[Informante1(ML):] − «Pois o chá das pitas(1) é assim. Fomos assegar(2), lá pra(3) um...Pra uns moinhos. E depois ao meio-dia, lá a Alda deu-nos... Foi-nos levar o jantar(4) (e ali, há ali uns cerejeiros(5)) e depois subimos aos cerejeiros a comer cerejas. As cerejas diz-se que não podem ter contacto co(6) vinho (nós tínhamos buído(7) vinho, lá ao jantar) e depois...cerejas.
Como aqui não havia muita e ali haviam, e estavam boas, foi comer ali *à farta*(8).
Era eu e o meu marido e outro casal.
Era eu e o meu marido e outro casal.
Depois pra outro dia tornávamos todos a assegar para outro lado, para outro patrão. Também prà(9), prà Furna. Quando nos juntámos ali ao fundo das eiras(10), eles iam por um lado, gomitavam(11) ali... Nós íamos pra este e gomitávamos ali.
− Oh... Então, estamos bons! Estamos bons pra assegar hoje, estamos... ‘Tamos(12), ‘tamos! Todos doentes!
Quando chegámos lá, à casa do, do patrão, eu disse-lhe prà, prà mulher:
− Ó tia(13) Altina, não faça-des(14) muito comer pra nós hoje, levai-nos um...Uma garrafa de chá...
E ela assim foi. Foi ao poleiro das galinhas, ‘garrou(15) atão(16) uma manada(17) de
galinhaças(18), embrulhou-as num pano, ferveu-nos, e lá nos apareceu com a garrafa do chá.
− Então bá! Comei primeiro uma sopica(19) e depois é que... É que comeis assim...
− Não! Nós não queremos comer *mai’ nada*(20)! Só vamos a buer(21) o chá.
Assim foi. Primeiro ainda bazemos(22) a garrafada(23) ali, ali, ali do chá. Pronto, ‘tou a assegar todo o dia, sem tornar a comer.
Quando à noite vamos pra comermos então uma malga(24) de sopa, diz-nos ela assim:
− Bá(25)! Vós bem... Bem baratos nos saístes...Livra-se todo o dia, com uma merda de pita!
Eu disse:
− Não me diga-des(26) que era o chá da merda da pita! E era tão bonito! Tão lourito!
− Pois era...Era do chá da pita... Da galinhaça da pita.
Pronto... E depois melhoremos! Outro dia estávamos bons... [Risos] ... Foi assim.
Assim... E põe-se dentro de um pano...
[Informante 2 (MF):] – Lava-se...
[Entrevistador:] – Lava-se?
[Informante1(ML):] – Eu não sei se o lavou nem se não!
[Informante 2 (MF):] – Pa’(27) tirar aquela coisa. Lava-se bem lavado, tira-se aquilo e depois mete-se no (...), fica feito. Depois mete-se dentro de um pano. Arrevia-se(28) um baraço(29) pra que não saia impureza nenhuma e o chá parece que... Parece que é ouro! É da cor do ouro.
[Informante1 (ML):] – É. É muito bom...
[Informante2 (MF):] – Pronto, sabe muito bem.»
Maria Lopes e Maria Falcão, Caçarelhos (Vimioso),Outubro de 2010
Glossário:
(1) Pitas – galinhas (uso popular e também em mirandês).
(2) Assegar – segar (ceifar; cortar e colher o cereal nas searas com foice).
(3) Pra – “para” (redução da preposição “para”, sua forma sincopada, usada no registo popular, informal - reprodução da pronúncia).
(4) Jantar (meio-dia) – antigamente quem trabalhava no campo tinha normalmente como principais refeições do dia: a) o chamado “mata-bicho” tomado entre as 6 e as 7 da manhã; b) o almoço entre as 8 horas e as 10 horas; c) o jantar: tomado normalmente pelas 12 horas; d) poderia haver a merenda por volta das 16 horas; e, por último, e) a ceia: tomada entre as 19 horas e as 20 horas.
(5) Cerejeiros – cerejeiras.
(6) Co – “com o” (contração da conjunção arcaica ca com o artigo ou pronome o − ca+o −; uso oral, coloquial).
(7) Buído – bebido (verbo beber, de acordo com a seguinte definição: «buber – beber. Forma usualíssima em toda a parte. O u proveio da labialização do e». Vasconcelos, José Leite de. (1985). Dialecto Transmontano I parte — (Artigos redigidos pelo autor). OPÚSCULOS. Volume VI –Dialectologia (Parte II). Organizado por Maria Adelaide Valle Cintra. Lisboa: Imprensa Nacional. P. 34.
(8) À farta (comer) – em/com abundância; com fartura (em grande quantidade).
(9) Prà – “para a” (contração da preposição pra com o artigo ou pronome a; uso popular e coloquial).
(10) Eiras – terrenos lisos ou empedrados onde se debulham, trilham, secam e limpam legumes e cereais. Era costume cantarem-se modas para marcar o ritmo a empregar nos trabalhos diurnos, e até nocturnos, ali efectuados. Este espaço era também usado pelos trabalhadores agrícolas para fazer bailes ou festas que podiam estender-se pela noite fora.
(11) Gomitavam – vomitavam (gomitar – forma popular do verbo ‘vomitar’).
(12) ‘Tamos – ‘estamos’ (pronúncia popular do verbo “estar”, abreviatura oral, de uso informal e coloquial).
(13) Tia – forma de tratamento que, em Portugal e sobretudo na província, no campo, é usada para mulheres de certa idade e de condição modesta.
(14) Faça-des – ‘faças ou façais’ (verbo fazer).
(15) ‘Garrou – ‘agarrou’.
(16) Atão – ‘então’ (regionalismo de Portugal, de uso informal e coloquial).
(17) Manada – mão-cheia (regionalismo que designa o que se pode apanhar com uma mão, de uma só vez).
(18) Galinhaças – excrementos de galinha.
(19) Sopica – sopinha.
(20) Mai’ nada – «mais nada. Houve assimilação (absorção) do s ao n». Vasconcelos, José Leite de. (1985). II − Linguagem Popular de Macedo de Cavaleiros − Dialecto Transmontano −I parte — (Artigos redigidos pelo autor). OPÚSCULOS. Volume VI – Dialectologia (Parte II). Organizado por Maria Adelaide Valle Cintra. Lisboa: Imprensa Nacional. p. 22.
(21) Buer – beber (à semelhança de ‘buber’ − beber.» Barreiros, Fernando Braga. (1917). Vocabulário barrosão. Revista Lusitana, Volume XX, Lisboa:
Livraria Clássica Editora, Lisboa. p. 145.
(22) Bazemos – vazemos - esvaziámos, despejámos, bebemos ( ideia de esvaziar, despejar, verter). Trocar o “b” pelo “v” é um traço fonético comum nos dialectos do Norte do Portugal).
(23) Garrafada – a quantidade de liquido que a garrafa contém.
(24) Malga – tigela para a sopa (popular).
(25) Bá – Vá! – «Interjeição para dar ânimo» (http://www.mirandadodouro.com/dicionario/traducao-mirandes-portugues/B%E1/). Trocar o “b” pelo “v” é um traço fonético comum nos dialectos do Norte do Portugal.
(26) Diga-des – digas, digais.
(27) Pa’ – ‘para’ (usado de modo informal e coloquial).
(28) Arrevia-se – ata-se; dá-se uma laçada (hipótese a corroborar).
(29) Baraço – fio, cordel.
Referências bibliográficas e recursos online utilizados no glossário: Barreiros, Fernando Braga. (1916). Tradições populares de Barroso. Revista Lusitana, Volume XIX. Lisboa: Livraria Clássica Editora, p. 76.
Barreiros, Fernando Braga. (1917). Vocabulário barrosão. Revista Lusitana, Volume XX, Lisboa: Livraria Clássica Editora, Lisboa. p. 141, 145.
Barreiros, Fernando Braga. (1937). Apêndice ao «Vocabulário Barrosão». Revista Lusitana Volume XXXV, Lisboa: Livraria Clássica Editora. p. 245.
Barros, Vítor Fernandes, (2006). Dicionário do Falar de Trás-os-Montes e Alto Douro. Lisboa: Edição Âncora Editora e Edições Colibri, p. 282.
Cardoso, Armindo. (2005). Vocabulário Transmontano: palavras e expressões regionais recolhidas na aldeia de Moimenta, concelho de Vinhais. Em linha.
Consultado em 17 de Abril de 2011. URL: http://www.bragancanet.pt/cultura/vocabulario/
Teixeira, Abade de Tavares. (1910). Vocabulário trasmontano (Moncorvo). Revista Lusitana, Volume XIII, Imprensa Nacional de Lisboa, p. 113.
Vasconcelos, José Leite de. (1985). II − Vocabulário de Macedo de cavaleiros − Dialecto Transmontano I parte — (Artigos redigidos pelo autor). OPÚSCULOS.
Volume VI – Dialectologia (Parte II). Organizado por Maria Adelaide Valle Cintra. Lisboa, Imprensa Nacional.
Vasconcelos, José Leite de/Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos (DRA). p.720.
in:memoriamedia.net
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