(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Pequena e leve como o sopro das manhãs em dias de outono, avó Nacinda era maior do que a própria aldeia onde nascera e vivera. Com as mãos enrugadas pelos dedos da idade, os seus passos segredavam histórias que só ela compreendia. E nunca se conhecera alguém que lhe tivesse visitado as lágrimas sem sua permissão.
Habitavam nela a força e a sabedoria dos que alcançam o mundo inteiro como se este não fosse maior do que uma gota de pó. Os olhos cheios de uma luz muito antiga, lembravam os sorrisos das crianças nascidas em noites claras de lua grande. Brilhavam como dois astros prontos a iluminar trilhos que mais ninguém via.
Entretinha os dias a ensinar aos vivos os compassos da dança do tempo. Falava devagar, num riso quebrado pelos dentes dourados que ainda não tinham morrido na boca engelhada. Quem escutava, atento, avó Nacinda, sabia que o firmamento crescera dentro dela.
E quem mais ouvia era Eliseu, no seu corpo miúdo e curioso, braços finos e voz contida. Guloso de achados invisíveis, espiava histórias proibidas de contar em voz alta. Havia nele a paciência silenciosa do correr das águas, que encantava avó Nacinda.
Eliseu chegou nesse dia, gracioso e ousado, pés descalços sobre a terra seca e uma pergunta de pássaro alerta, quando procura decifrar o sítio certo das nuvens para abrir asas pela primeira vez. Procurava ajuda da avó Nacinda, guardiã de tantos encantos.
— Avó Nacinda, o que é que vive dentro de um escritor?
Desprevenida, a velha senhora buliu de mansinho o ar morno da tarde, com o dedo espetado, como se tocasse as cinzas de uma criatura oculta. Aquela criança tinha fome de estranhos saberes!
— Dentro de um escritor moram rios que desaguam onde o coração manda, meu menino. – descobriu ela, desembaraçada, de olhar aberto e lábios que vertem ternura em pele alheia.
O silêncio pousou entre os dois…
— E não se afogam nesses rios, os escritores? — quis entender, surpreso, o rapazinho.
— Oh! Há esse perigo, sim! Mas os escritores são como peixes que nunca se deixam prender na rede: esquivam-se dela… dentro da alma das palavras. — explicou avó Nacinda, solícita.
— E fogem para o mar, então… — suspeitou Eliseu, apreensivo, a adivinhar a confirmação.
— Não... Fogem para o infinito. E ali, escondidos, eles dão voz às pedras e ensinam o vento a cantar. Dentro deles chovem muitas línguas. É por isso que conseguem vestir o silêncio de som sempre que inventam essa fala que faz desaparecer a solidão dos homens.
Zelosa nas respostas, avó Nacinda era entendida nos mistérios da vida. Mas Eliseu ficou calado, por instantes, a morder a pergunta que queria sair.
— Parecem peixes que respiram fora da água… Isso não cansa, avó? — inquiriu, por fim.
— É uma canseira doce, boa, meu filho! — assegurou ela.
O menino queria acreditar, mas a dúvida escorregava-lhe dos olhos pequeninos, pescadores afoitos de horizontes.
— Então, avó Nacinda, escrever é o quê? — Eliseu quis saber mais. Guardava em si farta sede de respostas.
Ela devolveu prontamente, como se areias celestes tivessem dado vida nova ao seu espírito desarmado.
— Escrever é pôr o mundo a sonhar.
Eliseu mostrou-se satisfeito. Sorriu, contente. Mas, entretanto, ainda arriscou:
— E se um escritor se cala, avó?
Difícil de esclarecer. Parecia que dentro da cabecinha daquela criança morava gente desassossegada, desejosa de juntar letras para aprender a ler!
Ajeitou o lenço na testa e deixou o olhar viajar para longe. Demorou-se. Eliseu, vigilante mas despreocupado, sabia que aquele silêncio tinha vida. Ela devia querer colher a flor perfeita, matutou.
Avó Nacinda respirou profundamente, como se tivesse ido buscar a resposta a um jardim secreto. E disse baixinho, olhos arrebitados:
— Quando um escritor se cala… leva com ele pedaços bonitos da humanidade que ninguém mais consegue despertar. E é aí que o futuro começa a nascer mudo.
Eliseu pensou. Mãos estendidas sobre o colo inquieto e o pensamento desarrumado, em linha reta, sem ponto final, durante aquela pausa longa.
— Quando um escritor se cala não é apenas ele quem se perde. É isso, avó Nacinda? — questionou finalmente, prudente, com a razão a pedir espaço para a descoberta.
— Sim, Eliseu. É que um escritor salva. É ele quem mantém os homens a respirar dentro dos sonhos. Coisa simples, mas imensa, da vida. — confidenciou. — Porque o homem não é só terra, água e céu. Todos somos um livro aberto de páginas brancas que pulsa, escondido, entre as mãos do mundo, em busca de esperança.
Avó Nacinda mostrou o seu sorriso velho que sabia mais do amanhã do que do ontem.
E nesse dia, Eliseu percebeu que também ele era verso vivo a vibrar no coração do universo, à espera de ser tecido pelas mãos brilhantes de um escritor.
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.


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