Augusto César Moreno, figura maior da intelectualidade brigantina |
É preciso reedificar. Em muitos pontos, é preciso fazer tudo de novo”.
Aos titânicos esforços que é necessário empreender, “vem juntar a modesta parcela do seu esforço”.
O Governo pode contar com o seu apoio “leal e desinteressado”. E prossegue: “Nada temos que alterar ao nosso programa. Norteia-nos o mesmo critério; iluminam-nos os mesmos ideais.” Lamentam, por fim, a falta da “esclarecida direção do formoso talento e peregrino caráter que é o dr. João de Freitas, hoje magistrado supremo do Distrito, mas temos fé em que nos não faltará o seu incitamento e o seu bom conselho”.
Aí está o jornal, ressurgido para a “publicidade”, pronto a trabalhar pela “consolidação” do novo regime e decidido a trabalhar pelo “Povo”, que vai trazer uma nova Pátria, “redimida e bela”. É um número celebratório da República. Praticamente todos os textos têm a ver com o triunfo do novo regime.
Abre com o título “ENFIM!”, que é um desabafo para quem tanto ansiava pela República. É uma declaração de boas intenções. “Está convertida em grata, em consoladora realidade o acariciado sonho de há tantos anos!
Desde o dia 5 que é um facto a implantação da República em Portugal. O heróico povo de Lisboa, com a Marinha e parte do Exército, aboliram para sempre nesta terra o execrado regime monárquico. Não sem muito sangue, infelizmente, porque, a despeito da sua impopularidade e da sua cobardia, a realeza teve ainda desesperados defensores... Caíram. Lamentemo-los a todos, e sobre os vivos não exerçamos represálias”.
“A República é generosa e magnânima. Sê-lo-á sempre. E para o provar, basta ver a admirável cordura do povo de Lisboa. Imite-o no seu civismo o povo das províncias”. E já esta recomendação para desacreditar os detratores: “Não acredite [o povo] nos especuladores ou nos imbecis que lhe apresentem o regime republicano como um regime de desordem. É falso. O lema da República é, pelo contrário, ‘Ordem e Trabalho’. Atente o País no que tem a lucrar com as novas instituições, molecularmente democráticas, e que significam o ‘governo do povo pelo povo’. Caíram os privilégios. É preciso enterrar todos os preconceitos e todas as tiranias, acabar com todas as misérias, com todos os fanatismos, com todas as desonestidades. É preciso fazer lugar para os homens de caráter, para os homens de isenção, para os homens de consciência e de mãos limpas”.
São renovadas as intenções programáticas: “Reduzir a capacidade abominável dos devoristas; acabar com portas falsas; fazer luz nos meandros escuros; extinguir os ratos da administração; desprezar os trapalhões; arredar os troca-tintas; castigar os prevaricadores. Difundir largamente a instrução; educar o povo; fomentar a riqueza pública; animar as iniciativas fecundas; despertar as energias latentes da Nação; aproveitar os recursos desprezados; desenvolver todos os ramos de atividade produtora; firmar o crédito; levantar o nosso prestígio; pôr-nos a par, senão na dianteira, dos povos civilizados, até há dias vexados do nosso abastardamento, e hoje outra vez entusiasmados e admirados do nosso heroísmo”.
Depois deste esperançoso e tranquilizador discurso – como, aliás, as circunstâncias impunham –, pede-se a defesa intransigente das novas instituições que hão de trazer a Liberdade, a Justiça e o Progresso. E para acabar, vinca-se bem o que foi a redenção da Pátria, “conspurcada” por esse regime de ignomínias, salva pelo povo e pelos soldados. Assina Augusto Moreno – já figura emergente –, que vai pôr o seu talento e as suas capacidades ao serviço dos ideais republicanos. No muito que escreve e polemiza, sabe moldar, como poucos, o barro da língua portuguesa. É um texto que tem tanto de programático como de bem escrito. Atente-se, ainda, no caráter conciliador da mensagem, próximo do que seriam os pontos de visita e conceções de António José de Almeida Há informações que nos facultam vários dados acerca do que se teria passado na Cidade, quando não se sabia ao certo o que estava a ocorrer em Lisboa, sobre a “receção” que conheceu a República em Bragança e nas terras do Distrito.
Em “A proclamação da República… Manifestações públicas de regozijo pelo seu advento na Cidade de Bragança e resto do Distrito”, narra-se a ansiedade vivida e dá-se conta das providências que foram sendo tomadas.
Também se refere a informação respeitante à desistência da visita do monarca. Os dias 4 e 5 de outubro “foram de grande ansiedade para Bragança. Sabia-se que rebentara um movimento militar em Lisboa; mas ignorava-se por completo qual tinha sido o seu efeito.Um telegrama oficial recebido no dia 4 às três horas da tarde dizia só que a revolução estava quase debelada. Este quase conservou toda a gente ansiosa por saber notícias da capital, que cessaram completamente.As tropas da guarnição tinham sido todas mandadas recolher aos quartéis, onde se conservaram dia e noite, prontas para marchar à primeira voz para Lisboa, conservando-se durante cerca de três dias os cavalos de Cavalaria 9 aparelhados, para partirem o mais depressa possível”. Dia 4, “já tarde, participasse oficialmente que o chefe de Estado desistira desta visita. Começou então a correr que o movimento revolucionário era gravíssimo e já se aventava que fora proclamada a República”; “a 6 chegava a notícia oficial por um cabograma, da implantação do novo sistema, depois de uma heróica resistência e da nomeação do Governo provisório”. Também para Bragança, a República foi telegrafada.
E continuou a ser: o Governo, no dia 6, “nomeava telegraficamente os governadores civis”. No dia 7, desembarcou na gare da estação, “acompanhado dos ilustres izedenses, Veiga Valente e Manoel Uchoa, o ilustre cidadão e nosso íntimo amigo dr. João José de Freitas,” para tomar posse do lugar de Governador Civil. Diga-se, a este propósito, que há um núcleo de izedenses, militantemente ativos – antes e depois da República –, muito referidos, que exercem um papel importante como publicistas, propagandistas e quadros, como Alves de Morais, Alves da Veiga e Augusto Xavier da Veiga Valente, que vai ser Administrador do Concelho. Também a banda de Izeda, com presenças marcantes, em momentos de cariz político e de índole festiva, estaria ao serviço dos desígnios republicanos.
Eduardo Faria, advogado e político republicano |
Seguem-se apontamentos de reportagem que podem contribuir para um esclarecimento sobre a real implantação do Partido Republicano, sobre o acolhimento dispensado à autoridade republicana e sobre a receção à República. João de Freitas foi “esperado pelos poucos republicanos declarados da Cidade; “conhecida à última hora a chegada de sua. exa., juntou-se na gare um número avultado de cavalheiros que entusiasticamente o felicitaram, e foram levantados vivas ao novo Governo e sistema político ultimamente implantado”.
Vem, depois, a descrição das manifestações populares de apoio à República, na reportagem que é feita sobre a posse do Governador Civil e sobre a proclamação oficial do regime nos Paços do Concelho. Pensamos que tudo isto é dito com algum exagero – como teremos oportunidade de ver, em confronto com outros testemunhos –, o que se torna compreensível num órgão republicano. É dada uma ambiência festiva e entusiástica. As cerimónias, os atos oficiais e as manifestações populares, muito participadas, são descritos com apontamentos de reportagem coloridos e empolgantes. “No resto do Distrito e em todo o País foi por toda a parte o novo sistema político acolhido carinhosamente, e em muitas cidades, como Porto e Lisboa, delirantemente aplaudido, não cessando ainda as expansões populares, música pelas ruas, iluminações, galas oficiais, sessões solenes nos grémios políticos e associações de classe, etc., etc., etc. Enfim, realizou-se a aspiração de 40 anos do povo português”.
À posse do Governador Civil “foram assistir muitos cavalheiros. O vasto salão estava repleto, havendo ainda muita gente nas escadas por não poder entrar". Veio de Izeda, “para solenizar o ato e todos os da proclamação da República, a banda de música desta antiga vila, a terra natal do nosso eminente correligionário e chefe civil do 31 de Janeiro, dr. Alves da Veiga, o qual e dr. Alves de Morais foram os primeiros republicanos do Distrito e que aqui começaram a propaganda do crédito democrático republicano há 37 e em Coimbra há 40 anos".
"À posse do ilustre magistrado assistiu a elite brigantina, comandantes dos corpos, ou unidades militares e outros oficiais, chefes dos serviços de obras públicas, de fazenda distrital, médicos e advogados, auditor administrativo, intendente de pecuária, professores do Liceu e da Escola Distrital, representantes do comércio e indústria, etc., enchendo-se completamente o amplo gabinete de s. exa. Feitos os cumprimentos e apresentações e assinatura do auto respetivo da posse, começaram as manifestações. Foi içada a nova vermelha e verde bandeira da República, cujas cores representam respetivamente, a força, o vigor, a renovação, a mocidade, ao som do Hino a Portuguesa, que todos saudaram delirantemente, com repetidos vivas à Pátria nova, ao Exército de terra, à Armada, ao valente povo de Lisboa, à República Portuguesa, aos ilustres membros do Governo provisório, ao Governador Civil de Bragança… etc. etc.”
“Sua exa. arengou então brilhantemente ao povo de cima das janelas da repartição de fazenda, explicando-lhe no que consistia o sistema político acabado de implantar em todo o País entusiasticamente sem a menor perturbação pública, afora os acontecimentos dolorosos, mas necessários da capital nos dias 4 e 5 do corrente.
A República, disse s. exa., não é a desordem, não é a anarquia, não é o ataque à propriedade; é, pelo contrário, a ordem e o trabalho, como simbolizam as palavras escritas na sua bandeira. A República não vem trazer a guerra, mas a paz pública. A República vem reintegrar todos os cidadãos nos seus direitos, e obrigá-los ao cumprimento dos seus deveres. A República só responderá com a guerra a quem a combater, a quem a hostilizar, a quem não acate pacificamente os seus princípios e recorra a ilícitos esforços condenados para a desacreditar”.
“Termina com os vivas do estilo”, que foram muito correspondidos, e o “distinto advogado e professor do liceu, dr. Eduardo Faria, levantou novos vivas que igualmente foram correspondidos”. Retrata-se um clima de participação e de exaltação que, de acordo com outros testemunhos, entre os quais se incluem os do próprio governador, não teria correspondido à realidade vivida.
Alude também à proclamação oficial da República nos Paços Municipais. “Estacionando em frente ao edifício outra guarda de honra do comando de capitão, repetindo-se as mesmas manifestações festivas, sendo lavrado um auto de proclamação da República Portuguesa pelo secretário da Câmara, assinado pelos vereadores presentes, Administrador do Concelho e todas as mais pessoas presentes, comandantes das forças da guarnição, médicos, advogados, professores, comércio e indústria, funcionários públicos, etc.”
“Novamente usou da palavra ao povo que se aglomerava em grandes massas em frente do edifício municipal, o novo magistrado do Distrito, repetindo em frase vibrante e espontânea a exposição dos princípios republicanos implantados oficialmente em Portugal pela gloriosa revolução de Lisboa de 4 de outubro último; usou ainda da palavra o bacharel Alves de Morais, e repetiram-se os vivas do estilo e a banda de Izeda executou a Portuguesa.
A bandeira nacional da República já se encontrava içada no mastro da Câmara desde a véspera. Tais foram, em resumo, as manifestações de regozijo públicas pela proclamação oficial da República Portuguesa em Bragança”.
A Pátria Nova, de 19 de outubro, no segundo número, após o 5 de outubro de 1910, fornece-nos também dados valiosos sobre os primeiros dias da revolução, e revela-se exemplar, quer pela quantidade e qualidade da informação, quer pelos seus intuitos formativos.
Abre com um paradigmático artigo doutrinário que visa a inculcação ideológica, “O clericalismo”. Apesar do seu caráter panfletário, assume um tom pedagógico ao tentar justificar, com argumentos de peso, a expulsão das ordens religiosas e ao defender a liberdade religiosa. Este texto em concreto será abordado com maior detalhe no capítulo sobre a imprensa periódica de Bragança durante a Primeira República.
Mas além da questão religiosa, são abundantes as matérias que respeitam a atos das autoridades locais e a medidas e decisões que vão tomar, inspiradas na fidelidade à doutrina e aos princípios republicanos, assim como as que incidem sobre acontecimentos de âmbito regional e de incidência local.
Divulga-se um comunicado do Governo Civil, de 12 de outubro, que visa tranquilizar os espíritos, garantindo a paz, a fraternidade, os direitos de todos e a liberdade de consciência, procurando afastar receios, que se dizem infundados, quanto à ideologia republicana e à atuação do Governo Provisório, cuja ação se louva. “A República triunfante traz na mão o simbólico ramo de oliveira, oferecendo a todos a paz e a fraternidade". A República é para todos – "não foi proclamada contra ninguém, mas sim para todos os portugueses, com cujo concurso conta para levar a cabo a sua patriótica missão, que é a de fazer ressurgir o País da ruína em que se afundava… Serão respeitados e garantidos todos os direitos. O Governo fará punir com todo o rigor os atentados contra a propriedade, integridade dos cidadãos e direitos individuais".
Um dos maiores receios dos novos governantes seria a reação que poderiam provocar as medidas anti-congregacionistas. Por isso, esclarece-se que "as medidas postas em prática contra as congregações não visam a atacar a religião, mas sim fazer cumprir a lei do País". Uma semana após o 5 de Outubro, já se sentia necessidade de pôr cá fora um comunicado deste teor que, para além de doutrinar, combatesse o que seriam preocupações das populações com medidas da política republicana.
Esta mesma linha editorial – nos campos ideológico e doutrinário e no concernente a informações de interesse nacional e local – mantém-se nos números seguintes, prosseguindo a campanha para sossegar e tranquilizar a opinião pública: reinava a normalidade e a unanimidade; a República foi acolhida com naturalidade porque era desejada.
Augusto Moreno, membro da Comissão Municipal, recentemente convertido à República, segundo o Jornal de Bragança, vai ter um importante papel como polemista e como propagandista do ideário republicano neste jornal. Como homem esclarecido, culto e atento, sabia bem o que era preciso dizer – e como o dizer – aos seus conterrâneos. Na sua fé entusiástica e desmesurada, Portugal virá a ser, brevemente, irmão da "digníssima Suíça".
No seu artigo "A obra de saneamento" escreverá que “pouco mais de quinze dias sobre a proclamação da República em Lisboa, dir-se-ia que as novas instituições há pelo menos trinta anos estavam implantadas em Portugal...
Chega a surpreender vivamente… a maneira por que a Nação recebeu o novo regime. Tão identificados com ele estavam as suas aspirações, que a mudança fez-se sem nenhum daqueles abalos que costumam caracterizar as épocas de convulsão política". Defende um desiderato da ideologia republicana, a educação do povo: “Mas eduque-se este povo, tão capaz de cultura e civismo e poucos anos de esforço inteligente e honesto bastarão para o levar aos altíssimos destinos que a História lhe reserva”.
Outro texto, nesta linha doutrinária, intitulado “À Redentora Aurora do 5 de Outubro de 1910” e assinado por B. Vinhas, de Sortes, aldeia próxima de Bragança, usa palavras inflamadas, como se fosse a oração de um crente: "Salve, oh esplendorosa Aurora, Deusa dos humildes e dos oprimidos, Padroeira das grandes nacionalidades, Fonte da Luz e do Progresso, da Civilização e da Fraternidade humana! Senhora! Santa Democracia, ó Divina República: desfaz a treva que invade o nosso bom povo até agora dominado pelo espírito mau da Ignorância e da Superstição… Educa-o, ilustra-o, torna-o melhor”.
A 19 de outubro saiu, como se disse, o último número de a Gazeta de Bragança. As perturbações provocadas pela mudança política afetaram a publicação desta e de outras folhas monárquicas. Vale a pena referir, para tentar conhecer o posicionamento que oficiosamente é adotado por algumas forças monárquicas locais, face ao triunfo da República, as razões que levaram à decisão de acabar com a publicação e as apreciações que são feitas da revolução em marcha. No que se escreve, não há sinais de hostilização, há sinais de uma aceitação resignada, embora ligeiramente magoada…
Agostinho Paulino Pires militante republicano de Bragança |
Em “O nosso jornal” refere-se que “termina hoje a sua publicação”. “Os últimos acontecimentos levam-nos a concluir por esta forma a nossa missão.” Lamenta-se a morte trágica do diretor e fundador Abílio Beça. Segue-se o reconhecimento de que a culpa da queda da Monarquia foi dos monárquicos, o que é dito em palavras endereçadas a Abílio Beça: “Não viu a queda do regímen que defendia com tanto amor, não viu a derrocada da Monarquia causada principalmente pelos erros dos que se diziam seus mais dedicados defensores”. “A nossa única saudade de todo esse triste passado vai para ele, a quem venerávamos e admirávamos; a quem servíamos sem atender ao regímen ou ao partido que defendia... Dele recebêramos a propriedade deste jornal, que doravante não tem razão de existir”. Alude-se ao seu sucessor no exercício da Presidência: “ Não devemos esquecer o nome do sr. Olímpio Dias que durante cinco meses exerceu a Presidência da Câmara, desempenhando inteligentemente esse cargo.”
Num momento como este, não é de estranhar que o passado monárquico seja classificado como “triste” e que os responsáveis pelo jornal confessem que, mais do que servir um regime ou um partido, tinham servido, fundamentalmente, um homem que se havia imposto, sobretudo, pela dedicação que votava à sua terra. Também não é de estranhar o que se pensa sobre o fim da Monarquia, causado “principalmente pelos erros dos que se diziam seus mais dedicados defensores”.
Sobre “A implantação da República em Portugal”, dá-se uma notícia simples sem apreciações críticas e sem juízos valorativos: “É um facto aquilo que, há poucos dias ainda, parecia impossível a muitos. Oxalá o novo regímen seja próspero e sirva o País como ele necessitava já de há muito ser servido. São os nossos sinceros votos”.
Há outras notas significativas e silêncios que falam. É referida, laconicamente, a nomeação do Governador Civil, “ilustre professor do Liceu de Bragança. O sr. dr. João de Freitas é um magistrado inteligente, ativo e que conhece bem as necessidades deste Distrito, de onde é natural”. Não se alude, contudo, à tomada de posse do Governador, que ocorrera no dia 8, nem à cerimónia de proclamação da República. Sobre a Comissão Administrativa Municipal, apenas se refere a sua nomeação e os nomes das personalidades que a compunham.
Parece ser de concluir que, da parte dos monárquicos brigantinos que tinham voz na imprensa, houve um discurso conformado e apaziguador, que carregava até expectativas positivas. O descontentamento e a mágoa
em relação à República, que muito compreensivelmente teriam sido sentidos pelos setores monárquicos, diluem-se, muito provavelmente por estratégia, no que é dito e proclamado. Monárquicos e católicos, na expectativa e com receio do que lhes pudesse acontecer, não hostilizaram, de imediato, o novo regime, tendo-lhe até concedido o benefício da dúvida, ou depositado laivos de esperança numa melhoria de situação. Muitos monárquicos, mesmo provenientes das alas mais conservadoras e tradicionalistas, achavam que as coisas não podiam continuar como estavam. Muitos deles, aliás, mudaram rapidamente de campo. Os novos simpatizantes e aderentes, os “adesivos”, vêm, como não podia deixar de ser, do universo monárquico.
O Jornal de Bragança, num longo artigo, de 16 de outubro, intitulado “A queda da realeza”, subscrito por Álvaro de Araújo, dá-nos uma detalhada análise da marcha da Monarquia Constitucional – de que fala com alguma nostalgia – e das razões que conduziram à sua queda. Uma vez mais, grande parte da responsabilidade é atribuída à ação dos partidos monárquicos e ao descrédito em que caiu o rotativismo, fazendo o autor um levantamento pormenorizado dos graves abusos e dos grandes problemas surgidos nos últimos anos da governação monárquica. “Está proclamada a República em Portugal... Nem dois dias de escaramuças adentro dos muros de Lisboa foram necessários para atirar a terra com a realeza, sob cujo regímen se constituiu, engrandeceu e consolidou a Nação portuguesa. As velhas tradições, que pelo decurso de quase oito séculos de existência deviam ter raízes profundas e extensas, baquearam a um leve sopro revolucionário, porque essas raízes estavam corroídas da podridão. No entanto, uma lágrima de saudade nos levam essas instituições, que nos acostumamos a respeitar…”.
“Desde há muito se vinha notando um arrefecimento grande nas dedicações partidárias… De longe vem o arrefecimento das dedicações partidárias, desde que no Governo se esqueceram os programas e as promessas de oposição, e em vez de se fazer administração económica e justa, se continuava no sistema das liberalidades, das dissipações e dos patronatos. A exploração do País não deixava nunca de continuar-se a favor de alguns mimosos da fortuna; e os partidos forneciam apenas um degrau para a subida dos ambiciosos… Mas de todos ainda, o supremo mal era a violação quase constante da lei constitucional ou a sua sofismação, segundo convinha aos interesses governamentais…”
Sobre a implantação da República, avança que "todos reconhecemos a necessidade da submissão às novas instituições republicanas, não só pela esperança da reforma dos costumes e da implantação da moralidade na administração pública, mas ainda pela necessidade de evitar os calamitosos horrores de uma guerra civil". "Se a ordem e a tranquilidade pública se não restabelecerem seguramente… as nações estrangeiras, e principalmente a Espanha, com o fundamento de quererem proteger a vida e a propriedade e interesses dos seus súbditos, e com o pretexto de assegurarem o movimento comercial dos seus nacionais, e ainda para abafar as discórdias que se lhes podem propagar além fronteiras, intervirão à mão armada nas nossas questões internas, impor-nos-ão a lei, e cobrarão em custas alguma parte do nosso domínio colonial".
Mais distanciadas e menos comprometidas do que as de A Pátria Nova são as notícias do Jornal de Bragança sobre as “manifestações de regozijo públicas pela proclamação oficial da República em Bragança.” As informações variadas permitem-nos ter uma ideia mais clara do que foram esses primeiros dias republicanos na Cidade. Há referências que não conseguimos descodificar; há a proverbial ironia e o inevitável sarcasmo de Raul Teixeira, à mistura com algumas verrinosas alusões; há, sobretudo, apontamentos com cor local.
Da reportagem deste periódico – não comprometido com o Partido Republicano –, fica-nos a sensação de um relato mais próximo do que se teria passado e vivido. Raul Teixeira – muito provavelmente ele – ironiza, tripudia, satiriza… Fala das incredulidades, das dúvidas e da surpresa que se instalaram nos espíritos. É mordaz para com várias personalidades que, apressada e pressurosamente, se preparavam para mudar de campo.
Destaque para os acerbos comentários: alguns dos que se apressaram a apoiar a República integravam a "comissão organizadora de donativos" para a “festança real". De realçar, ainda, o que se teria passado no dia 7, pelas 13 horas. Mesmo antes da chegada de João de Freitas e da realização de cerimónias oficiais, organiza-se uma manifestação republicana, por iniciativa dos "reduzidos republicanos desta Cidade… acompanhados de escassa multidão", para aclamar a República nos Paços do Concelho.
Maximiano Vaz Paulo, militante republicano de Bragança |
Quanto ao cortejo que acompanha o Governador Civil, após a sua posse, até à Câmara, o Jornal de Bragança esclarece: “Por amor à verdade e seguindo o nosso programa de jornal absolutamente independente, devemos dizer que o número de cidadãos que se incorporavam no cortejo era muito reduzido, vendo-se entre os cavalheiros que acompanhavam o sr. dr. João de Freitas, além dos já apontados, os srs. Silva Dias, diretor de Obras Públicas, bacharel António Rapazote, Dias Alves de Morais, 15 membros do Partido Republicano local e poucas pessoas mais. Os brigantinos assistiram ao ato numa indiferença triste e magoada, vendo de longe, como espectadores furtivos e desconfiados.”
“Em muitos olhos tremulavam lágrimas, batiam mais forte os corações. É que o Partido Republicano abandonou este Distrito para a maravilhosa propaganda feita nos últimos anos. Há quatro anos, apenas, as vozes de Duarte Leite e Alfredo de Magalhães aqui se fizeram ouvir. Desta maneira elas não podiam deixar de ser as vozes dos que clamam no deserto… Aqui ainda o povo forma uma ideia falsa da República, vendo na nova forma de governo o caos, a insubordinação, a ruína, a desordem. Pobre Distrito de Bragança, que roubado como foste pelas quadrilhas da Monarquia, não tiveste a elucidar-te sobre o regímen que te governa a palavra dos apóstolos da República que a toda a parte levavam o seu verbo esclarecedor. Pobre Distrito!"
Este mesmo periódico, na secção "Apontamentos da carteira”, dá-nos informações curiosas quanto à sociedade de Bragança nos primeiros dias da República, algumas das quais aqui se registam: “Como é sabido, neste burgo, pequeno meio onde toda a gente se conhece e nada se ignora, havia os seguintes republicanos antes da proclamação da República”: José A. Rodrigues Paula; João José Alves; Manuel Rodrigues Paula; Agostinho Paulino Pires; Casimiro Pissarro; Inácio Vilares; Nicomedes Afonso Anta; Delfim Conde; João Dias; Júlio Rocha; Manuel Brilhante; José Pires; Acácio Mariano; Maximiano Vaz; José Tomé; José da Ponte.
"Alguns, poucos, tinham um pé na República e outro nos partidos da Monarquia. Pois no dia da proclamação, dúzias de criaturas por aí andaram a berrar sua jacobinice, dizendo-se republicanos antigos e de velhas crenças.
Tartufos! Entre os aderentes dos primeiros dias, além dos já apontados, contam-se os srs. João Baptista da Cruz, subinspetor Miranda e Augusto Moreno. Este último cidadão é o signatário do artigo de fundo da Pátria Nova de quarta-feira, antigo jornal republicano que reapareceu, motivo porque lhe apresentamos os nossos cumprimentos, desejando-lhe muitas prosperidades na sua nova fase”.
“O sr. Olímpio Dias, Presidente da recém-dissolvida vereação monárquica, fica na Comissão Municipal republicana como simples vogal. Desmonta, assim, de bucéfalo para cavalgar em jerico".
“Por virtude do restabelecimento das leis de Pombal, saíram do Asilo Duque de Bragança as criaturas que lá estavam educando as asiladas. Uma comissão de madamas brigantinas dirigiu-se ao Governador Civil requerendo benevolência para com as filhas da Virgem. Que não, respondeu o Dr. João de Freitas, que se havia de cumprir a lei”. “Parabéns aos nossos colegas da Pátria Nova! E sentidos pêsames a certo clérigo magano, mais às donzelas e mancebos que em mês de Maria faziam da Igreja de São Bento quartel-general de amores ternos."
Fazendo um balanço da implantação da República em Bragança, pode falar-se em pouco entusiasmo e em participação pouco significativa, desconfiada e triste, da população em quase todas as cerimónias. O número muito reduzido de cidadãos que se incorporam no cortejo; os brigantinos que assistiram ao ato “numa indiferença triste e magoada”, “espectadores furtivos e desconfiados". Segundo alguma imprensa, a responsabilidade devia assacar-se ao Partido Republicano, que "abandonou este Distrito”. Não é, por isso, de admirar que, numa região assim tratada, o povo tivesse "uma ideia falsa” da República. Esta "falsa ideia" estaria, segundo julgamos, na mente de boa parte da população portuguesa. O que podia acontecer é que, nestas paragens, ainda poderia estar mais arreigada e ser mais negativa.
Pouco se teria ido além do cerimonial oficial, com protagonistas e encenações mais do que previsíveis.
Sobressai, sobretudo, a ação do Governador Civil, que "proclama solenemente" a República, e a participação de alguns cidadãos que estariam ligados ao Partido Republicano e ao republicanismo; a adesão de alguns vereadores, que provinham da Câmara "monárquica", e ainda de outros cidadãos que foram "subitamente" conquistados pela República. O próprio Governador Civil reconhece, mais tarde, que o "entusiasmo" na cerimónia da proclamação esteve longe de ser o desejado. Fala mesmo em "frieza" do povo…
Estes indícios permitem-nos aquilatar do pouco fervor e do distanciamento com que a população viveu - três dias depois – o seu Cinco de Outubro. Talvez se possa caracterizar esta situação com algumas palavras do depoimento do correspondente de Vimioso – A Pátria Nova de 19 de outubro - quando relata o que ocorreu na sua terra: "Este regímen foi aceite sem relutância nem protestos”.
Aliás, é interessante conhecer a reação de uma personagem como o Abade de Baçal que, quando a República triunfa, era, como dissemos, vereador da Câmara. No seu “livro de contas” não faz qualquer menção ao acontecimento.
Este silêncio e esta indiferença podem querer significar, por um lado, que o Abade pouco ou nada se entusiasmou com a implantação do novo regime, no que não estaria sozinho. Teria sido acompanhado, aliás, por muitos dos seus contemporâneos e conterrâneos. Mas, por outro lado, não se lhe conhecem posições que hostilizem a República. Deve ser dito, ainda, que as “Câmaras republicanas”, dado o prestígio de que já gozava, para além de apoiarem a publicação da sua obra, vão manifestar, desde os primeiros tempos, uma comprovada solidariedade com este “regionalista” que tanto fazia pelas terras brigantinas.
Passado um mês após a implantação da República, A Pátria Nova, referindo-se à urbe, escreve que “Bragança precisa de levantar-se”, porque “a revolução parece que a não acordou de todo, tal era o marasmo em que jazia, tão pequenino e tão banal é o meio em que aí se vive”. E como se sublinha, só o esforço de um grande homem, João de Freitas, que estava à frente do Distrito, não bastava.
Aponta-se “o padre” como um dos principais responsáveis por esta “sonolência” e faz um apelo: “o que eu peço aos meus correligionários é que vigiem o padre. O padre na nossa província, apesar de opiniões em contrário, é ainda o soba, o régulo. O pobre aldeão está-lhe nas garras, e necessário se torna arrancá-lo a tal martírio, antepondo à sua propaganda dissolvente uma outra radical e abertamente humana, de conformidade com as luzes do século e em harmonia com as leis da República”. Essa é a “maior necessidade” do Distrito. E por a revolução não ter “acordado” devidamente Bragança, por continuar sonolenta e com tentações regressivas – apesar da ação do seu Governador Civil –, é que se poderão compreender melhor, porventura, algumas resistências, algumas perturbações sociais e uma certa agitação política.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
Sem comentários:
Enviar um comentário