesmo modelo arquitetónico da do Valentim Velasco e da do Liberal. Balcão das escadas até à parede do lado oposto à escada e ao fecho, tapado até ao teto com trapas que formavam um corredor de acesso à habitação que era por cima como antigamente muito usual. (iving above the shop). Havia dois filhos, o mais velho que recordo só como Medeiros e outro da minha idade que se chama Delfim. Já estive com ele depois de regressar de Inglaterra. 
Omito o Faria & Rodrigues que ainda não existia.
Mais à frente era a taberna da Snra Mariana, mãe da minha estagiária, Dárida. Tinha um guarda loiça na sala que se via da rua, sempre enfeitado com paninhos de renda alvíssimos e dentro em prateleiras loiça de barro esmaltado que se comprava nas feiras, de tom azul ou verde, eram um regalo vê-la e juntamente com os paninhos tinham um encanto que me vem à memória em alguns museus no litoral-centro do país. Fleti para a esquerda instintivamente, pois era assim que acontecia quase sempre, mas vou regressar atrás e passar em frente ao Armeiro mais conhecido da Cidade, o Senhor Manuel Dias Parente, que é (era) pai do João. Armas, canas de pesca, carretos, cacifos, anzóis, chumbos e cartuchos, galochas e chapéus de oleado, calças de ir às trutas, bóias e sedielas numa semi desarrumação que a esposa combatia literalmente todos os dias. O Snr Manuel era homem à moda antiga e eu admirava-o por nunca conseguir saber se estava bem, se mal disposto.
A seguir era a Ourivesaria Barros. Gente fina no ofício, de família cristã-nova, sabiam fazer de tudo! Ourives, mecânicos, violeiros, relojoeiros e tocadores de guitarra portuguesa, que nesse tempo eram representantes da marca de relógios suíços OMEGA. Da Senhora do balcão da qual guardo imagem nítida, já não recordo o nome, mas o sorriso guardá-lo-ei sempre pois foram muitas as vezes que mo dirigiu. 
Próximas ficavam as bombas da Móbil. Nesse tempo era o gasolineiro um homem pequeno, já entradote e que era Senhor de uma dignidade diferente. Não me recordo do seu nome, mas creio, era Manuel. 
À tardinha antes do fecho, vinha o Domingos Cepeda ou mais tarde o Zé Dias, com um bloco e caneta, entravam para o "coté" detrás das bombas e aí faziam contas. Dentro de uma pasta de sola, que devia ter sido feita com o couro do Boi Ápis metiam as notas de conto, quinhentos, cem, cinquenta e vinte, o Cepeda depois de colocar a dita pasta junto ao sovaco e depois de olhar atentamente e descartado a hipótese de abordagem indesejada iniciava o regresso à base. As moedas ficava o gasolineiro com elas para trocos. 
Havia sempre gente atarefada a usar as bombas que juntamente com as do Guilherme, João Miguel e Lopes e Pires abasteciam o mundo ainda pouco motorizado de Bragança. 
O lado direito da 5 de Outubro está revisitado embora eu tenha mais estórias no baú e omita aqui os moradores mas não resisto a mencionar a figura avantajada e simpática do Senhor José Leão, de sua esposa e filho e a presença sempre diligente das "criadas" Laura e tia Marquinhas que acompanharam a família por décadas não sabendo eu o desfecho final destas mulheres que eu sentia como pré destinadas à tarefa de amenizarem as vidas dos mais distintos. 
Na casa estreitinha que faz esquina juntamente com a Relojoaria Barros residia nesse tempo o Snr Modesto da Singer. Figura incontornável na Bragança de antes de 70 era o responsável pela representação da Singer, máquinas de costura, que teve papel relevante na economia da região, pois havia nesse tempo grande quantidade de senhoras que apreendiam a costurar com a ajuda desta casa e contribuíram para a dignificação do seu estatuto e consequentemente da economia da região Bragançana. 
Vai longa a crónica e ainda estamos no princípio. Vou terminar as memórias da Alexandre Herculano à qual minha mãe chamava de Fora de Portas e prometo voltar breve ao assunto que pelos vistos também agrada a mais da minha gente.




Londres 08/dezembro/2019
A. O. dos Santos
(Bombadas)

1 comentário:

  1. Interessantíssimo.
    É puro encontro casual; mas muito agradável.
    Recreava-me com o termo costaneira.
    Aproveito para anunciar que, em breve, vou apresentar "Os Morgados de Sortes". Um estudo genealógico dos Freires, Pires, Afonsos, Fernandes, que, desde os Séc. XVII, viveram, por Sortes, Vidoedo, Lanção, Zoio.
    Muito Gosto.

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