A EMIGRAÇÃO DO NORDESTE TRANSMONTANO PARA O BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Numa breve alusão ao perfil que as estatísticas nos indicam, podemos afirmar que os emigrantes deslocavam-se individualmente ou em grupos, os quais podiam ser constituídos por 5, 10, 15 indivíduos ou mais, caso fosse para um contrato de trabalho. No entanto, grande parte dos grupos era composta por unidades familiares rurais, da montanha e do interior desfavorecido, acrescidas de parentes ou amigos próximos.
A percentagem masculina, no conjunto dos emigrantes nordestinos, cerca de 48 160, é de 25 880 indivíduos (53,74%) e a feminina de 22 280 (46,26%).
Entre 1914-1919, os contingentes femininos são superiores aos masculinos ultrapassando
os 50%. A percentagem de mulheres emigrantes do Distrito é superior à percentagem de mulheres emigrantes de Portugal continental, respectivamente 46% e 25%, perante o total de cada zona.
A mulher era considerada, dentro do processo emigratório, como facilmente exposta a convivências, condutas sociais menos dignas e comportamentos de marginalidade. Mas a mulher emigrante está também associada à família que emigra, ou que lá fora se chega a constituir.
O alerta para a emigração de mulheres jovens e solteiras pautava-se por conhecer melhor os seus destinos e ocupações, muitas vezes desprotegidas, enganadas ou aliciadas, desde o país de origem até ao país que as acolhia e, onde nem sempre eram propiciadas as condições materiais e morais de existência.
As redes de prostituição e o tráfico de mulheres eram amplamente denunciados.
É o elemento masculino que parte para, previamente, criar condições básicas que lhe permitiriam reunir a família, em forma de emigração livre, sem contratos prévios e destinada, normalmente, aos mercados de trabalho urbanos.
As saídas femininas estiveram durante muito tempo pouco evidenciadas, atendendo à forma como os passaportes eram emitidos, apenas em nome do titular, normalmente um elemento do sexo masculino, acompanhado pela mulher, filhos ou parentes próximos. A verdade é que as mulheres engrossavam as fileiras da emigração, e através delas, fomentou-se a emigração de tipo familiar.
Famílias inteiras abandonam as suas terras tornando a corrente emigratória um aspecto de verdadeira calamidade.
A tendência para a subida da emigração feminina permite-nos constatar que a mulher emigra acompanhando o marido com os filhos pequenos, ou acompanhada apenas pelos filhos para se reunir ao marido.
A emigração desta mulher casada comprova uma reintegração ou reencontro do grupo familiar de origem nas “cartas de chamada” que o cônjuge enviava e que passaram a ser, a partir da 1.ª Grande Guerra, prova deste procedimento.
A mulher é pois, directamente, um importante ponto de referência na conservação de valores e no equilíbrio familiar, atribuindo-se-lhe também um papel elogioso e digno.
Ninguém duvida das potenciais e preciosas energias de que o país fica desprovido quando os agrupamentos familiares se desintegram na sua unidade ou se dispersam, geograficamente, bem como os efeitos negativos da sua deslocação em bloco. No entanto, a importância da mulher no quotidiano familiar emigrante revela-se essencial por apelar para o trabalho efectivo que desempenhavam, conjuntamente com os outros membros da família, na realização das ocupações domésticas tradicionais e pelo “companheirismo” diário, demonstrado em relação aos membros da família, como sublinhou Maria Isilda Matos.
A distribuição dos emigrantes por estado civil privilegiou, no período em causa e para o Distrito de Bragança os solteiros que ocupam 60,96% do universo emigrante. Seguem-se os casados, viúvos e divorciados. Facto curioso é que emigraram mais mulheres viúvas e divorciadas do que homens.
Assinalamos que o Distrito de Bragança registou um maior volume de emigrantes (h/m) com mais de 14 anos de idade, 32 340 (67,15% dos emigrantes).
Os valores percentuais do distrito de Bragança excedem os valores de Portugal continental perante os menores de 14 anos (para os jovens era a idade de apresentação para serviço militar rigoroso).
Em termos de profissões é fácil observar que o sector extractivo ocupa posição de destaque no grupo emigrante do Distrito, 47,84%, (correspondente a 21 281 indivíduos de um universo calculado em 44 481 emigrantes); seguido dos “sem profissão” (45,88%); do sector transformador (tarefas manuais ou manufactureiras; ex: sapateiro, alfaiate, carpinteiro, pedreiro), (2,71%); do grupo “sem profissão específica” (2,03%) e, finalmente, os oriundos do sector dos serviços (1,53%) e também as “ocupações domésticas”.
O “recrutamento” que a emigração efectuou nas várias “camadas” profissionais de então, incide nos mais desprotegidos e o tipo de distribuição dos emigrantes, em função das profissões, é também ritmado pelas trajectórias geográficas que então se operaram. Procurava-se um país onde o “ofício” se pudesse desenvolver.
Os níveis de instrução, tanto dos emigrantes de Portugal continental como do Distrito de Bragança, eram muito baixos. Os valores são chocantes.
Os protagonistas da emigração deste período são analfabetos. No entanto, também a população distrital, em termos de analfabetismo, ultrapassava os 80%. A emigração encontrava aqui verdadeira “matéria-prima” e uma autêntica “legião de explorados” que vergam à prepotência dos engajadores e contratadores.
Deparamos no grupo emigrante com cerca de 86% de analfabetos, enquanto os “alfabetizados” (saber ler e escrever) rondavam apenas os 14%.
Saliente-se que o grupo das mulheres é o mais desprotegido neste domínio. Das mulheres que emigraram, cerca de 96% eram analfabetas. Os valores distritais neste capítulo ultrapassam os níveis continentais.
Da colheita estatística efectuada, apurou-se que os nordestinos emigraram, essencialmente, para procurar trabalho e com ele dinheiro para sustentar a família, que na maior parte dos casos, partia em bloco. Cerca de 83% dos emigrantes
do distrito e 85% dos do continente procuravam “melhorar fortuna”.
A expressão pode ter várias interpretações: angariar capital já que partiam pobres ou descapitalizados, procurar novo rumo para a vida, que passaria também por uma melhoria das condições financeiras e do bem estar dos descendentes e/ou dependentes.
A “opção” de emigrar foi determinada pela “necessidade”, transformada em situação de recurso para “exercer a profissão”, ou conseguir trabalho para obter dinheiro, ainda que nem sempre no sector de actividade de origem, respectivamente, 58% dos emigrantes, ou ”viver com a família” – 28% dos emigrantes do distrito.
Numa breve alusão diríamos que foram homens e mulheres de aparência descuidada, trabalhadores braçais válidos, analfabetos, desiludidos, inconformados, humildes mas corajosos e com grande vitalidade interior. Emigram os mais enérgicos, firmes, decididos, fugindo ao sofrimento e escoando-se para o exterior em verdadeiras vagas humanas.
Vejamos alguns excertos de textos de periódicos que nos transmitem retratos comoventes:
“Não vai com a visão na riqueza, para além-mar, o que se expatria; deixa a pátria fundido em lágrimas, dilacera-se-lhe o coração ao abandonar tudo o que amava, a aldeia, a choupana, amigos, parentes, aquela que havia compartilhado da sua felicidade conjugal. Mas vai! não há lar sem pão, sem lume; não há família sem agasalho ou conforto (...). O operário camponês emigra por indigência e os que levam a família não vai confortada”.
“Na sua maioria eram trabalhadores rurais, gente bronca e sem as menores luzes do mundo. Analfabetos, eram como que rebanhos guiados pelo pastor, que os ia levar à administração do concelho para lhe tirar os passaportes (...).
A maioria dos nossos emigrantes são simples trabalhadores rurais que só no serviço braçal podem ser empregados. Vão para a América fazer o serviço de pretos e empregados, com desvantagem, nos trabalhos agrícolas, por não estarem preparados para novas culturas”.
“Pareceu-nos de grande alcance, entrevistar um dos muitos emigrantes que, em cata de trabalho, partem da Pátria, talvez para não mais voltar. (...)
Fomos buscar ao seio do povo que sofre a fome e as intempéries, verdades amargas e dolorosas (...) de desgraçados (...) nesse vasto mar de desventuras.
(...) Na minha aldeia há anos que vimos atravessando uma vida cheia de privações.
As colheitas cada vez mais escassas e sempre a esperança enganadora a impelir-nos para o trabalho. Não sabemos, é certo cultivar a terra, mas contra os maus anos não há ciência que valhe e desconfiarmos das técnicas quando as não vemos confirmadas pela prática. Há ainda outros motivos que me decidiram a emigrar (...) e vou-lhe referir um que desgostou o povo da minha aldeia (...): perdemos a esperança nos homens influentes da política e até padres em quem tínhamos uma cega confiança que nos levaram a actos de hostilidade contra a república, iludindo-nos (...). Perdemos também a confiança no pão, que debalde, temos tentado arrancar ao solo dos nossos campos.
Vamos pois para outra terra em cata de solos mais férteis e de homens de mais são carácter, onde possamos encontrar a confiança e o bem-estar que inútil e infelizmente procurámos durante longos anos de privações e de decepções amargas”.
“Simplórios, analfabetos, sem prática, muitas vezes de qualquer mister, lá partem, à mercê da sorte com raras probabilidades de êxito. (...) Tendo de competir com o inglês monopolista, com o esperto italiano e com o francês sagaz, preparados para o “struggle for life” depressa são esmagados pela roda da fortuna, que era o seu ideal, provando uma vez mais que não é pelo acaso que o triunfo se consegue, mas pelo emprego simultâneo da inteligência e do trabalho (...). Sem inquirir o motivo de retumbantes triunfos, cuidam os simples que a todos é dado consegui-los, muitos embora se vá desprovido da mais rudimentar ilustração e apenas se saiba e possa manejar o alvião e a enxada”.
“Já não é o jornaleiro sem pousada ou o artífice mal remunerado, que procura solucionar a vida mediante o expediente transitório de uma ida até ao Brasil. É o chefe de família, remediado e cheio de filhos, que mal barateando as economias por mais de comissários e engajadores sem consciência, (...) atendido e estonteado pela quimera ridente de um futuro de prosperidades fora da Pátria (...) vende a vil preços a choupana e a horta para enroupar (...) meia dúzia de crianças que criou para, abandonando de vez a sua terra, ir a caminho do Eldorado apossar-se do ouro que se apanha às mãos ambas e bem estar que se alcança com o simples assentar de arraiais em terras de pretos!! Misérrima alucinação”.
Maria da Graça Lopes Fernandes Martins
Sem comentários:
Enviar um comentário