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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Estrutura da Paisagem Agrária e dos Sistemas de Agricultura de Bragança no final do século XIX e início do século XX

Salvas as devidas exceções, as montanhas portuguesas são constituídas por fragmentos de uma peneplanície primitiva erguida no Pleistocénico, dissecada por rios encaixados em vales mais ou menos profundos. 
Esta condição fisiográfica promoveu a diferenciação de dois espaços de distinto uso agrário, desde sempre definidores da paisagem agrária de montanha. O ·monte', o mais exterior destes espaços, é constituído pelas cabeceiras das linhas de água, por superfícies convexas e pelos afloramentos rochosos. A maior parte do monte é baldio, e os seus solos são os mais delgados, lixiviados, erodidos, distantes e acidentados do termo.
Na Terra Fria bragançana, era o habítat de alguma carvalheira, sardão ou carrasco, e dos mosaicos de matos pirófilos, isto é, adaptados ao fogo, de urzes (os urzais) com pastagens pobres dominadas por gramíneas herbáceas vivazes, próprias de solos ácidos, oligotróficos pobres em fósforo.
Nos sistemas de agricultura pré-industriais, o monte estava, maioritariamente, submetido a um regime de pastoreio extensivo: "os cumes das serras, as partes mais pobres, onde a rocha aflora, lá onde o terreno pedregoso e a pobre vegetação rasteira são os domínios da cabra e dos pobres ... toda a imensidão de incultos que dá uma erva grosseira e pouco abundante. Aí, tem o gado miúdo o seu pascigo permanente".
As plantas lenhosas que resistiam eram cortadas ou arrancadas para lenha ou, eventualmente, sujeitas a fogos de pequena extensão e severidade. A agricultura cerealífera em terras de monte era, por enquanto, residual.
O segundo espaço, formado pelos vales, coluviões de meia encosta e depressões planálticas, fruto da sua posição fisiográfica, acumulava a água, nutrientes e sedimentos finos exportados do monte. Neste espaço coexistiam três tipos de uso agrícola. Na vizinhança das casas situavam-se a horta e outros usos intensivos da terra. Seguia-se a terra de cereal. regionalmente designada por terra de faceira, de campo ou de pão, aqui e ali interrompida por algum souto de castanho. Os prados higrófilos meso-eutróficos - os lameiros - intercetavam múltiplos tipos de uso da terra. Os termos das aldeias seguiam todos o mesmo modelo de uso do território e de paisagem: uma ilha de fertilidade, contraída em trono da aldeia, povoada e cultivada, envolvida por uma imensidão de terra maninha.
Até meados do século XX, o sistema de agricultura da Terra Fria nordestina enquadra-se no que Mazoyer & amp; Roudart designam por agricultura do pousio, tração animal e arado. Tirando a entrada de algumas plantas cultivadas (batata, feijão e as abóboras. importadas das Américas) e a substituição de outras (trigos vestidos pelo centeio).
as características básicas deste sistema de agricultura estavam estabelecidas. como refere Grigg, nos primeiros anos da era cristã na região Mediterrânica. Repetiam-se os três espaços fundamentais dos sistemas clássicos de agricultura mediterrânica: o saltus (monte mais lameiros), o ager (faceira) e a já muito escassa silva (floresta).
A área do hortus (horta) era exígua face à dimensão dos termos, embora fosse indispensável na produção de alimentos e na ciclagem de nutrientes. Na Terra Fria bragançana, a moderação climática apertada pela altitude limita o cultivo da vinha e da oliveira aos terrenos mais soalheiros. Em contrapartida ganham importância o castanheiro e os lameiros e, com este últimos. os bovinos. O sistema centrava-se na cultura dos cereais. embora. como se referiu, a maior parte do espaço estivesse sujeito a uso pastoriL A instrumentação agrícola era reduzida e simples, sem adições à descrita para a agricultura romana por Marcone.
O centeio de inverno era a grande cultura frumentária na região de Bragança no início do século XX. Mogo, em 1932, calcula que em 1920 o consumo médio por habitante no Distrito de Bragança de cereal rondava os 177 kg/ano e que a produção média anual (24 000 t) não chegava para cobrir as necessidades regionais (25 630 t) - no período em apreço, estima-se que o pão representava 80 a 90% das calorias ingeridas pelas classes trabalhadoras rurais portuguesas.
Se cultivado de primavera. quando os outonos eram demasiado chuvosos para semear o centeio. este levava o epíteto de serõdio.
O trigo de inverno. e ainda menos o trigo serôdio ou tremez - hoje quase extinto. cultivado por um punhado de agricultores para o fabrico de farinhas para folar e pães especiais de consumo local, tinham pouco relevo: "O consumo de trigo em toda a região é muito pequeno; pode dizer-se que só em dias de festa ele aparece na mesa dos lavradores, pelo que se pode chamar 'o pão das festas"', escreveu Lourenço. em 1932.
O centeio de inverno ocupava dois tipos de terras: as 'terras de monte' e. sobretudo, as faceiras. As 'terras de monte', como se depreende do termo, localizadas para lá das faceiras. no monte. estavam entregues a longos pousios revestidos a matos. O pousio prolongava-se por seis. oito, dez anos. segundo Barroso. com uma média de oito anos para Mago. As terras de monte destinadas ao centeio eram roçadas manualmente no ano anterior à sementeira.
Chegado o verão, procedia-se à queima dos resíduos. A sementeira era feita no solo cru e as sementes enterradas com arado ou à enxada. Por vezes, o mato era arrancado a arado. Nas 'roçadas' ou 'cavadas'- assim se designava este método de cultivo - a fertilização da terra cingia-se às cinzas e aos nutrientes disponibilizados pela oxidação da matéria orgânica do solo acumulada durante o pousio ou, nas terras virgens, herdada da pastagem pobre. No período em análise, em que a expansão do cereal monte adentro se estava a iniciar, e ainda não eram usados adubos. a produção média do centeio nas terras marginais rondava as quatro ou cinco sementes'.
Festa de São Gonçalo em Outeiro,
onde a importãncia do pão está ainda bem patenteada
As terras de faceira estavam, geralmente, submetidas a uma rotação bienal. Para o efeito, as povoações dispunham do "termo ou ares, que lhes corresponde, dividido em apenas duas folhas, que se estendem em sentidos postos, quase sempre divididos pela aldeia e que cultivam alternadamente". Embora os agrónomos e geógrafos regionais insistam na dominância da rotação bienal centeio-pousio, o cereal podia rodar com batata: estão descritas rotações trienais, envolvendo dois anos de cereal (centeio-centeio ou centeio-trigo serôdio) com um ano de pousio alqueivado ou batata. Havia também terras de qualidade intermédia entre as faceiras e a terra de monte, submetidas durante seis anos a centeio-pousio, sucedido por um descanso de três a cinco anos. A preparação da terra seguia as regras da agricultura clássica grega e romana: duas a três mobilizações, a primeira, a decrua, no final do inverno, a vima na primavera, complementadas, se necessário, por uma lavoura de preparação da sementeira.
A batata entrou na região no século XVIII e difundiu-se no século XIX. Esta solanácea desempenhava um importante papel na alimentação humana na Terra Fria, sem, de modo algum, atingir a importância do centeio.
Cultivava-se em terras de razoável fertilidade, sempre estrumadas, em rotação com cereais ou após a arroteia dos lameiros. A batata também saía da horta, à semelhança da couve, do feijão, da abóbora e de muitas outras culturas para abastecimento da casa ou da pocilga. O nabo era semeado nas hortas. em terrenos suscetíveis de serem regados depois do arranque da batata e, menos, sobre restolhos de cereal. As terras ditas de nabal eram exclusivamente dedicadas a esta cultura.
Os lameiros eram explorados para pasto e feno. O fecho ao pastoreio ocorria entre o final de março e os meados de abril. sendo os fenos realizados no final de junho (depois do São Pedro). início de julho. Para restabelecer um lameira após arroteia havia que rapar e semear "o resíduo que fica no fundo dos palheiros ou arrecadações de feno". Um lameira bem cuidado, além da fenação anual, envolvia o arranque manual de infestantes. a limpeza
das agueiras e o arranjo de muros e represas de água. No verão ripavam-se as folhas do freixo e do negrilho que orlavam os lameiros para alimentar porcos e crias. Ciclicamente, eram podados em cabeça de salgueiro (talhadia alta) para extrair lenhas: "o terreno mais fértil fica para lameira- mais fértil pela fundura, pela abundância de água, e variedade de composição"; "esta grande superfície de prados, ocupando uma grande maioria dos melhores terrenos obsta o aparecimento da cultura intensiva"; "os lameiros encontram-se por toda a parte. ora nas encostas, ora nas planícies e em todo o local onde a terra é regada e mais húmida"; "o lavrador desta região tem abusado do lameira. sacrificando-lhe as outras culturas". Tão grande extensão e importância dos lameiros justifica-se pela procura externa de bovinos, relevante no período em estudo, e pelo simples facto de que "sem prados não pode haver gados e sem gados não pode haver carne, o trabalho e os estrumes que eles fornecem".
O gado bovino tinha por principal vocação a produção de trabalho. Os seus estrumes acumulavam-se nas cortes para posterior uso. Os bovinos excedentários eram a principal fonte do rendimento das famílias camponesas porque. como referia Coutinho, em 1877, "é esta das poucas indústrias que pode ir buscar mercado externo[ ... ), porque caminha por si mesma". Explorados num regime de semi-estabulação, os bovinos pastavam nos lameiros e, se necessário. no monte. O feno dos lameiros, "junto com as palhas dos cereais", era a "principal base da alimentação do gado grosso no Distrito". Complementavam o feno, o pasto, as ferrãs, folhas de freixo e olmo, e as palhas. muitas vezes acompanhadas do nabo. Os caprinos e ovinos sobreviviam em regime de manadio, pastoreando monte e restolhos. descendo aos lameiros na época da criação. Além de estrumes, produziam carne. e da lã de ovelha manufaturava-se o bureL Somavam-se às três espécies zootécnicas citadas as aves de capoeira. o porco e os gados asininos, muar e, pontualmente, o cavalar. Criados na proximidade da casa, o porco e as galinhas reciclavam os restos das refeições e os resíduos da horta. Com a castanha, hoje tão valorizada para consumo humano. cevava-se o porco.
Nas primeiras décadas do século XX, estava já em desuso o pastoreio (vezeiras) de suínos. O cavalo era um símbolo do agricultor abastado.
Como se referiu anteriormente. e vale a pena insistir mais uma vez, a reposição da fertilidade da terra cultivada na agricultura pré-industrial da região bragançana baseava-se na integração do pousio com a aplicação de estrumes animais de origem local. Ciente das teorizações de von Liebig. refere Coutinho. em 1877: as terras "recebem apenas os adubos obtidos na localidade ... isto é, não se traz para o terreno elemento nenhum que de lá não saísse". Os agrónomos são unânimes a respeito da forma descuidada como era gerido o esterco animal.
Lameiro em Rio de Onor
As descrições disponíveis mostram que a reposição da fertilidade da terra era ainda mais simples e ineficiente do que a descrita pelos agrónomos latinos clássicos. Ainda assim, para melhorar o aproveitamento dos estrumes, revestiam-se os caminhos com palhas e matos para que se empapassem com os excrementos animais. e desviavam-se as águas das veredas mais percorridas pelos gados, em direção às hortas e lameiros.
Pese embora o acentuado declínio dos bosques climácicos na Terra Fria Bragançana, a escassez do lenho arbóreo era, em parte, compensada pelo carvão de urze. Coutinho. em 1888, por exemplo, refere que os carvoeiros, normalmente pequenos proprietários ou gente sem terra, fabricavam carvão das toiças das urzes, principalmente da urze-branca. Esta prática prolongou-se até à década de 1970 em muitas aldeias de montanha com áreas abundantes de urzais mesófilos. Noutras áreas do território trasmontano, a rutura do abastecimento de combustível lenhoso era manifesta. Mariz, em 1889. estudando a aldeia de Rio Frio, referia que os estevais eram um "fraco e quase exclusivo combustível que possuem aqueles povos".
Quando comparadas com as urzes, as estevas têm o enorme inconveniente de, sob a ação reiterada do fogo, não produzirem uma toiça espessa, um xilopódio, na gíria botânica; as queimadas matam e reduzem a cinzas as estevas; a reconstrução dos estevais faz-se por semente. Coutinho, em 1888, assinala, estupefacto, a utilização de esterco bovino como combustível em Sendim, no Concelho de Miranda do Douro e em algumas aldeias do Concelho de Moncorvo. Sendo o conhecimento da importância dos estrumes na regeneração da fertilidade da terra parte integrante do saber agrícola tradicional de Trás-os-Montes, o uso de esterco seco na produção de calor é um sinal da intensa escassez energética experimentada na região em finais do século XIX, início do século XX. em algumas áreas do Nordeste Trasmontano. O uso de estercos para aquele fim traduz uma rutura nos sistemas de reposição da fertilidade da terra e um sério entrave à sustentabilidade dos sistemas de agricultura.

BRAGANÇA NA ÉPOCA CONTEMPORÂNEA [1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE-Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
Autores: Adérito Branco, António Jorge Nunes, Bruno Rodrigues, Carlos Aguiar, Cá tia Ferreira, César Urbino, Diana Vila Pouca. Diogo Ferreira, Fernando de Sousa, Francisco Cepeda. Henrique Ferreira. Joana Martins. Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves. José Monteiro, Luís Alexandre Rodrigues. Maria da Conceição Salgado. Maria da Graça Martins, Maria João Guardado Moreira, Natália Marinho Ferreira-Alves. Nuno Matias. Paula Barros, Paulo Amorim, Ricardo Rocha, Rosa Cadime. Sónia Neves, Virgínia Martin Jiménez
Revisão: Ricardo Rocha
Tradução: Ricardo Rocha. Virgínia Martin Jiménez
Design Gráfico: José Miguel S. Reis

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