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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

COZIDO, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“Almoço na Pensão Rucha. O prato de carne era cozido à portuguesa”
[In O Cónego, de A.M. Pires Cabral]

A Pensão Rucha desapareceu, deu lugar a uma agência bancária, ficou a memória dos comeres nela servidos, no caso em apreço o cozido à portuguesa, em versão bragançana. Com efeito, quase se pode dizer quantas terras, quantas receitas de cozido. Umas mais famosas que outras.
Nesta questão da fama do cozido pode-se considerar que o favor popular é consequência da habilidade de quem concebe as receitas levando em linha de conta a boa harmonização dos produtos de natureza animal e vegetal de cunho local (ao tempo), e os propagadores a dizerem quão excelente é a pitança a preços razoáveis. O sólido e completo cozido maragato cujo epicentro é San Roman cerca de Astorga, deve a fama aos almocreves que não se cansavam de o enaltecer onde quer que estanciassem. Pudera, consta de: diversas carnes de porco e vaca, enchidos, para o recheio presunto, ovos e pão, verduras que a horta dá, sopa de macarrão, pão e arroz que se prepara no caldo do cozido.
Prato popular, apodado depreciativamente de rústico, o cozido consegue atingir a mesa dos ricos, embora na maioria das vezes sofrendo modificações pela incorporação de outros acompanhamentos a torná-lo mais refinado. O cozinheiro Rumpolt publica em 1581, Ein new Kochbuch tratado de boas maneiras à mesa e de instrução da alta criadagem, ao mesmo tempo reinterpreta o cocido espanhol tão do agrado da arraia-miúda “numa iguaria de luxo para o rei e imperador, para príncipes e senhores” no qual entram noventa espécies de carne e enchidos diferentes.
O cozinheiro real Domingos Rodrigues no Arte de Cozinha revela larga preferência pelo cozido, pois nas sete ementas para toda a semana, salvo os dois dias de jejum a interditar a carne, o cozido é sempre o prato principal, antecedendo os doces. O cozido servido no domingo incluía vaca, carneiro, mãos de porco, presunto, grãos, nabos, pimentão, todos os adubos amarelos, bem como açafrão.
A confraria de maçons de Pérouges, loja dos Sete Tecelões, executava uma receita assente no número sete. Para se obter um: “bom resultado, considerada a quantidade de ingredientes, deviam ser pelos menos doze os comensais, todos robustos e de bom apetite”. Da leitura da receita entende-se os requisitos exigidos aos participantes no ágape. Consta de: “numa panela cheia de água quente e ligeiramente salgada e com um copo de azeite, ponha-se um pedaço de cada um dos sete cortes de carne de vaca: ponta da costela, pá, faceira, cachaço, lombo, perna e alcatra. Cada uma destas peças deve estar furada com cravos de cheiros. Colocam-se numa panela todas juntas de maneira que cada uma conserve a sua consistência específica. Na panela junto às carnes juntam-se aipo, cebolas, cenouras, dentes de alho pisados e um ramo de alecrim fresco. Noutra panela, cozem-se da mesma maneira sete adjuvantes: uma galinha, uma língua e um rabo de boi, um chouriço e um pé de porco, uma cabeça de vitela, e um pedaço de lombo de porco. Em ambos os casos, durante a cozedura, a realizar-se em lume brando, as panelas devem espumar continuamente. Todas as carnes são servidas com sete verduras: abóboras, batatas, nabos, couves, funchos, cebolas e cenouras salteadas com manteiga, sobre as carnes que se mantêm quentes sobre um fogareiro, no seu caldo que ao chegar o momento de ser servido, acrescenta-se um pouco de sal grosso.
Sirvam este cozido com molho verde, mostarda forte e molhos, o primeiro misturando partes iguais de mel, vinagre e nozes picadas. O segundo com uma pêra cozida com canela, pimenta e cravinho.
Serve-se com um pouco de vinagre quente”.
O poeta João Penha impenitente comilão conta que após ter comido canja de galinha, deu réplica adequada a uma receita do “chamado antigo cozido à portuguesa, composto de carne de boi, galinhas, paios, toucinho e presunto, couve-flor e arroz.”
Às receitas acima aduzidas podem-se juntar outras de idêntica composição originárias de outros países, mas o propósito é referir comeres bragançanos que em diversas composições estão colocados na classificação mais ampla – transmontanos –, sendo os exemplos trazidos à colação como prova provada da existência de centenas de receitas de cozido, um pouco por toda a Europa, países de África e América Latina.
Nós levamos o cozido para o Brasil, na Baía confeccionam um cozido de peru, previamente assado, mais linguiça, legumes e verduras.
O cozido nas suas diversas versões é um prato a exigir paciência, isto é: cozeduras lentas, em lume brando, daí resultando uma comida grávida de aromas e a conceder grato prazer à boca, e beatitude pós prandial. Assim o dá a entender Eça de Queiroz ao nos descrever o jantar oferecido pelo Conselheiro Acácio, onde o cozido foi o prato de substância.
O facto de o cozido resultar melhor quanto mais lenta for a cozedura, é o resultado dos ensinamentos colhidos pelas cozinheiras na miscigenação dos povos. Tais influências milenares resultaram da herança deixada por esses mesmo povos que demandaram a Península Ibéria, e por cá ficaram implantando crenças e hábitos, daí estudiosos afiançarem ser o cozido descendente da adafina. A adafina é uma receita judaica de origem sefardita que se come no sabat. A cozinha judaica é marcada por rigoroso respeito pelas festividades religiosas, ora o sabat é uma das mais importantes, nesse dia louva-se e evoca-se o repouso do Senhor, após ter criado o homem à sua imagem. O domingo dos cristãos é bem menos exigente, senão atente-se na seguinte passagem: “Observe escrupulosamente os dias de guarda. Seis dias trabalharás, para fazeres a tua tarefa; no sétimo dia porém... não trabalharás tu nem o teu filho, ou filha, nem teu escravo, nem teu boi, nem teu burro, nem qualquer cabeça do teu gado...”, assim o determina a lei Mosaica.
Não podendo fazer fogo no sabat, muito menos cozinhar, segundo o Êxodo 35:3: “Não acendereis lume em todas as vossas casas no sétimo dia”, os judeus conceberam um prato quente – a adafina – um cozido, que se colocava no forno comunal previamente aceso, ou na casa de cada um, durante toda a noite, em fogo lentíssimo, metido num recipiente hermeticamente fechado. Adafina significa coisa quente, tendo ficado conhecida como sopa dos judeus em Espanha e Portugal. A adafina é referida no Talmud e outras obras da literatura rabínica, tendo influenciado diversas cozinhas, caso do cassoulet francês e do cocido madrileno e de outras terras de Espanha. Naturalmente, o cozido português em geral e o cozido bragançano em particular, mais a mais existindo na região uma importante comunidade sefardita, não ficaram imunes à referida influência.
A receita da adafina incorpora: pé de vitela, cebolas, carne de peito de vitela ou de vaca, ossos de tutano, grão-de-bico, batatas e ovos cozidos. A forma de servir a adafina é igual à do cozido.
A receita milenar da adafina terá sido alterada pelos cristãos ao lhe acrescentarem carne de porco, e seus derivados caso dos enchidos e toucinho.
“Alguns em suas casas passam com duas sardinhas em pousadas alheias pedem iguarias,
desdenham o carneiro pedem as adafinas”
O fanatismo exacerbado e orientado pela Inquisição deu origem a uma receita denunciante intitulada cozido de cristão velho. Tristes e desapiedados tempos aqueles!

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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