Muito se tem escrito sobre a família Raba. Algo esquecida, porém, tem permanecido a matriarca, Luísa Maria Bernarda, acaso a responsável maior pelo sucesso da família. Este artigo pretende fazer um pouco de justiça.
Do lado materno, as raízes mais antigas de Luísa Bernarda encontram-se em Torre de Moncorvo onde, no século XVI, vivia o casal constituído por Gaspar Fernandes e Beatriz Vaz, ambos cristãos-novos e que foram os pais de Catarina Martins, (1) que em 1652, foi prisioneira na inquisição de Coimbra, sendo casada com Luís Lopes Tinoco, curtidor de profissão. Duas das 4 filhas de Catarina e Tinoco foram casar em Chacim: Isabel Rodrigues, com Jorge Lopes, curtidor e Maria Henriques, com André Lopes, que negociava em sedas. (2)
André Lopes e Maria Henriques tiveram 3 filhos e 4 filhas. Uma delas, nascida em Chacim em 22 de Maio de 1698, foi batizada com o nome de Catarina Henriques, a qual casou em 14 de Setembro de 1707 com Bernardo Lopes, (3) este nascido em Benavente, Espanha, já viúvo e com vários filhos de Ana Pereira, sua mulher.
O casal fixou residência em Bragança, e ali lhe nasceu um filho (André Lopes (4) dos Santos) e 3 filhas: Brites Bernarda, Branca Maria Bernarda e Luísa Maria Bernarda, de quem vamos falar. Antes, porém, refira-se que a casa de morada de Catarina e Bernardo era na Rua Direita, onde ele faleceu em 12 de Novembro de 1746, com testamento onde deixou a obrigação de 100 missas, ao preço de 80 réis cada uma.
Nasceu Luísa Maria Bernarda em 5.11.1712, em Bragança. Casou em 9 de Fevereiro de 1728, com Francisco Henriques Nunes, Raba, tendeiro, uns 26 anos mais velho do que ela. 9 meses depois, em 11 de Dezembro, nasceu o primeiro filho do casal, que foi batizado com o nome de José Henriques Nunes. Outros 7 se seguiram, nascendo o último, Francisco Henriques Nunes em 26.2.1743, ou seja: meio ano depois de falecer o seu progenitor que, entretanto ascendera à prestigiada classe dos assentistas. (5) E isso nos permite pensar que a família viveria em Bragança com bastante desafogo. De modo que dois dos filhos, o André e o Caetano, depois de fazer os estudos preparatórios em Bragança, certamente no colégio dos Jesuítas, rumaram para a universidade de Coimbra.
Andava a Luísa Bernarda nos 37 anos quando o vendaval da inquisição a arrastou para as masmorras do tribunal de Coimbra, em 29 de Julho de 1749. Vendo a mãe presa e levada para Coimbra, o filho mais velho ter-se-á metido também a caminho. E receando ser preso, ele e o irmão André (que era já estudante de latim na universidade) foram também apresentar-se no mesmo tribunal que lhes instaurou os respetivos processos (disso falaremos depois) e os mandou embora. Pior sorte caiu sobre o irmão Bernardo que foi preso em Setembro seguinte. A mãe e os dois filhos mais velhos (o José e o Bernardo) compareceram no auto de fé de 22 de Agosto de 1751. O André, que contava apenas 15 anos quando lhe foi instaurado o processo, haveria de comparecer em auto privado de 10 de Maio de 1755. (6)
Obviamente que a inquisição comeu muitos dos bens da família e arruinou a empresa dos Raba. Para mais era a vergonha de aparecerem vestidos com os sambenitos, expostos a vexações constantes em Bragança. Por tudo isso os Raba decidiram ir para Lisboa e dali espreitar ocasião favorável para abandonar o país e rumar a terras de França onde, aliás, estavam já estabelecidos parentes seus, nomeadamente o seu sobrinho André Lopes Pereira (filho de sua meia irmã Catarina Pereira) e Bernardo Lopes Pereira (filho de seu meio irmão Jerónimo Lopes Pereira e de Branca Maria tia materna de Luísa Bernarda). Aliás, existe correspondência trocada entre o primeiro e sua mãe, entre Bordéus e Bragança, via Lisboa, muito elucidativa dos medos e angústias provocados pela perseguição inquisitorial e das intenções de fuga daquela gente. (7) E além das cartas, vinham também moedas de ouro, para a família se remediar.
Difícil era encontrar um barco que os levasse a França, pois que a vigilância dos esbirros da inquisição era muito apertada. Menos apertada com os barcos ingleses, dadas as relações privilegiadas e a intensidade do comércio marítimo entre os dois países. Optaram por isso por embarcar num navio inglês para Londres e dali para Bordéus, em França. Com os filhos, Bernarda levou também uma sobrinha, chamada Catarina Ferreira, que estava prometida em casamento com o seu filho mais velho.
A chegada a Bordéus terá acontecido em 24 de Junho de 1763. Luísa Raba viveu ainda por mais de 20 anos, vindo a falecer em 1784, com 72 anos de idade, sendo sepultada no cemitério judaico estabelecido em 1764 na então chamada “cours d´Espagne”, atual “Cours d´Yser”. Assistiu à morte de alguns filhos e ao casamento de outros. Conseguiu manter unidos os filhos e com eles construir uma sociedade comercial intercontinental que amealhou fantástica fortuna. Em 1785 a sociedade formada pelos irmãos Raba e pela mãe e dois negociantes de Port-au-Prince, da Silva e Dulièpre tinha um ativo de 444 197 libras, das quais 272 764 pertenciam aos Raba, que também possuíam 365 895 libras em créditos. (8) A unidade da família e a ligação à terra natal, Bragança, são a marca mais expressiva da educação que a matriarca soube incutir no ânimo dos filhos. Resta dizer que em Bordéus toda a família aderiu ao judaísmo e que, na ocasião, Luísa Bernarda tomou o nome judeu de Sara.
NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº3642, de Catarina Martins.
2-IDEM, pº 6195, de Isabel Rodrigues; pº 7325, de Jorge Lopes; pº 5743, de Maria Henriques.
3-IDEM, pº 7214, de Bernardo Lopes.
4-IDEM, pº 11602, de André Lopes dos Santos.
5-IDEM.
6- IDEM, pº 9766, de Bernardo Henriques Nunes; pº 156, de André Lopes Henriques. Os processos de Luísa Maria Bernarda e de José Henriques Nunes não estão localizados nos ficheiros disponibilizados pelo ANTT. Os dados referidos foram tirados do processo de Brites Pereira (nº 2450, da inquisição de Lisboa) sobrinha e prima, respetivamente.
7-ANTT, inq. Lisboa, pº 11602, de André Lopes dos Santos.
8-CAVIGNAC, Jean – Dictionaire du Judaisme Bordelais aux XVIII e XIX siècles.
CRAVO, António – No caminho judaico, passando pelos criptojudeus portugueses, em França, pp. 180-191, edição do autor, Salselas, 2016.
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