“Corre no povo este diálogo;
– Vais para o açougue carneiro?
– Que remédio – responde ele”
[in Tomo XI, das Memórias do Abade de Baçal]
A consulta dos livros de receitas e despesas da Fazenda Real, das casas senhoriais, dos conventos e mosteiros demonstram quão estimada era a carne de carneiro nos tempos medievais e até ao século XIX.
O Mosteiro de Castro de Avelãs possuía rebanhos de gado ovino e caprino, nas Chancelarias de D. Afonso IV encontramos referências a carneiros como pagamento de foros em terras do Barroso, outros documentos revelam a sua importância em termos económicos: fornecia estrume para enriquecer as terras carentes de húmus, e lã (que era transaccionada nas feiras portuguesas e castelhanas), carne e derivados. Nessas feiras, (a feira anual de Bragança outorgada por D. Afonso III em 1272, durava quinze dias), vendiam-se carneiros, ovelhas, borregos, cordeiros, cabras, cabritos, leitões, caça de pena e pêlo, ainda aves de capoeira e ovos, enquanto produtos comestíveis de origem animal.
No importante porto seco de Bragança realizavam-se contínuos e importantes negócios de panos, igualmente de venda de couros de carneiro essenciais ao fabrico de sapatos, luvas e peças de vestuário.
Os apêndices davam ensejo a os artesãos fazerem botões, agulhas e outros objectos.
Na Antiguidade Clássica numerosos testemunhos evidenciam o valor simbólico, nutritivo e económico do carneiro, no formidável marco da cultura ocidental que é a Odisseia, o rapsodo Homero empolga-nos ao descrever a astúcia de Ulisses a enganar o Ciclope recorrendo a um ardil envolvendo carneiros. Ulisses o grande herói narra:” O Ciclope tinha carneiros bem alimentados, de espessa lã, animais grandes e belos, pele escura da cor das violetas. Estes eu atei uns aos outros sem dizer nada com os vimes em que o Ciclope, esse monstro sem lei alguma dormia. Juntei três carneiros: o do meio carregava um homem, mas os outros dois do lado de fora protegiam os companheiros. Três ovelhas levavam um homem. Mas pela minha parte – pois o carneiro pareceu-me melhor agarrei-me às costas dele e enrosquei-me debaixo da lanzuda barriga, todo torcido, mas agarrado com as mãos à lã admirável, com o coração cheio de paciência. E assim esperámos, gemendo, pela Aurora divina”. O astuto Ulisses e os companheiros conseguiram fugir ao cruel Ciclope, levaram as ovelhas e os carneiros, um deles foi oferecido em sacrifício a Zeus, “queimando-lhe as coxas” e, “todo o dia, até ao pôr do sol, nos banqueteámos, sentados a saborear a carne abundante e o doce vinho.” O carneiro assado permitiu lauto banquete a Ulisses, o animal encarnava o deus fálico no entender de muitos povos, Amon deus-carneiro no Egipto, animal sacrificial em alguns mitos, caso do mito grego do Tosão de Ouro.
O multifacetado Aristóteles em a História dos Animais assinala que os carneiros preferem cobrir “as fêmeas mais velhas primeiro e não perseguem as mais novas”, atingem os quinze anos de idade, sendo exímios guias dos rebanhos. O notável filósofo acrescenta que as crias nascem brancas ou negras conforme as veias existentes por debaixo da língua dos carneiros.
O carneiro Áries principia o ano zodiacal em Março, dando início aos festivais de expiação em Roma. As muralhas de Jericó ruíram quando Josué soprou um corno de carneiro, ou não fosse para os hebreus um meio de destruição da antiga eternidade e de início da nova era.
As crenças nos poderes viris do carneiro emanadas da Antiguidade continuaram a vingar na Idade-Média, por essa razão a carne, e as restantes partes caso dos testículos, cornos e cascos entravam na composição de filtros de fertilidade.
A produção de carneiros permitiu a vulgarização do seu consumo, nenhum interdito pesava ou pesa sobre a sua carne daí ser consumida por muçulmanos, judeus e cristãos, entendendo-se na época medieval ser mais tenra e digestiva, às ovelhas estava reservada a função de procriarem e fornecerem o sempre apreciado leite, a lã e o estrume.
O carneiro nas grandes festas da nobreza surgia em primeiro plano. Na crónica sobre D. João II, Garcia de Resende ao descrever o banquete do casamento de D. Afonso com D. Isabel filha dos reis católicos alude a “carneiros assados inteiros com os cornos dourados”, noutros festins era considerado imprescindível e, em grandes quantidades. Em 1490, para o banquete comemorativo das bodas principescas realizado em Évora, as autoridades locais contribuíram com 120 carneiros, num auto-de-fé (de triste memória) ocorrido em 15 de Dezembro de 1647, a rainha ofereceu um jantar às damas onde foram consumidos 12 arráteis de carne de carneiro. Nesse tempo a alimentação das gentes assentava no consumo de cereais, legumes, carne de carneiro, de porco, aves de capoeira e de vinho. A carne de carneiro além de comum derivado da existência de grande número de rebanhos, também estava classificada como a mais nutritiva, sendo servida assada, cozida, estufada, picada, recheada, na forma de alfitete (pastelão), gigote (guisado com manteiga e caldo), ensopado e em almôndegas. O acompanhamento ficava-se pelas hortaliças e arroz de quando em vez.
A partir do século XIX o carneiro foi desaparecendo da mesa dos afortunados, fossem membros do alto clero, da nobreza ou da burguesia em ascensão, daí que o seu custo ficasse inferior ao da vaca, entre 1844 e 1850, no mercado do Porto o preço do arrátel da sua carne variava entre os 40 e 60 réis, o da vaca ascendia aos 80 a 90 réis.
Enquanto que no primeiro receituário português A Arte de Cozinha (1680) de Domingos Rodrigues, o carneiro surge em vinte e quatro receitas, no Arte de Cozinha (1785) do também cozinheiro real Lucas Rigaud fica-se pelas dezoito, no Arte de Cosinheiro e do Copeiro (1841), aparece em doze receitas, e o O Cosinheiro Popular (1890) principia dizendo: “É o carneiro de pouca estimação, e nas mezas grandes pouco usado em Portugal”, mas consagra-lhe dezassete receitas, ou não fosse popular a obra em causa.
Como que a desmentir vigorosamente o depreciativo O Cosinheiro Popular, o ainda actual Cozinheiro dos Cozinheiros, (1870) compilado por Paulo Plantier, anota sessenta receitas relativas ao carneiro algumas delas inerentes à denominada alta cozinha, e o Manual Completo do Cozinheiro (a 17.ª edição saiu em 1909), incorpora dezassete.
No seu Arte de Cozinha (1876), João da Mata insere seis receitas, uma delas, o carneiro com batatas, muito popular em terras de Bragança, enquanto o Tratado Completo de Cozinha e Copa (1904) de Carlos Bento da Maia enuncia nove, além de na página trinta e quatro aduzir as qualidades e características da sua carne.
Nas isoladas terras de Bragança o carneiro só principiou a ser substituído nas comezainas festivas bem dentro do século XX, e porque vem ao talho de foice lembro que o Abade de Baçal no Tomo XI, das Memórias recorda os dez facetos mandamentos dos padres, e o terceiro é: guardar a vaca e não deixar o carneiro, demonstrando lapidarmente o apreço pela carne de carneiro no modelo alimentar das gentes transmontanas, principalmente nos dias de grandes convivialidades.
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.
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