Viviam no Porto. Com a chave dependurada no chaveiro em sua casa, de cada vez que o moço a olhava só lhe parecia que a marota o desafiava. Afigurava-se-lhe que ela se danava por sair dali, por ir apanhar ar, e por fazer a sua função de abrir a porta ao ser rodada. Sentir-se-ia acariciada quem sabe! Não resistia o rapaz e fazia-lhe a vontade. Sorrateiramente pegava nela, meti-a no bolso, e deitava-se para a casa grande mesmo ali ao lado. Com jeito de larápio mesmo que o não fosse, abria a porta para um pequeno mundo de grande encantamento.
Não que a casa fosse um palácio, ou sequer um palacete, mas era grande, enorme em comparação com aquela em que vivia. Nem se comparava. O interior então, era mesmo outro mundo, ainda que não se visse grande luxo. Mas via-se a comodidade dada pelos móveis ao dispor de quem não é pobre e mais não almeja do que ter um caldo e um pequeno apeguilho para acompanhar a côdea de pão. Podia ser tudo muito bom e muito bonito. Mas o triciclo encostado lá encima no sótão é que era o seu chamamento.
Subia a escada, montava nele, e pedalava para cá e para lá na largura da casa. Eram horas nisto. Imaginava cada volta como uma curva numa longa estrada rumo a terras desconhecidas que sabia haver para lá do arco-íris. Viajava. Viajava. Sonhava. Sonhava. Mas sonhava mesmo. Deitado na cama, continuava a jornada dela dando conta porque falava a dormir. Os pais ouviam, sorriam e lamentavam. Tinham pena de lhe não poderem comprar um triciclo novo em folha. Gostavam que o seu menino tivesses um brinquedo daqueles para ser ainda mais alegre e mais feliz.
Certo dia pelo Natal e como era costume, o pai veio à Régua, terra onde se compravam as coisas que a terra não dá. A paginas tantas era sempre preciso comprar roupa nova ou especialidades próprias da época e descer até à vila era tradição a cumprir. Entrou num estabelecimento, aviou-se com o que podia pagar, despediu-se com a cordialidade habitual, mas ao mesmo tempo olhou em volta para as muitas coisas que havia ao dispor de todos, mas que não eram de seu alcance pelo menos em cada vez.
Nisto, os seus olhos pararam. Vidraram-se e humedeceram-se. Diante deles, reluzia um triciclo. Perguntou o preço, mas desiludiu-se. As posses eram exíguas para a compra. Jurou e prometeu. No próximo ano botava-se a ele sem falta. Nem que passasse fome para amealhar o dinheiro necessário, mas nesse ano, a prenda do filho tinha de ser o que podia ser.
No regresso metido em si mesmo, dialogou com o Menino Jesus e fizeram um trato. Uma combinação. Se Ele o ajudasse na vida ao ponto de poder comprar aquele triciclo, fazia-lhe um presépio maior que nem sabia o que, com um musgo muito vicioso, com muitas ovelhas, com água a correr num moinho e com uma cabana muito quentinha e aconchegada.
Chegada a noite da consoada, ceou-se, comeu-se o bacalhau com batatas e mais as rabanadas. Bebeu-se o vinho e como de costume saboreou-se a aletria. Depois dormiu-se. Quer dizer, as crianças quase nada por via da excitação das prendas que iriam aparecer na lareira logo pela madrugada. Pela alva, houve espanto na casa. Ninguém sabe como, os pais foram dar com o filho ao lado de um triciclo. Surpreso quase sem fala. Nem sequer se tinha atrevido a subir para ele.
Pode até ser que estivesse a viajar nele só de imaginação. O pai só esfregava os olhos. Não acreditava no que via. Não percebeu até olhar para o Menino Jesus deitado nas palhinhas, e notar que Ele lhe piscou um olho.
Dizem que o burrinho e a vaquinha acenaram com a cabeça, mas isso eu não acredito.
Manuel Igreja
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