quinta-feira, 28 de março de 2019

O touro azul, o capador ou o moleiro fino. Quando as lendas se transformam em livro

As estórias de Bragança e Vinhais vão tornar-se um livro, depois de serem lidas nas escolas.
Foto: Pixabay/ninocare

Um projeto saído do Orçamento Participativo Nacional de 2016 está a fazer com que se procurem os contos e as lendas dos concelhos de Bragança e Vinhais, que no passado eram contados nos serões de inverno e nos intervalos dos trabalhos agrícolas.

Este trabalho está quase em vias de passar para livro com estórias de todas as freguesias destes dois concelhos. Antes disso, os contos serão lidos nas escolas do primeiro ciclo e os pequenos alunos farão desenhos alusivos ao tema. Os melhores ilustrarão a publicação.

Um dos contadores escutados no concelho de Vinhais foi o GNR reformado, Luís Gonçalves de setenta anos. É o mais novo de todos, e são muito poucos, os habitantes da pequena aldeia de Romariz. Sentamo-nos no fundo das escadas da casa para ouvir os contos de antigamente...o primeiro começa ali ao fundo, junto ao rio onde havia uma ponte velha.

"Dizem que veio uma grande tempestade e levou a ponte. Uns dias antes, um capador tinha ido trabalhar para o outro lado do rio nas aldeias de lomba. Na noite da tempestade voltou, em cima do cavalo para casa, como se nada fosse. No dia seguinte, quando o viram, perguntaram-lhe: Então por onde passaste? Ele respondeu: pela ponte, por onde havia de ter sido? Toda a gente ficou perplexa porque a ponte tinha desaparecido. Ele, confuso foi lá ver e reparou que a ponte só tinha uma trave de ponta a ponta e as marcas das ferraduras do cavalo. Dizem que ficou sem fala, meteu-se na cama e nunca mais de lá saiu."

"Lembro-me que quando era pequeno, falavam em nomes, mas também já me esqueci", salienta Luís Gonçalves.

Os nomes tornavam o conto mais verdadeiro e até se pode ter dado o caso de ter acontecido. Os contos e as lendas vão sempre para lá do normal, perto do sobrenatural e ao lado dos inúmeros encantamentos. Depois adaptam-se aos locais...quase todos têm uma moura encantada...como aquela da nascente que tinha um fio de ouro que foi partido enquanto era puxado e se desfez o encantamento da moura, e outros.

Luís Gonçalves encantava-se na infância com os serões longos do inverno quando lá em casa, os mais velhos contavam estas e outras histórias... foi com eles que aprendeu. "O meu pai era um contador dos verdadeiros. Ele e outros contavam muitas. Para os pequenos e para os grandes, as vermelhas", diz.

As vermelhas eram só para os mais crescidos.... Para os mais pequenos, o avô Luís, sempre que pode põe os netos à escuta. " E eles gostam de ouvir".

Como a do cavalo branco que avisou as populações da chegada das invasões francesas ou a do rapaz que, para salvar as três irmãs dum encantamento mau, transformou-se em leão para lutar com um ouriço-cacheiro e tirar de dentro dele uma pomba que tinha um ovo que quebrava o feitiço....

Luís Gonçalves sabe muitas e foi um dos contadores do concelho de Vinhais, que Roberto Afonso da Academia da Máscara Ibérica ouviu.

"Quase todas as lendas no nosso concelho e em Bragança será a mesma coisa, têm a ver com as mouras, com as grutas das mouras encantadas, com histórias de santos e que se repetem de terra para terra. Histórias de batalhas e guerras com algumas variantes e até nas próprias aldeias há mais do que uma versão da mesma lenda".

É o que parece acontecer na aldeia do Parâmio, no concelho de Bragança. O sr. Hermínio Fernandes de 82 anos está pronto a contar-nos os mandamentos do moleiro.

"Anda cá meu saco, três maquias te rapo. Uma por te levar, outra por te trazer e outra para o meu burrinho comer. Vem a minha Maria tira a sua maquia, vem a minha mulher tira o que ela quer. Vem o meu criado, este saco ainda não foi maquiado e eu, se não fosse por me envergonhar, até o baraço te havia de maquiar"

Toda a vida trabalhou na agricultura. A aprendizagem dos contos e lendas é sempre muito semelhante...nas noites, à lareira, os mais velhos, diziam e ensinavam todo o tipo de lenga-lengas. "Não havia televisão e os serões passavam-se assim."

É na cozinha de Hermínio Fernandes e na companhia da esposa que nos conta a conta do pastor que foi à festa à aldeia vizinha de Soeira e que pelo caminho lhe aconteceram um sem número de peripécias.

Hermínio tenta, sempre que pode, passar oralmente as estórias aos seus netos. São um público atento. O avô mistura a realidade com a ficção como aquela do bacalhau que uma vez contou à neta mais velha em que o próprio era a personagem principal. "Ela não acreditou que a raposa falasse (risos) mas expliquei-lhe que nestas histórias pode acontecer tudo. Era o tempo em que os animais falavam".

Da aldeia do Parâmio saltamos até à cozinha da Dona Maria de Fátima Nogueiro, na aldeia de Nogueira, ao lado de Bragança. Tem 82 anos. Viveu com a mãe solteira até aos 28. Foi com ela que aprendeu as estórias, e nas dela os animais sempre falaram.

"Principalmente a de um animal muito particular, a do touro azul que aparecia no lameiro a uma menina órfã de mãe e à qual a madrasta não lhe dava merenda para levar os animais para o pasto. Todos os dias o touro azul aparecia e dizia-lhe para tirar um guardanapo de trás da orelha. E logo aprecia uma merenda farta. Assim foi durante muitos dias até a madrasta desconfiar. Nos dias seguintes foi ela com os animais mas não apareceu o touro azul... e já não me lembra do fim", diz desconsolada.

A dona Maria de Fátima já não se lembra do remate mas a história tem um final feliz.

António Tiza é o presidente da Academia Ibérica da Máscara e foi ele que recolheu esta e outras histórias em todas as freguesias de Bragança. "É um projeto interessante porque para lá de se fazer uma recolha das que ainda os mais velhos se lembram, é uma boa maneira de atualizar um repertório que se vai perdendo."

O projeto saiu duma proposta do Orçamento participativo Nacional, que teve como proponente Alex Rodrigues, presidente da Junta de Pinela.

"Para não perdermos a nossa essência. Fiquei muito sensibilizado pela importância que foi dada ao projeto. Pelas instituições, pelos professores e principalmente pelas crianças que vão poder recordar histórias de lugares que conhecem e, mais tarde, quem sabe, contá-las a outros."

O Projeto tem a colaboração do escritor Alexandre Perafita e a validação científica fica a cargo da UTAD, Universidade de Trás os Montes e alto Douro.

Afonso de Sousa
TSF

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