segunda-feira, 26 de setembro de 2022

FAVORITAS 5

 A favorita que lhes mostro hoje — de que gosto sem reservas —vem carregada da melancolia e do mistério próprios dos dias de nevoeiro. Deixá-lo. Quanto a mim, é um bem-vindo contraponto a esta sucessão de dias de sol inclemente que nos traz a todos com o credo na boca “ad petendam pluviam”.
 Facilmente os meus Amigos FB observarão que o que está em jogo na fotografia, além do nevoeiro propriamente dito, é o diálogo que se estabelece entre o natural (o pinheiro) e o artificial (o candeeiro). Bem observado. Mas esta coisa de nevoeiros fia mais fino. Pelo mistério que envolvem, servem às mil maravilhas para os poetas dizerem coisas.
 Vejamos. Aqui há tempos, mostrei-lhes outra bonita e sugestiva fotografia de nevoeiro, que ilustrei com um poema meu. Hoje, volto a dar-lhes poesia sobre o nevoeiro. Desta vez, o poema “Oito dias de nevoeiro”, de António Cabral, o poeta grande do Douro. 
Todos sabemos que António Cabral, como homem de esquerda que sempre foi, armadilhava muitos dos seus poemas com remoques ao regime que governava Portugal. Se os poetas não podiam chamar as coisas pelo nome, podiam sempre recorrer à metáfora. Nunca falei com António Cabral sobre este poema. Mas aposto, dobrado contra singelo, que o nevoeiro de que o poeta fala, sugerindo silêncio e escuridão, há-de ser metáfora de qualquer coisa que envolvia também escuridão e silêncio. Será preciso dizer o quê?

E agora o poema:

Continuamos sob o nevoeiro / mas sabemos que o sol anda na serra / e encosta a face morna à virgindade das coisas, / tocando-a com um hálito muito doce. // Aqui estamos sob um tecto mole, / chumbo respirado ou a carne / dum monstro espacial. / Os lavradores assobiam para dentro / e os mais necessitados / engolem os projectos com a saliva. // Claro que ninguém tem culpa. / Assim fosse no resto. Mas custa / estar, há oito dias, sob esta pata / viscosa, esta enorme sanguessuga / que chupa até os tegumentos da alma. // É como se estivéssemos debaixo / dum telhado prestes a cair. / As crianças arqueiam os ombros; / põem as mãos nos bolsos, à semelhança / de isqueiros avariados nas gavetas; / passam indiferentes pelos gatos, / pelos pardais, e entristecem. // Ontem sabemos que um avião / deslizou por cima do visco. 7 Era uma voz coada, nasal,/ proveniente dum outro mundo, / dum mundo que suavemente se consome / nas imensas fogueiras da luz. // Um avião passou sobre as nossas cabeças. / Paris? Amesterdão? Londres? Berlim? / Passou, talvez, para outro nevoeiro. / Mas passou, e lá dentro / havia, pelo menos, a certeza / de que o nevoeiro é um fenómeno // tão natural como duzentos contos / ganhos na assinatura dum contrato. / Nós aqui mal respiramos, nesta rampa inclinada para o rio; / nesta rampa onde os músculos / não obedecem à vontade. // Aqui o nevoeiro é a vontade. / Pouca gente trabalha. /Os pardais e as crianças andam tristes. / Valha-nos Deus / e um caldinho de cebola bem quente.

A. M. Pires Cabral

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