Da esquerda para a direita: Artur Mirandela, Miguel Torga e Miguel Garcia Fernandes. Em Coimbra. Abril de 1960 Foto: João Soeiro da Costa |
MOC: Uma das facetas mais conhecidas do seu Avô, Artur Mirandela, tem a ver com os seus ideais republicanos e profundas convicções democráticas. Um dos episódios que se destaca é o relacionado com o acolhimento que o seu Avô deu a uma jovem espanhola vítima da guerra civil em Espanha e que passou a cuidar como se sua filha fosse. Conte-nos.
JC: Meu avô recolheu em sua casa a tal jovem espanhola vitima da guerra civil e perfilhou-a com o mesmo nome de minha mãe. Maria de Lurdes das Neves era pois o nome da sua filha mais velha e da jovem espanhola com a clara intenção de que, se fosse preciso, minha mãe serviria sempre de protecção, com o seu nome, a perguntas mais indiscretas e inconvenientes que por certo apareceriam, questionando a presença da jovem no seio da família. A altura era bem complicada e as atitudes tinham preço elevado mas a determinação de meu avô, a protecção da Dona Antoninha minha querida avó e a compreensão de todos os filhos ajudou a que hoje ainda possa abraçar com amor aquela a quem todos chamamos Patá, minha querida tia.
MOC: Os ideais democráticos e republicanos causaram dissabores ao seu Avô, e por consequência a toda a sua família. Era quase permanentemente vigiado e perseguido pelo anterior regime. Que memórias guarda desses tempos?
JC: As memórias que mais guardo do meu avô são as minhas férias, anos seguidos passados em Matosinhos durante a minha adolescência. Na rua França Júnior 195, mesmo em frente da antiga esquadra da PSP, vivia o Senhor Mirandela, homem considerado por tudo e todos, na companhia da minha saudosa tia Helena que me aturava as traquinices. Desse tempo guardo tudo pois tudo vivi intensamente. Lembro-me dos discursos em plena rua Brito Capelo, junto ao Joãozinho chapeleiro e da atenção que despertavam as suas palavras em todos os que passavam desde o simples transeunte, às famílias que passeavam juntas e até mesmo aos policias que, cumprimentando-o pareciam entender a sua revolta. É que dizia tudo o que queria sempre com a sua voz cativante e sorriso encantador brindando a todos com a sua inesquecível eloquência. A negativa da sua retórica perante o constante alvo que constituía Salazar, a sua falta de respeito pelo medo e o seu à vontade fazia com que todos se aproximassem e lamentassem o terminar dos largos minutos que findavam normalmente com a ajuda da policia que sempre educada, serena e discretamente fazia dispersar os pequenos ajuntamentos. A policia de Matosinhos de quem recordo todas as atenções e cuidados que tinham para com o meu avô são também um exemplo de que como nesse tempo não se confundiam as coisas e que a politica, feliz ou infelizmente para todos eles, era matéria para outros servidores do estado.
E lembro-me de mais. Lembro-me das esperas que fazia aos agentes da PIDE no topo das escadas de sua casa e dos sustos que eu apanhava quando, ao acompanhar os acontecimentos da volta a Portugal, chegava mais tarde do que a hora com ele combinada. Lembro-me da PIDE no Porto e das visitas que lhe fazia quando estava atrás das grades. Aí vi companheiros como Cal Brandão, Santos Silva, Ruela e tantos outros que não recordo o nome. Lembro-me de perguntar o que ali faziam e lembro-me de me dizerem que era apenas por falarem. Não compreendi a razão mas sempre compreendi os medos que despertavam certas palavras quando proferidas por certas pessoas. O medo da mudança perante um regime que julgava poder tornar-se eterno. Eu tenho muitas saudades das palavras de meu avô. Mas tenho mais saudades do seu exemplo.
MOC: Apoiante convicto do General Humberto Delgado nas eleições presidenciais de 1958, não hesitou em enfrentar o anterior regime. O seu Avô contava-lhe histórias e estórias desses tempos?
JC: Meu avô levava-me para todo o lado mesmo quando ia visitar amigos mais amigos, se é que me faço entender. Levava-me para os cafés de Matosinhos e também para os do Porto. A Vila Nova de Gaia fui uma vez. A primeira e única vez que vi Miguel Torga.
Contou-me sobre o General Humberto Delgado, quem era e o que representava. Mostrou-me fotografias do general no principal quarto da casa do 195 da França Júnior, perto do Virgílio sapateiro, fazendo a barba junto à janela escancarada acenando, sorrindo e cumprimentando o polícia que o saudava do outro lado da rua. Como vale a pena recordar! E contava-me histórias até altas horas. Sempre com um exemplo, sempre com fundo.
Tempos de outrora que, como diz Guerra Junqueiro, passou e não volta mais.
MOC: Durante a guerra civil de Espanha, o seu Avô acolheu centenas de refugiados espanhóis. Durante a II guerra mundial foi um dos mais importantes colaboradores dos aliados. Esta maneira do seu Avô estar na vida causou transtornos à família?
JC: Os transtornos causados à família foram absorvidos na sua quase totalidade pelo próprio Artur Mirandela. De costas largas e francas lutou sempre que pode e granjeou amigos onde menos se esperava. Até dos inimigos ganhou admiração. Enfrentou o infortúnio com bravura e foi um valente até ao fim dos seus dias. Viveu em Matosinhos a sua segunda vida. Soube aproveitá-la fazendo o que sabia e foi diferente até ao fim dos seus dias.
MOC: Uma das facetas do seu Avô, de que se fala menos, prende-se com a escrita. Privou e foi amigo de Miguel Torga.
JC: Meu avô nunca teve pretensões. Sabia que não era um escritor. Pôs em dois pequenos livros as suas histórias mas era melhor a contá-las. Bem melhor. Penso que as escreveu quando se apercebeu que já não as contava bem e poucos já as ouviam como dantes. A relação e admiração por Torga sempre o marcou. Só me lembro do médico e escritor naquele almoço em Gaia. Nunca mais o vi.
MOC: Quem e como era, no seio da família, o seu Avô Artur Leal da Neves?
JC: Meu avô era o exemplo. Eu fui, dos netos aquele que com ele mais conviveu. A saudade do meu avô e dos tempos que passámos juntos marcou-me a vida inteira. Dizem que só morremos duas vezes. A primeira quando o coração deixa de bater. A segunda quando deixam de se lembrar de nós. O meu avô, graças à sua terra, aos seus amigos, a si Henrique Martins e na parte que me cabe, jamais morrerá.
MOC: Bragança e os Bragançanos, orgulham-se de tão ilustre conterrâneo. Pensa que falta fazer alguma coisa para perpetuar a memória do seu Avô, Artur Mirandela?
JC: Bragança tem-no honrado mas a nós parece sempre que nunca fazemos o suficiente. Tal como o amigo Henrique Martins, gente aparece sempre donde menos se espera, contando história, relembrando nomes, mantendo vivas lendas que são a história da nossa história. Depois há os que, como eu, lêem e consultam os "blogues" da sua terra com saudade da mesma. E encontram exemplos. Obrigado.
Acho que Artur Mirandela diria algo assim - A cidade nada me deve e eu devo-lhe tudo o que sou, até a minha memória.
Lembro aqui a minha querida avó Antónia, meus tios Manuel, Olímpio e Leonel, minhas tias Ester, Sofia, Helena e Patá para além de minha querida mãe Maria de Lurdes. Todos, à sua maneira, souberam fazer respeitar o nome do pai e meu avô.
MOC: Quem é João Soeiro da Costa, neto de Artur Mirandela?
JC: Nasci em Bragança em 24 de Dezembro de 1946. Sou filho de João Soeiro da Costa e de Maria de Lurdes das Neves filha mais velha de Artur Mirandela. Fiz o liceu no Colégio Militar e enveredei pela carreira das armas. Completei o curso de Aeronáutica da Academia Militar, formei-me e especializei-me em aviões de caça e fui para a guerra em Moçambique no começo de 1972 tendo regressado em 1975. Estive na BA1 em Sintra, nas Lajes e no Montijo. Em 1980, retirei-me das forças armadas como major piloto-aviador e entrei na TAP onde estive até 2006. Saí então para a reforma por ter completado 60 anos. Em 2007, beneficiando do alargamento para 65 anos do limite de idade para aviadores e convidado a voar na EuroAtlantic, voltei a fazer o que gostava. Reformei-me em definitivo em 27 de Junho de 2010.
Obs*O Memórias e Outras Coisa agradece, penhoradamente, a pronta disponibilidade do amigo João Soeiro da Costa em conceder esta entrevista que irá, de modo indubitável, enriquecer o conhecimento que os Bragançanos têm sobre o ilustre filho da terra, Artur Mirandela.
Muito Obrigado meu estimado amigo João Costa.
4 de abril de 2017
Caro Sr. João Soeiro da Costa, sou investigadora na Escola Superior de Educação de Bragança e pretendo entrar em contacto com o senhor para conversarmos sobre o seu avô. Aguardo a sua mensagem. Lídia Santos
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