(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
-palavras de um tio pelo olhar de uma mãe-
------------------------------------------------- Sim, eu não sabia. Permanecia deleitado na minha grandiosa omnipresença de filho mais novo da família, habituado aos cuidados e anseios constantes de todos os seus constituintes. Muito senhor de si e do seu reinado, solteiro (e talvez bom rapaz!), tendo por único e como certo o incontornável amor de mãe que sempre perdoa e satisfaz todos os caprichos. Não sabia… Desconhecia que o meu reinado estava prestes a sucumbir como castelo de areia arrastado num ímpeto pelo mar adentro. E, então, eis que surge aquele pequeno e irresistível ser, tão minúsculo que, ao segurá-lo, toda a minha força mais comedida na ponta dos dedos me soava desmesuradamente brutal, aquele ser com uma voz estridente e aguda capaz de furar tímpanos incautos. Aquele ser que despertou em mim sentimentos de empatia e amor desmedido, antes inalcançáveis, e que logo nos seus primeiros dias de vida me ofereci para acompanhar durante a noite. “Para vocês descansarem!” - dizia eu de soslaio à irmã e ao cunhado. Mas, na verdade, queria mesmo era ter aquele pedacinho de vida só para mim, para idolatrar e consciencializar-me de que agora… era tio! E assim, perceber aquela deliciosa sensação de ficar uma noite inteira acordado a babar-me e a admirar com cara de pateta esse milagre tão pequeno, careca, sem dentes e… imensuravelmente lindo que, não me pertencendo, era todo meu! E pouco a pouco, destronado do reino e acompanhando a vida de quem vive uma outra história que faz parte da minha, lá fui descobrindo a natural magia de ser tio, através de um amor iluminado, adocicado, cheio de cumplicidades e sempre disponível. Num reinado onde agora o rei é a Princesa; os caprichos “são ordens, senhora”; onde as regras servem para saltar à corda; onde a bonecada é compincha na aventura; o reportório de filmes da Disney ocupa horários nobres com assistência garantida a dois e olhos proibidos de se desviarem do écran para não perder pitada da surpresa (revista diariamente); onde o “general” e “comandante” passam a figuras de arquivo morto… O meu “eu” foi obrigatoriamente decretado a passar para estatuto de criança, ainda que sempre em segundo plano e que também já começando a ficar careca (e, eventualmente daqui a umas poucas luas, igualmente sem dentes!), descobriu que no seio da família, ser tio… de repente é amor!
Paula Freire - Psicologia de formação, fotografia e arte de coração. Com o pensamento no papel, segue as palavras de Alberto Caeiro, 'a espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias'.
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